É provável que os encômios imerecidamente derramados sobre os mortos e que as honras devidas apenas à excelência prestadas às épocas pretéritas continuem a ser lamentados por aqueles que, incapazes de contribuir para a verdade, depositam suas esperanças de celebridade nas heresias do paradoxo; ou por aqueles que, forçados pela decepção a procurar recursos consoladores, estão propensos a esperar da posteridade o que o presente lhes recusa e se vangloriar de que a estima negada pela inveja será finalmente concedida pelo tempo.
A antiguidade, como qualquer outro atributo que conquista a atenção da humanidade, tem indubitavelmente devotos que a reverenciem, não pela razão, mas pelo preconceito. Alguns parecem admirar indiscriminadamente o que quer que tenha sido preservado há longo tempo, sem levar em conta que este às vezes coopera com a sorte; é provável que estejam todos mais dispostos a celebrar a excelência passada do que a presente, e o espírito contempla o gênio através das sombras dos séculos, como os olhos examinam o Sol pelo recurso a um artefato opaco. O grande objeto de controvérsia da crítica é encontrar as deficiências dos modernos e as perfeições dos antigos. Avaliamos a capacidade de um autor ainda vivo pelas suas tentativas malsucedidas e, quando morto, pelos seus êxitos.
Contudo, as obras cuja excelência não é absoluta e definida, mas gradual e relativa, as obras fundadas, não sobre princípios demonstrativos e científicos, mas tão somente na observação e na experiência, apenas podem ser postas à prova pela duração no tempo e constância do apreço. O que a humanidade há muito possui ela repetidas vezes examinou e comparou, e se persiste em conferir valor a sua propriedade é porque os numerosos cotejos confirmaram o parecer favorável. Assim como entre as obras da natureza ninguém pode rigorosamente qualificar um rio de profundo ou uma montanha de alta sem ter conhecido muitas montanhas e muitos rios, também acerca dos produtos dos gênios nada se pode declarar excelente antes que seja comparado com outros da mesma espécie. A demonstração exibe sua capacidade de uma só vez e nada tem a esperar ou temer do correr dos anos; mas as obras tentativas e experimentais devem ser avaliadas proporcionalmente à habilidade geral e coletiva do homem, descobertas mediante uma longa sucessão de esforços. Acerca do primeiro edifício construído seria possível dizer com toda a segurança que era redondo ou quadrado, mas quanto a ser espaçoso ou alto coube necessariamente ao tempo determiná-lo. Revelou-se, de um golpe, que a escala pitagórica dos números era perfeita1; mas ainda não nos é possível saber se os poemas de Homero transcendem os limites comuns da inteligência humana, senão pela observação de que nação após nação e século após século mal conseguiram transpor seus episódios, dar novos nomes a seus personagens e parafrasear seus pensamentos.
O respeito devido a escritos que subsistiram por muito tempo é fruto, portanto, não de qualquer confiança ingênua na sabedoria das eras passadas ou de uma convicção desalentadora da degeneração da humanidade, mas consequência de máximas aceitas e irrefutáveis de que aquilo que se conhece há mais tempo resistiu a um número maior de provas, e o que foi mais examinado, mais compreendido.
O poeta cujas obras me coube editar pode agora começar a assumir a dignidade de um ancião e reivindicar o privilégio de uma fama estabelecida e de uma veneração incontestável. Ele sobreviveu de muito a seu século, o período comumente fixado como prova de mérito literário2. Quaisquer benefícios que pudesse alguma vez ter auferido de referências pessoais, costumes locais ou opiniões efêmeras perderam- se no tempo, e cada tema de gracejo ou motivo de pesar que os modos de vida fictícia lhe proporcionaram agora apenas obscurecem as cenas que outrora iluminavam. Os produtos da preferência e da competição estão desaparecendo; a memória de suas amizades e de seus inimigos pereceu; suas obras a nenhuma opinião provêm argumentos, nem a nenhuma facção fornecem injúrias; não podem favorecer a vaidade, nem recompensar a maldade, mas são lidas sem nenhum outro motivo que não o desejo de prazer e, portanto, louvadas apenas quando o proporcionam; contudo, assim desassistidas pelo interesse ou pela paixão, foram submetidas a variações de gosto e mudanças de costumes e, enquanto se transmitiam de uma geração a outra, novas honras a elas se acresceram.
Mas porque o juízo humano, embora gradualmente se aproximando da exatidão, jamais se torna infalível e a aprovação, embora constante, provavelmente seja ainda apenas o produto da convenção ou do uso passageiro, convém averiguar por que méritos especiais Shakespeare obteve e conservou a estima de seus compatriotas.
Nada pode agradar a muitos, tampouco durante muito tempo senão as representações legítimas da natureza universal. Os costumes particulares podem ser conhecidos por poucos e, portanto, apenas poucos podem julgar quão fiéis são suas imitações. É possível que as composições irregulares da inventiva extravagante encantem por algum tempo, graças àquela novidade para a qual nos impele o tédio da vida, mas os prazeres de uma admiração repentina logo se exaurem e o espírito somente consegue repousar na solidez da verdade.
Shakespeare é, acima de todos os escritores, ao menos de todos os escritores modernos, o poeta da natureza, o poeta que apresenta a seus leitores um espelho fiel dos costumes e da vida. Suas personagens não se alteram segundo os hábitos de lugares específicos, desconhecidos pelo resto do mundo, segundo objetos de estudo ou profissões peculiares que se manifestam apenas em poucos, ou segundo os produtos de hábitos transitórios ou opiniões temporárias: elas são a legítima prole da humanidade comum, aquelas que o mundo sempre proverá e a observação sempre encontrará. Suas figuras agem e falam sob a influência daquelas paixões e princípios que agitam todos os espíritos e que mantêm a esfera da vida em movimento. Nas obras de outros poetas, uma personagem é quase sempre um indivíduo; nas de Shakespeare, geralmente é uma espécie.
É desse intuito abrangente que deriva tanto conhecimento. E ele que difunde por todas as peças de Shakespeare máximas práticas e sabedoria vernácula. Diz-se que cada verso de Eurípides era um preceito3 e pode-se dizer que, com as obras de Shakespeare, é possível formar uma ordem socialmente equilibrada e moderada. Contudo, seu verdadeiro talento não se mostra no brilho de determinadas passagens, mas no desenvolvimento de seu enredo e no teor de seu diálogo, e quem tenta enaltecê-lo mediante uma seleção de citações procederá como o pedante em Hieroclés4, que, ao pôr sua casa à venda, carregava um tijolo em seu bolso como amostra.
Não será fácil avaliar quanto prima Shakespeare por conformar seus pensamentos à vida real senão comparando-o com outros autores. Observou-se a respeito das antigas escolas de retórica que quanto mais os alunos as frequentavam mais o estudante se tornava inepto para o mundo, pois nada aí encontrava que pudesse achar em qualquer outro lugar5. O mesmo pode-se dizer de todos os palcos, exceto o de Shakespeare. O teatro, quando segue qualquer outra orientação, é povoado de caracteres nunca vistos, conversando em uma língua nunca ouvida, sobre assuntos que jamais serão abordados no comércio entre os homens. Porém, o diálogo desse autor muitas vezes é determinado tão obviamente pela ação que o provoca e se desenvolve com tanta facilidade e simplicidade que mal parece reivindicar a qualidade de ficção e sim ter sido engenhosamente coletado na conversação e nos eventos cotidianos.
Em qualquer outro palco o agente universal é o amor, que preside à distribuição de todo bem e de todo mal, assim como à aceleração ou retardamento de cada ação. Introduzir no enredo um amante, uma dama, um rival; envolvê-los em deveres opostos, desconcertá-los com interesses contraditórios e atormentá-los com a violência de desejos mutuamente incompatíveis; levá-los a encontros arrebatadores e a separações em meio a sofrimentos atrozes; encher sua boca de júbilo exaltado e de enorme angústia; afligi-los como nenhum outro ser humano jamais foi afligido; expô-los como ninguém jamais o foi: é esse o ofício de um dramaturgo moderno. Para isso, viola-se a probabilidade, adultera-se a vida e corrompe-se a língua. Mas o amor constitui apenas uma das muitas paixões e, como não tem grande influência sobre o essencial da vida, exerce uma função secundária nas obras dramáticas de um poeta que recolheu suas ideias do mundo real e mostrou apenas o que viu. Ele entendeu que qualquer outra paixão, fosse ela normal ou excepcional, era uma causa de felicidade ou de desgraça.
Caracteres assim completos e gerais não foram facilmente encontrados e preservados e talvez nenhum outro poeta tenha conseguido manter suas personagens mais diferentes entre si. Não direi, como Pope, que cada fala possa ser atribuída ao seu correspondente locutor6, porque há muitas que nada têm de característico; porém, embora algumas possam ser uniformemente próprias a cada personagem, provavelmente será difícil encontrar uma que possa ser adequadamente transferida do possuidor atual para outro pretendente. A escolha é correta quando há motivo para a escolha.
Outros dramaturgos somente conseguem chamar a atenção pelo recurso a caracteres exagerados ou desagradáveis, a qualidades ou perversidades excepcionais ou sem precedentes, como os escritores de ficções romanescas, que cativam o leitor com um gigante ou um anão, e aquele que esperava fundar seu conhecimento acerca dos assuntos humanos na peça ou na narrativa seria duplamente ludibriado. Shakespeare não tem heróis; suas cenas são ocupadas apenas por homens que agem e falam como o leitor imagina que ele próprio teria falado ou agido nas mesmas circunstâncias. Até mesmo onde o agente é sobrenatural o diálogo se assemelha ao real. Outros escritores disfarçam as paixões mais naturais e os incidentes mais comuns a fim de que quem os veja no livro não os reconheça na vida real; Shakespeare aproxima o distante e torna familiar o extraordinário; o evento que ele representa não se realizará, mas, se fosse possível, seus efeitos provavelmente seriam tais como ele os determinou e pode-se dizer que não apenas mostrou a natureza humana como ela se comporta na realidade, em situações difíceis, mas também em aflições às quais não pode ser exposta7.
Esta é, portanto, a glória de Shakespeare, que seu drama seja o espelho da vida; que aquele que desorientou sua imaginação ao perseguir os fantasmas que outros escritores anteriormente criaram foi capaz de recobrar-se de seus êxtases oníricos ao ler os sentimentos humanos na linguagem humana, ao escrever cenas pelas quais um eremita possa avaliar os negócios do mundo e um confessor predizer o desenrolar das paixões.
Sua fidelidade à natureza universal o expôs à censura dos críticos que fundam seu julgamento sobre princípios mais limitados. Dennis e Rymer8 julgam que seus romanos não são suficientemente romanos e Voltaire acusa seus reis de não serem inteiramente majestosos. Dennis sente-se injuriado porque Menênio, um senador de Roma, age como um tolo e Voltaire talvez creia ter-se ofendido a decência quando ó usurpador dinamarquês é representado como bêbedo. Mas em Shakespeare a natureza sempre predomina sobre o acidental e, se preserva o que há de essencial no caráter, descuida-se de distinções postiças e adventícias. Sua história requer romanos ou reis, mas ele pensa apenas em homens. Ele sabia que Roma, como qualquer outra cidade, tinha homens de todas as índoles e, desejando um bufão, foi ao senado em busca do que este certamente lhe forneceria. Sua intenção era mostrar um usurpador e, portanto, acrescentou a embriaguez a suas outras qualidades, sabedor de que os reis apreciam o vinho como os outros homens e de que o vinho exerce seu efeito natural sobre os reis. Essas objeções são insignificantes e produtos de espíritos mesquinhos; um poeta não leva em conta distinções acidentais de país e de condição social, do mesmo modo que um pintor, satisfeito com a figura, negligencia a vestimenta.
A reprovação a que ele se expôs ao misturar cenas cômicas e trágicas, uma vez que se aplica a todas as suas obras, merece um exame mais detalhado. Apresentemos primeiramente o caso, para depois examiná-lo9.
As peças de Shakespeare não são, no sentido exato e crítico, nem tragédias nem comédias, e sim composições de uma espécie diferente, mostrando a condição real da natureza sublunar, que abrange o bem e o mal, a alegria e a tristeza, misturados em uma proporção infinitamente variável e combinados de inúmeras maneiras, refletindo o curso do mundo, onde a perda de um é o benefício de outro; onde, ao mesmo tempo, o libertino está correndo para o seu vinho e o pesaroso enterrando seu amigo; onde a maldade de um é às vezes derrotada pela galhofa de outro, e muitos malefícios e muitos benefícios são feitos e impedidos sem nenhum motivo.
Desse caos de desígnios e desgraças, segundo as leis que o costume estabelecera, os poetas antigos selecionaram alguns os crimes, outros as contradições, uns as grandes vicissitudes da vida e outros os acontecimentos menos graves; alguns os horrores do infortúnio e outros as alegrias da prosperidade. Desse modo, surgiram as duas formas de imitação, conhecidas pelos nomes de tragédia e comédia, composições cuja finalidade era desenvolver diferentes fins mediante meios opostos, e as consideraram tão distantes uma da outra que não me recordo, dentre os gregos ou romanos, de um único escritor que tenha se aventurado em ambas.
Shakespeare reuniu as faculdades de provocar riso e tristeza não apenas em um mesmo espírito, mas também em uma só obra. Em quase todas as suas peças alternam-se caracteres circunspectos e joviais e, nos desdobramentos sucessivos do enredo, às vezes apresentam gravidade e tristeza, às vezes leveza e riso.
Sem dúvida alguma, essa é uma prática que contraria as regras da crítica, porém esta sempre se abre aos apelos da natureza. O objetivo da obra escrita é a instrução; a finalidade da poesia é instruir por meio do prazer10. É indubitável que a mistura do drama pode instruir mais do que a tragédia ou a comédia, pois inclui ambas em suas variadas situações e se aproxima mais da vida, ao mostrar como grandes tramas e pequenos intuitos podem mutuamente se favorecer ou dificultar, e o elevado e o banal cooperam na ordem geral por meio de conexões inevitáveis.
Objeta-se que essa mudança de cenas interrompe o desenvolvimento das paixões e que a ação principal, não progredindo mediante uma devida gradação de incidentes preparatórios, acaba por não ter a capacidade de comover, o que constitui critério de perfeição da poesia dramática. Esse raciocínio é tão plausível que é aceito como verdadeiro até mesmo por aqueles a quem a experiência diária prova ser falso. As intercalações de cenas de diferentes tipos dificilmente deixam de causar as pretendidas oscilações da paixão. A ficção não tem o poder de comover a ponto de facilitar sua transferência e, não obstante se admita que uma doce melancolia seja às vezes interrompida por uma jovialidade indesejada, ainda assim se deve igualmente levar em conta que a tristeza nem sempre é prazerosa e que aquilo que perturba um homem pode ser o alívio de outro, que diferentes espectadores possuem diferentes modos de ser e que, afinal, todo prazer consiste na variedade.
Os atores que em sua edição classificaram as obras do nosso autor em comédias, peças históricas e tragédias não parecem ter distinguido os três tipos segundo noções muito precisas e definidas”.
Uma ação que terminava bem para os principais personagens, embora grave ou angustiante ao longo de seus incidentes intermediários, constituía uma comédia. Essa concepção conservou- se por muito tempo entre nós e se escreveram peças que, modificando- se o desfecho, eram tragédias um dia e comédias em outro.
A tragédia, àquela época, não constituía um poema em geral mais digno e elevado do que a comédia; ela requeria apenas um fim mais funesto, e isso era o suficiente para a crítica comum daqueles tempos, por mais que proporcionasse um prazer mais leve em seu desenvolvimento.
A peça histórica consistia em uma série de ações cuja sucessão era apenas cronológica, independentes umas das outras e desprovidas de qualquer intento de propiciar ou de compor a conclusão. Nem sempre é possível estabelecer uma distinção rigorosa entre ela e a- tragédia. Não há nada na tragédia Antônio e Cleópatra que se assemelhe muito mais à unidade de ação do que na história Ricardo II. Mas uma história podia ter uma sequência através de muitas peças; como não tinha um plano, não tinha limites.
Sob essas classificações do drama, a composição de Shakespeare 11 segue o mesmo método: uma alternância de tristeza e alegria, segundo a qual em um momento o espírito se enternece e em outro se alegra. Mas, qualquer que seja seu objetivo, divertir ou entristecer, ou conduzir a narrativa, sem veemência ou exaltação, pelos caminhos do diálogo fluente e comum, ele nunca deixa de atingir seu propósito: a seu comando, rimos ou nos entristecemos, ou nos quedamos mudos e imersos em calma expectativa, mas não indiferentes.
Quando se compreende o intento de Shakespeare, a maior parte das objeções de Rymer e de Voltaire desaparecem. Hamlet abre-se, sem nenhuma impropriedade, com duas sentinelas; lago grita na janela de Brabâncio, sem nenhum dano ao plano da peça, embora empregando termos que um público moderno dificilmente toleraria; o caráter de Polônio é adequado e prestimoso, e até mesmo os coveiros podem ser ouvidos com aprovação12.
Shakespeare entregou-se à poesia dramática com o mundo aberto diante de si; as regras dos antigos ainda eram conhecidas de poucos; a opinião do público não se formara; não havia um exemplo cuja celebridade refreasse sua exuberância; portanto, ele obedeceu a sua inclinação inata e esta, como observou Rymer, o conduzia à comédia. Na tragédia, muitas vezes sobressai seu cuidado e empenho ao escrever, o que leva a um resultado não muito feliz; mas em suas cenas cômicas parece criar sem esforço o que nenhum zelo pode aperfeiçoar. Na tragédia está incessantemente em busca de um motivo para comicidade, mas na comédia parece estar à vontade ou entregue ao puro deleite, como em uma maneira de pensar própria a sua natureza. Em suas cenas trágicas sempre falta algo, ao passo que na comédia ele frequentemente supera as expectativas ou as solicitações. Sua comédia encanta pelas reflexões e sua tragédia, na maioria das vezes, pelas circunstâncias e pela ação. Sua tragédia parece provir da habilidade; sua comédia, do instinto.
O vigor de suas cenas cômicas resistiu melhor às mudanças ocorridas nos costumes ou nos vocábulos em um século e meio. Como seus personagens agem segundo princípios gerados por paixões autênticas, muito pouco atingidas por convenções especiais, suas satisfações e desgostos são comuns a todas as épocas e lugares; são naturais e, portanto, perenes; as peculiaridades efêmeras dos costumes individuais são apenas acasos superficiais, por um breve momento brilhantes e encantadores, porém logo descoram em um matiz fosco, sem nenhum resquício da exuberância anterior; mas as distinções da paixão autêntica são as cores da natureza: elas impregnam o corpo todo e somente com ele perecem. Os conjuntos acidentais formados por métodos heterogêneos são desfeitos pelo acaso que os reuniu, mas a simplicidade uniforme das qualidades primitivas nem permite aumento nem admite declínio. A areia acumulada por uma enchente é espalhada por outra, mas a rocha permanece sempre em seu lugar. O fluxo do tempo, que incessantemente corrói o edifício de outros poetas, deixa incólume o diamante de Shakespeare.
Se há em cada nação, como creio, um estilo que jamais se torna obsoleto, uma certa dicção tão conforme e inata à analogia e aos princípios de sua língua que permanece estabelecida e inalterada, deve-se procurar essa base no comércio cotidiano da vida, entre aqueles que falam apenas para serem compreendidos, sem aspirarem à elegância. Os cultos estão sempre à caça de novidades do momento e os eruditos distanciam-se das formas estabelecidas na fala usual com a intenção de encontrar ou criar outras melhores, desejam distinguir-se do comum, quando o comum está certo; mas há uma conversação acima da grosseria e abaixo do refinamento na qual reside a justeza e onde esse poeta parece ter colhido seu diálogo cômico. Ele, portanto, é mais agradável ao ouvido da época atual do que qualquer outro autor igualmente antigo, e entre suas outras qualidades merece ser estudado como um dos mestres originais de nossa língua.
Essas observações não devem ser consideradas como invariavelmente constantes, mas como referências a uma verdade de cunho geral e predominante. Afirma-se que o diálogo informal de Shakespeare é fluente e claro, mas não totalmente isento de rudeza ou obscuridade; assim como um campo pode ser indubitavelmente fértil, embora tenha partes impróprias para o cultivo, elogiam-se suas personagens por serem naturais, embora seus sentimentos sejam por vezes forçados e suas ações, improváveis; do mesmo modo que a Terra, considerada no seu todo, é esférica, embora sua superfície apresente variações, com protuberâncias e depressões.
Shakespeare, tanto quanto qualidades, possui defeitos, e defeitos suficientes para obscurecer e superar qualquer outro mérito. Eu os exporei conforme me venham à mente, sem malícia invejosa ou veneração cega. Nenhum assunto pode ser discutido de maneira mais inofensiva do que as aspirações de um poeta morto à celebridade, e não merece atenção o fanatismo que eleva a inventividade acima da verdade.
Seu primeiro defeito é aquele ao qual pode ser imputada a maioria dos males nos livros e nos homens. Ele sacrifica a virtude à conveniência, e sua preocupação em agradar é tão maior do que em instruir que ele parece escrever sem nenhum objetivo moral. De suas obras, sem dúvida, pode-se compor uma ordem de deveres sociais, pois quem raciocina com sensatez necessariamente pensa segundo princípios morais; mas seus preceitos e axiomas brotam casualmente; ele não distribui com justiça o bem e o mal nem cuida de mostrar no virtuoso a censura ao perverso; conduz seus personagens indiferentemente para o certo e o errado e no fim deles se desembaraça sem nenhum outro cuidado, deixando seus exemplos agirem ao acaso. Esse defeito a barbárie de sua época não pode justificar, pois o dever de um escritor é sempre tornar o mundo melhor, e a justiça é uma virtude independente do tempo e do lugar.
Os enredos são frequentemente tão mal concebidos que um mínimo de reflexão pode aperfeiçoá-los e são desenvolvidos com uma tal displicência que ele mal parece se dar conta de seu próprio intuito. Desperdiça oportunidades de proporcionar o prazer ou a instrução que o curso de sua trama parece lhe impor e aparentemente rejeita situações mais comoventes em favor de outras mais fáceis.
É evidente que na última parte de suas peças falta um cuidado maior. Quando se aproximava o fim de sua obra, à vista de sua recompensa, ele abreviava o empenho para agarrar o provento. Por conseguinte, diminuía os esforços exatamente onde deveria exercê-los com mais vigor, e seu desfecho apresenta absurdos ou é mal construído.
Ele não levava em conta as diferenças de tempo ou de lugar, dando a uma época ou a uma nação, sem nenhuma hesitação, os costumes, as instituições e os modos de pensar de outra, às expensas não apenas da verossimilhança, mas também da probabilidade. Esses defeitos esforçou-se Pope, com maior empenho do que bom senso, em transferir para os seus supostos intermediários13. Não há motivo para se admirar ao deparar com Heitor citando Aristóteles14, uma vez que vemos a amor de Teseu e Hipólita associado à mitologia gótica de fadas. Shakespeare, na verdade, não foi o único transgressor da cronologia, pois na mesma época Sidney15, a quem não faltavam os benefícios da erudição, confundiu em sua Arcádia a era pastoril com a feudal, os tempos da inocência, tranquilidade e segurança com os de tumulto, violências e aventura.
Nas cenas cômicas, raramente ele é bem-sucedido quando suas personagens se envolvem em diálogos espirituosos e trocas de sarcasmo; suas pilhérias geralmente são grosseiras e sua jocosidade libertina; nem seus cavalheiros nem suas damas são polidos e não se distinguem muito de seus bufões por nenhum traço exterior de refinamento. Se ele reproduzia a conversação de sua época é difícil dizer: imagina-se comumente que o reinado de Elizabeth tenha sido um tempo de magnificência, formalidade e contenção, mas talvez o afrouxamento daquela severidade não fosse de muito bom gosto. Contudo, é possível que tenha havido, de algum modo, tipos de jovialidade preferíveis a outros, e um escritor deveria escolher o melhor.
Na tragédia, seu desempenho parece ter sido invariavelmente pior, visto ser maior seu esforço. As efusões da paixão, que a necessidade impõe, são em sua maioria comoventes e intensas, mas toda vez que requerem sua inventiva ou exigem mais de suas faculdades o produto de seus espasmos são tumores, mesquinhez, tédio e obscuridade16. –
Na narrativa, tende a uma dicção desproporcionalmente pomposa e a uma enfadonha sucessão de circunlóquios, conta mal e prolixamente o episódio, quando poderia fazê-lo de modo sucinto e simples. A narrativa, na poesia dramática, é por si entediante, dado não ser nem representada nem movimentada e impede o desenvolvimento da ação; portanto, deve ser sempre curta e reanimada por muitas interrupções. Shakespeare considerava-a incômoda e, em vez de torná-la mais leve, abreviando-a, tentava encarecê-la por meio da nobreza e da pompa.
Suas recitações ou monólogos são geralmente frios e fracos, pois sua força estava na natureza; quando busca, como outros autores trágicos, aproveitar o ensejo de ampliação e, ao contrário de indagar o que a ação demandava, mostrar sua riqueza de conhecimentos, ele raramente deixa de provocar indignação ou pena em seu leitor.
É uma característica sua vez ou outra emaranhar-se em um sentimento canhestro, que não consegue nem exprimir nem abandonar; debate-se com ele durante um certo tempo e, caso persista, manifesta-o por quaisquer palavras e deixa a tarefa de desembaraçá-lo e desenvolvê-lo para aqueles que têm mais tempo a lhe dedicar.
Nem sempre a linguagem é intrincada onde o pensamento é sutil, ou a imagem grandiosa onde as dificuldades são muito grandes; a adequação das palavras às coisas muitas vezes é negligenciada, e os sentimentos e as ideias pretensiosas frustram a atenção que atraem mediante termos melodiosos e figuras bombásticas.
Porém os admiradores desse grande poeta têm todos os motivos de lamentar quando ele, prestes a atingir sua qualidade suprema, parece irrevogavelmente decidido a mergulhá-los em tristeza e apaziguá-los com ternas emoções por meio do declínio da grandiosidade, das armadilhas da inocência ou dos sofrimentos do amor. O que faz de melhor ele logo deixa de fazer. A suavidade e a comoção logo são seguidas de algum chiste inútil ou subterfúgio vulgar. Mal começa a se mover, refreia-se, e o terror e a piedade, ainda nascendo no espírito, são detidos e destruídos por uma súbita frieza.
Um sofisma é, para Shakespeare, o que as miragens são para os viandantes: ele as segue em todas as aventuras, inevitavelmente se desvia de seu caminho e se atola em dificuldades. Abandona-se a sua má ascendência sobre seu espírito e suas seduções são irresistíveis. Seja qual for a dignidade ou profundidade de sua indagação, esteja ele ampliando o conhecimento ou intensificando o sentimento, ou ainda entretendo a concentração com eventos ou prendendo-a pela ansiedade, se um sofisma subitamente irrompe diante de si ele abandona sua obra. Um sofisma é a maçã dourada pela qual ele invariavelmente porá de lado seu ofício ou descerá de sua dignidade. Um sofisma, medíocre e inútil que fosse, dava-lhe tanto prazer que ele se contentava em comprá-lo às expensas da razão, do decoro e da verdade. Um sofisma era para ele a funesta Cleópatra pela qual perdeu o mundo, contente por fazê-lo.
Julgar-se-á estranho que, ao enumerar os defeitos desse escritor, eu não tenha ainda mencionado sua desatenção às unidades, sua transgressão daquelas leis que foram instituídas e estabelecidas pela autoridade em comum dos poetas e dos críticos.
Quanto às suas outras infrações da arte de escrever, deixo à crítica a tarefa de julgá-las, sem nenhuma outra intervenção em seu favor senão a devida a todo mérito humano: que suas qualidades sejam avaliadas juntamente com seus defeitos. Porém, quanto à censura que essa irregularidade possa lhe trazer, com todo o respeito devido à erudição a que terei de me opor, ousarei pôr à prova minha capacidade de defendê-lo.
Suas histórias, não sendo nem tragédias nem comédias, não estão sujeitas a nenhuma de suas leis; para toda a aprovação a que têm direito nada mais se requer senão que os revezes na ação sejam preparados a fim de que possam ser entendidos, que os incidentes sejam variados e comoventes, e as personagens, coerentes, verossímeis e definidas. Não se pretende nenhuma outra unidade e, portanto, não se deve procurá-la.
Em suas outras obras, ele manteve satisfatoriamente a unidade de ação. Na verdade, seu enredo não obedece a uma complicação e elucidação metódicas; não se esforça em esconder seu intuito apenas para revelá-lo depois, pois isso raramente ocorre na realidade, e Shakespeare é o poeta da natureza. Mas seu plano geralmente obedece à exigência de Aristóteles: um começo, um meio e um fim; um evento está ligado a outro, e a conclusão surge como uma consequência natural. Há talvez alguns incidentes dispensáveis, do mesmo modo que em outros poetas há muitas falas que apenas preenchem o tempo no palco; mas a ordem geral avança gradualmente, e o fim da peça é o fim da expectativa.
As unidades de tempo e de lugar, não as levou em conta, e é possível que um exame dos princípios em que se apoiam diminua sua importância e lhes retire a veneração que desde os tempos de Corneille17 lhes foi consagrada, pela conclusão de que deram mais trabalho ao poeta do que prazer ao público.
A necessidade de se observarem as unidades de tempo e de lugar nasce da suposta necessidade de tornar o drama verossímil. Os críticos afirmam ser impossível acreditar que uma ação desenvolvida no transcorrer de meses ou anos tenha se passado em três horas; ou que o espectador creia estar sentado no teatro enquanto embaixadores vão e vêm, entre reis distantes, enquanto exércitos são recrutados e cidades sitiadas, enquanto um proscrito anda ao léu e retorna, ou então que aquele a quem viram fazendo corte a sua amada lamenta a perda prematura de seu filho. O espírito repele uma mentira tão evidente, e a ficção perde sua força quando se afasta da semelhança com a realidade.
Da estreita limitação do tempo nasce inevitavelmente a restrição do lugar. O espectador, que está ciente de ter visto o primeiro ato em Alexandria, não pode imaginar que vê o próximo em Roma, uma distância a que nem mesmo os dragões de Medéia poderiam, em um intervalo de tempo tão curto, tê-lo transportado; ele sabe, com toda certeza, que não mudou de lugar e que esse lugar não pode se mover por si próprio, que o que era uma casa não pode se tornar uma planície, que o que era Tebas jamais pode ser Persépolis.
São essas as palavras solenes com as quais um crítico triunfa sobre a desgraça de um poeta anômalo e prevalece habitualmente sem nenhuma resistência ou objeção. É chegada a hora, portanto, de dizer-lhe, com a permissão de Shakespeare, que ele assume como princípio inquestionável uma posição que, no momento em que é formulada, o entendimento declara falsa. É mentira que uma representação seja confundida com a realidade, que uma fábula dramática tenha alguma vez realmente acontecido, ou, por um único instante, que se tenha nela jamais acreditado. A objeção advinda da impossibilidade de passai’ a primeira hora em Alexandria e a seguinte em Roma pretende que, iniciada a peça, o espectador realmente se imagine em Alexandria e creia que sua caminhada para o teatro tenha sido uma viagem ao Egito e que viva na época de Antônio e Cleópatra. Sem sombra de dúvida, aquele que pode imaginar isto pode imaginar mais. Aquele que toma o palco ao mesmo tempo pelo palácio dos Ptolomeus pode tomá-lo, em meia hora, pelo promontório de Áction. A ilusão, se for este o caso, não tem uma limitação determinada; se o espectador pode alguma vez ser levado a crer que Alexandre ou César são seus amigos íntimos, que um aposento iluminado a velas é a planície de Farsália ou a margem do Grânicos, encontra-se em um estado de exaltação fora do alcance da razão ou da verdade e das alturas da poesia divina pode desdenhar os limites da natureza terrena. Não há motivos para que um espírito, vagueando em êxtase, devesse contar as horas, ou para que uma hora não fosse um século nos cérebros ardentes que podem fazer do palco um campo.
A verdade é que os espectadores estão sempre de posse de suas faculdades e sabem, do primeiro ao último ato, que o palco é apenas um palco e que os atores são apenas atores. Eles vêm ouvir uma determinada quantidade de versos recitados com uma mímica adequada e entonação nobre. Os versos referem-se a alguma ação e ela deve se passar em algum lugar; mas as diferentes ações que compõem uma história podem ocorrer em lugares muito distantes uns dos outros, e que absurdo haverá em admitir que o espaço represente primeiro Atenas e depois a Sicília, que desde sempre se soube não ser nem a Sicília nem Atenas, mas um teatro moderno?
Por meio da imaginação, assim como se apresenta o lugar, o tempo pode ser dilatado; o período exigido pela trama transcorre em sua maior parte entre os atos, pois, no que diz respeito à ação representada, a duração real e a poética são a mesma coisa. Se no primeiro ato os preparativos para a guerra contra Mitridates na representação se passam em Romia, o acontecimento da guerra pode sem nenhum contra-senso ser representado no desfecho como tendo ocorrido em Pontos; sabemos que não há guerra alguma nem preparação para ela; sabemos que não estamos nem em Roma nem em Pontos; que tampouco Mitridates ou Luculo se acham diante de nós. O drama mostra imitações sucessivas e por que não poderia a segunda imitação representar uma ação acontecida anos antes da primeira se, estando tão estreitamente relacionadas, não é possível presumir senão que o tempo passou? O tempo é, de todos os modos de existência, o mais afeito à imaginação; concebe-se com facilidade tanto um lapso de anos quanto o transcorrer de horas. Em pensamento, podemos agilmente encurtar o tempo das ações reais e, portanto, de bom grado admitir sua contração quando vemos apenas sua imitação.
Perguntar-se-á como pode o drama comover se nele não se crê. Acredita-se nele com toda a crença devida a um drama. Acredita-se nele todas as vezes que ele comove, como um retrato fiel a um original na realidade; como uma representação para o espectador do que ele próprio sentiria se tivesse de fazer ou sofrer aquilo que se simula ter sido sofrido ou feito. O pensamento que nos toca o coração não é o de que os males que presenciamos sejam reais, mas sim o de que sejam males aos quais nós mesmos poderíamos estar expostos. Se há alguma ilusão, não é a de que creiamos nos atores, mas a de que por um momento nos imaginemos infelizes; porém, antes lamentamos a possibilidade do que cremos na presença da desgraça, como uma mãe chora por seu filho quando se lembra de que a morte possa tirá-lo de si. O prazer na tragédia provém de nossa consciência da ficção; se acreditássemos que os assassínios e as traições fossem reais, eles não mais nos agradariam.
As imitações causam dor ou prazer, não porque sejam confundidas com a realidade, mas porque nos recordam a realidade. Quando a imaginação se delicia com uma paisagem pintada, não julgamos que as árvores nos deem sombra, ou as fontes refrigério, mas pensamos em como seria agradável estar diante de fontes borbulhantes e bosques oscilantes como esses. Comovemo-nos ao ler a história de Henrique V, porém ninguém tomaria seu livro pelo campo de Agincourt. Uma representação dramática é um livro recitado simultaneamente a elementos que aumentam ou diminuem seu efeito. A comédia doméstica é muitas vezes mais eficaz no teatro do que no livro; a grande tragédia é sempre menos. O temperamento de Petruchio pode ser acentuado pelo trejeito, mas qual entonação ou gesto podem aspirar à dignidade ou à eloqüência do monólogo do Catão?18
A leitura de uma peça impressiona tanto quanto sua representação. É evidente, portanto, que não se crê que a ação seja real e, consequentemente, admite-se que entre os atos tenha-se passado um tempo mais longo ou mais curto, não devendo o espectador levar mais em conta o espaço ou duração de um drama do que o leitor de uma narrativa, diante de quem podem se passar em uma hora a vida de um herói ou as convulsões de um império.
Se Shakespeare tinha conhecimento das unidades e as rejeitou deliberadamente ou delas se desviou por uma feliz ignorância, é impossível verificar e inútil investigai’. Podemos imaginar sensatamente que, quando lhe veio a fama, não desejasse tomar conhecimento dos conselhos e advertências dos eruditos e dos críticos e que, por fim, resolutamente persistiu em uma prática que provavelmente iniciara por acaso. Uma vez que nada é essencial ao enredo senão a unidade de ação e dado que as de tempo e de lugar nascem obviamente de conjeturas infundadas e, ao restringir a extensão do drama, reduzem sua variedade, não creio que se deva lamentar o fato de que tenham sido conhecidas ou observadas por ele, nem que eu deveria, caso surgisse outro poeta semelhante, reprová-lo energicamente porque seu primeiro ato tenha se passado em Veneza e o seguinte em Chipre. Essas violações de regras meramente dogmáticas casam-se bem com a inclinação de Shakespeare para a abrangência, e essas censuras são próprias da crítica miúda e improcedente de Voltaire:
Non usque adeo permiscuit imis
Longus summa dies, ut non, si voce Metelli
Serventur leges, malint a Caesare tolli.19
Contudo, quando assim desprezo as regras dramáticas, não posso deixar de lembrar quanta perspicácia e erudição podem se levantar contra mim; a semelhantes autoridades receio opor resistência, não porque julgue ser esse assunto um daqueles que se deva a motivos melhores do que aqueles por mim encontrados. A conclusão das minhas indagações, de cuja imparcialidade seria ridículo me vangloriar, é que as unidades de tempo e de lugar não são essenciais a um bom drama; que, embora possam às vezes levar ao prazer, devem sempre ser sacrificadas aos encantos mais nobres da variedade e da instrução, e que uma peça escrita com uma obediência estrita às regras da crítica deve ser considerada como uma raridade de esmero, como o resultado de um artifício desnecessário e faustoso, mediante o qual se mostra antes o que é possível do que o que é necessário.
Quem, sem o desprezo de qualquer outra qualidade, observa irrepreensível mente todas as unidades merece a mesma aprovação concedida ao arquiteto que mostra todas as normas da arquitetura em uma fortaleza, sem diminuir sua resistência; porém, a principal beleza de uma cidadela é afastar o inimigo, e os maiores encantos de uma peça são imitar a natureza e instruir sobre a vida.
Talvez o que aqui escrevi, não como um axioma mas como resultado de ponderação, peça um reexame dos princípios do teatro. Minha própria temeridade quase chega a me assustar, e quando avalio a celebridade e o poder daqueles que sustentam parecer contrário me sinto prestes a quedar em um silêncio reverente, como Enéias abandonou a defesa de Tróia quando viu Netuno sacudir a muralha e Juno conduzir os sitiantes20.
Aqueles que meus argumentos não conseguiram convencer a um julgamento favorável a Shakespeare, se refletirem sobre as condições de sua vida facilmente desculparão sua ignorância.
Os feitos de todo homem, para que sejam avaliados com justiça, devem ser confrontados com as condições da época em que viveu e com as suas oportunidades particulares e, embora para um leitor um livro não seja melhor ou pior segundo as circunstâncias do autor, há sempre uma comparação tácita entre as obras humanas e as suas habilidades, e a indagação sobre a que distância ele pode estender suas metas ou com que alturas pode medir sua força natural é muito mais nobre do que aquela que se faz acerca do grau a ser atribuído a um desempenho em particular; a curiosidade está sempre ocupada tanto em descobrir os instrumentos como em avaliar a obra humana para saber quanto deve ser atribuído às capacidades originais e quanto a um auxílio casual ou fortuito. Os palácios do Peru ou do México eram habitações indubitavelmente acanhadas e desconfortáveis se comparadas com as moradias dos monarcas europeus; contudo, quem conseguiría deixar de se assombrar diante deles ao lembrar que foram construídos sem o uso do ferro?
A Inglaterra, à época de Shakespeare, ainda estava lutando para sair da barbárie. A filologia tinha sido transplantada para cá no reinado de Henrique VIII e as línguas eruditas haviam sido cultivadas com êxito por Lilly, Linacer e More; por Pole, Cheke e Gardiner e depois por Smith, Clerk, Haddon e Ascham21. O grego era agora ensinado aos meninos nas principais escolas, e quem aliava o requinte à instrução lia com grande empenho os poetas italianos e espanhóis. Mas a literatura ainda estava restrita aos eruditos notórios ou a homens e mulheres de alta posição. O povo era rude e ignorante, e saber ler e escrever era uma qualidade ainda valorizada por sua escassez.
As nações, tal como os indivíduos, têm sua infância. Um povo cujo interesse pela literatura acabou de ser despertado, ainda desconhecendo a verdadeira natureza das coisas, não sabe como avaliar aquilo que se pretende imitar. Tudo que se afasta das aparências habituais é sempre bem-vindo ao vulgo assim como à ingenuidade infantil e, em um país não esclarecido pelas letras, a população inteira consiste no vulgo. A atenção de quem então aspirava à instrução plebeia apoiava-se em aventuras, dragões e encantamentos. A morte de Artur constituía a leitura favorita.
Ao espírito que se regalou com as maravilhas voluptuosas da ficção não apetece a insipidez da verdade. Uma peça que imitasse apenas os acontecimentos ordinários do mundo causaria nos admiradores de Palmeirim e de Guy de Warwick uma impressão muito fraca; quem escrevia para um público semelhante era obrigado a procurar acontecimentos inusitados e empreendimentos prodigiosos, e aquela inverossimilhança que contrariava um conhecimento mais maduro era a principal qualidade das obras escritas para o interesse desassistido.
Os enredos do nosso autor são geralmente fornecidos pelos romances e é provável que ele tenha escolhido os mais populares, como os que eram bastante lidos e narrados, pois seu público não poderia tê-lo seguido no emaranhado do drama se desconhecesse o fio da história.
As histórias que encontramos agora somente em autores mais antigos eram a essa época acessíveis e conhecidos. O enredo de Como quiseres, que, conforme se crê, teria sido copiado do Gamelyn, de Chaucer, era um pequeno livreto naqueles tempos22 e o velho sr. Cibber23 recordava-se da história de Hamlet na prosa inglesa comum, que os críticos agora têm de buscar em Saxo Grammaticus.
Suas histórias inglesas foram tomadas das crônicas e baladas24 e, como os escritores antigos haviam se tornado conhecidos de seus conterrâneos por meio de versões, forneciam-lhes novos assuntos; ele transformou algumas das Vidas de Plutarco em peças quando North as traduziu25.
Seus enredos, quer pertençam à história, quer à ficção, são sempre repletos de incidentes, os quais atraíam mais facilmente o interesse de um povo rude do que o pensamento ou o raciocínio, e o poder do maravilhoso é tão grande, até mesmo sobre aqueles que o desprezam, que todos se deixam cativar intensamente mais pelas tragédias de Shakespeare do que pelas de qualquer outro escritor; os outros nos agradam por determinadas frases, mas ele sempre nos deixa ansiosos pelo acontecimento e talvez tenha sido, com a exceção de Homero, o mais capaz de manter o principal objetivo de um escritor ao incitar uma curiosidade incessante e insaciável e obrigando quem lê sua obra a prosseguir em sua leitura até o fim.
As exibições e a agitação que povoam suas peças derivam da mesma fonte. À medida que o conhecimento avança, o prazer passa da vista para o ouvido, mas retorna, ao declinar, deste para aquela. Aqueles a quem se exibiam os esforços do nosso autor eram mais versados em pompas ou cortejos do que na linguagem poética e talvez lhes fizessem falta acontecimentos que pudessem ser vistos ou postos em evidência como se fossem explicações sobre o diálogo. Ele sabia como agradar mais, e quanto a saber se o prazer causado por seus artifícios é mais conforme à natureza, ou se seu exemplo foi prejudicial à nação, nossa opinião ainda continua sendo a de que, em nosso palco, deve haver ação tanto quanto palavras e que a declamação pura é ouvida com muita frieza, ainda que melodiosa ou requintada, eloquente ou sublime.
Voltaire manifesta seu espanto diante da tolerância com que uma nação que assistiu à tragédia Catão26 recebe as extravagâncias de nosso autor. A resposta é que Addison fala a língua dos poetas, e Shakespeare a dos homens. Encontramos em Catão inúmeros encantos com que seu autor nos cativa, não vemos nada que nos informe acerca dos sentimentos ou atos humanos; colocamo-lo ao lado dos mais belos e mais nobres produtos que o juízo difunde ao se aliar à instrução, mas Otelo é o fruto vigoroso e ardente da observação fecundada pelo gênio. Catão proporciona um esplêndido espetáculo de costumes artificiais e fictícios e manifesta sentimentos legítimos e nobres, em uma dicção fluente, elevada e harmoniosa, mas suas expectativas e receios não fazem o coração bater; a composição nos lembra apenas o escritor; pronunciamos o nome de Catão, mas pensamos em Addison.
A obra de um escritor correto e metódico é um jardim arranjado minuciosamente e cultivado cuidadosamente, entremeado de sombras e perfumado de flores; a de Shakespeare é uma floresta na qual carvalhos estendem seus galhos e pinheiros se erguem para o céu, às vezes se intercalando com ervas e sarças e às vezes abrigando sob suas copas murtas e rosas, enchendo os olhos com pompa solene e brindando o espírito com uma infinita diversidade. Outros poetas exibem mostruários com raridades valiosas finamente executadas, esmeradamente moldadas e resplandecentes pelo polimento. Shakespeare abre uma mina que contém ouro e diamantes em uma abundância inesgotável, embora empanados por crostas, aviltados por impurezas e misturados com um amontoado de minerais inferiores.
É antiga a discussão quanto a Shakespeare dever sua superioridade a sua própria capacidade inata ou às habituais vantagens proporcionadas pela educação acadêmica, aos preceitos da ciência da crítica e aos exemplos de autores antigos.
Prevaleceu sempre uma tradição de que a Shakespeare faltava erudição, de que não havia recebido uma educação regular, nem era muito versado nas línguas mortas. Jonson27, seu amigo, afirma que “ele possuía algumas poucas tinturas de latim e menos ainda de grego”; [Jonson] além de não ter uma inclinação concebível para a mentira, escreveu em uma época em que o caráter e as conquistas de Shakespeare eram do conhecimento de muitos. Sua prova deveria, portanto, decidir a controvérsia, a menos que algum testemunho de igual calibre pudesse a ela se contrapor.
Alguns julgaram ter descoberto uma oculta erudição em muitas imitações de escritores antigos, mas os exemplos que creio ter salientado foram tirados de livros traduzidos em seu tempo: eram ou coincidências de pensamento comuns, como as que ocorrem àqueles que refletem sobre os mesmo assuntos, ou essas observações sobre a vida ou axiomas morais que surgem nas conversas e são amplamente transmitidas através de provérbios.
Encontrei a observação de que, nesta famosa frase, “Vá, eu o seguirei”, há uma tradução de I prae, sequar28. Disseram-me que quando Calibã, depois de um sonho agradável, diz “Implorei para dormir novamente”, o autor imita Anacreonte, que havia, como qualquer outro homem, desejado o mesmo em ocasião idêntica.
Há algumas passagens que podem ser consideradas como imitações, mas são tão poucas que a exceção apenas confirma a regra; ele as obteve de citações acidentais ou de transmissões orais e, assim como usou o que tinha, poderia ter usado mais se mais houvesse obtido.
A Comédia dos erros foi, reconhecidamente, tomada do Menaechmi, de Plauto29, da única peça de Plauto existente então em inglês. Não seria muito mais provável, portanto, que quem copiou essa teria copiado outras e que aquelas que não tinham sido traduzidas lhe eram inacessíveis?
Não se sabe com certeza se ele sabia as línguas modernas. O fato de que em suas peças haja algumas cenas em francês não prova muita coisa; ele podia pedir que fossem escritas e provavelmente, embora tivesse um certo conhecimento da língua, não poderia tê-las escrito sem um auxílio. Na história de Romeu e Julieta, observa-se que seguiu a tradução inglesa onde ela se afasta do italiano, mas isto, por outro lado, não constitui prova de sua ignorância do original. Ele devia copiar, não o que ele próprio conhecia, mas o que era conhecido de seu público.
É muito provável que tenha aprendido latim o suficiente para conhecer a construção da frase, mas nunca a ponto de ler fluentemente os autores romanos. No que tange a sua habilidade nas línguas modernas, não há fundamentos suficientes que me permitam defini-la; porém, como não se encontraram imitações dos autores franceses ou italianos, não obstante a poesia italiana fosse então muito apreciada, inclino-me a crer que lia pouco mais do que o inglês e escolheu para seus enredos apenas as histórias que encontrou traduzidas.
Pope30 observou, com muita justeza, que há muito saber espalhado por suas obras, mas se trata de um conhecimento que os livros não proporcionam. Quem quer entender Shakespeare não deve apenas examiná-lo em seu gabinete; deve procurar seu significado às vezes entre os passatempos do campo e às vezes entre os trabalhadores das oficinas.
Todavia, há provas suficientes de que era um leitor muito bom, e nossa língua não era naqueles tempos tão desprovida de livros que ele não pudesse se entregar prodigamente a sua curiosidade, sem percorrer a literatura estrangeira. Muitos dos autores romanos foram traduzidos, assim como alguns gregos; a Reforma havia provido o reino de erudição teológica; a maior parte dos objetos da investigação humana havia encontrado escritores ingleses, e a poesia fora cultivada não apenas com empenho mas também com êxito. Esse cabedal de conhecimentos bastava para que um espírito tão talentoso dele se apropriasse e o aperfeiçoasse.
Mas a maior parte de sua excelência era fruto de seu próprio gênio. Ele encontrou o teatro inglês em um estágio extremamente rudimentar; não houvera tentativas na tragédia ou na comédia mediante as quais teria sido possível descobrir até que ponto uma ou outra poderiam agradar. Nem personagem nem diálogo eram ainda conhecidos31. Pode-se dizer sem medo de errar que nos foram apresentados por Shakespeare e em algumas de suas cenas mais bem-sucedidas levou-os ao seu apogeu.
É difícil saber de que modo ele procedeu para seu aperfeiçoamento, pois a cronologia de suas obras ainda está por se estabelecer. Segundo Rowe32, “talvez não devamos procurar seu início nas obras menos perfeitas, como nos outros escritores; a participação da arte em suas realizações foi tão pequena em comparação com a natureza que, pelo que sei, na sua juventude, por terem sido as mais vigorosas, foram as melhores.”33 Mas à faculdade inata é dado apenas utilizar, conforme objetivos determinados, os instrumentos que o empenho fornece, ou a ocasião proporciona. A natureza não fornece conhecimento a ninguém e, quando as imagens provêm do estudo e da experiência, pode auxiliar apenas a pô-los em prática. Shakespeare, embora favorecido pela natureza, podia comunicar somente o que aprendera e, porque precisava ampliar suas ideias como os outros mortais pela aquisição gradativa, tornou-se como eles mais sábio com a idade, conseguiu mostrar melhor a vida, uma vez que a conhecia melhor, e instruir com maior eficácia, visto que estava ele próprio mais plenamente instruído.
Há um cuidado na observação e uma exatidão no discernimento que os livros e os preceitos não podem proporcionar, e disso deriva quase todo o mérito original e inato. Shakespeare deve ter observado a humanidade com uma perspicácia extremamente minuciosa e atenta. Os outros escritores tomam seus personagens emprestados aos seus predecessores e os diversificam apenas mediante a anexação de atributos acidentais dos costumes contemporâneos; a vestimenta varia um pouco, mas o corpo é o mesmo. Nosso autor tinha de fornecer tanto a matéria quanto a forma, pois exceto os personagens de Chaucer, ao qual não creio que ele deva muito, não havia escritores em inglês e talvez nem muitos nas outras línguas modernas que mostrassem a vida em suas cores originais.
A discussão acerca da benevolência ou malignidade inatas do homem ainda não havia começado. A especulação ainda não havia tentado analisar o espírito, seguir as paixões até suas origens, desenvolver os princípios seminais do vício e da virtude ou sondar as profundezas do coração, em busca das causas da ação. Todas essas investigações que desde a época em que a natureza se tornou o assunto da moda foram frequentemente feitas com um discernimento preciso, mas muitas vezes com uma sutileza inútil, estavam ainda por fazer. As narrativas com as quais se saciava a infância do saber exibiam somente os aspectos superficiais da ação, relatavam os eventos, mas omitiam as causas e eram construídas com o intuito antes de se deliciarem com maravilhas do que com a verdade. A humanidade não havia ainda sido objeto de estudos teóricos; quem quisesse conhecer o mundo tinha de coligir suas próprias observações, participando o mais possível de seus negócios e divertimentos.
Boyle34 dava-se por feliz em ser bem-nascido, porque isso favorecera sua curiosidade, ao facilitar seu caminho. Shakespeare não gozara de tal vantagem; veio a Londres como um aventureiro pobríssimo e viveu, durante algum tempo, de ocupações muito inferiores. Muitas obras de gênio e erudição foram produzidas em condições de vida que parecem muito pouco favoráveis ao pensamento ou à investigação; são tantas que quem as observa tende a julgar que vê o empenho e a perseverança predominar sobre toda influência exterior e eliminar todo auxílio e obstáculo diante deles. O gênio de Shakespeare não pôde ser vergado pelo peso da pobreza, nem restringido pela conversação limitada à qual estão condenados os homens miseráveis; seu espírito desvencilhou-se dos empecilhos impostos pela sua sorte, “como as gotas de orvalho na juba do leão”35.
Não obstante tenha tido de enfrentar tantas dificuldades e podido recorrer a tão pouca assistência para superá-las, foi capaz de adquirir um conhecimento preciso de muitos modos de vida e muitas combinações de tendências inatas, de diversificá-las em grande número, de marcá-las com diferenças sutis, assim como de mostrá-las em toda a sua luz mediante combinações características. Nesse aspecto de suas realizações, ele não tinha a quem imitar, mas foi ele próprio imitado por todos os escritores posteriores, e cabe duvidar de que se possam coligir em seus sucessores um número maior de máximas de conhecimento teórico ou mais regras de prudência prática do que os proporcionados por ele a seu país.
Tampouco sua atenção se restringiu às ações dos homens; ele foi um observador minucioso do mundo inanimado; suas descrições têm sempre algumas singularidades, coletadas na contemplação das coisas que realmente existem. Pode-se observar que os poetas mais antigos de muitas nações conservam sua reputação e que os talentos das gerações seguintes, após uma breve celebridade, mergulham no esquecimento. Os primeiros, sejam quem forem, precisam obter seus sentimentos e descrições diretamente do conhecimento; a semelhança é, portanto, exata, suas descrições podem ser confirmadas por qualquer um e seus sentimentos reconhecidos por qualquer coração. Aqueles que sua fama atrai para as mesmas investigações copiam em parte a eles, em parte a natureza, até que os livros de uma época adquiram uma autoridade que substitui a natureza, e a imitação, sempre por um pequeno desvio, torna-se por fim extravagante e displicente. Shakespeare, qualquer que seja seu assunto, a vida ou a natureza, mostra claramente que viu com seus próprios olhos; apresenta a imagem recebida, não a enfraquecida ou distorcida pela intervenção de outro espírito qualquer; o ignorante percebe que suas representações são justas, e o culto vê que são perfeitas.
Talvez não seja fácil encontrar um autor, à exceção de Homero, que tenha inventado tanto quanto Shakespeare, que tenha avançado tanto nas considerações das quais se ocupou, ou difundido por sua época ou país tantas ideias novas. A forma, os personagens, a linguagem e os modos de apresentação do teatro inglês são os seus. “Ele parece”, diz Dennis, “ter sido a verdadeira origem da nossa dicção trágica, isto é, do verso branco, muitas vezes diversificado por terminações dissílabas e trissílabas. A diversidade diferencia-a da dicção heroica e, trazendo-a para mais perto do uso comum, torna-a mais adequada à ação e ao diálogo. Esse tipo de verso se mostra quando escrevemos prosa e nas nossas conversas habituais.”36
Não sei se esse elogio é inteiramente correto. A terminação dissílaba, que o crítico com razão reserva ao drama, a meu ver deve ser encontrada não em Gorduc, reconhecidamente anterior ao nosso autor37, mas em Hieronnymo, cuja data, embora incerta38, tudo indica ser ao menos contemporânea de suas primeiras peças. Porém de uma coisa tenho certeza: ele foi o primeiro a mostrar como uma tragédia ou uma comédia podem agradar, dado não haver nenhuma obra teatral de algum escritor anterior cujo nome seja conhecido, exceto por antiquários e colecionadores de livros, que são procurados por serem raros, e que não o seriam se fossem tidos em muito apreço.
A ele deve-se atribuir a glória, salvo Spencer possa com ele dividi-la, de haver descoberto o grau de suavidade e harmonia de que a língua inglesa seria capaz. Há falas, talvez por vezes cenas, que possuem todo o refinamento de Rowe, sem sua efeminação. Na verdade, ele comumente se empenha em impressionar pela força e veemência de seu diálogo, mas atinge melhor seu objetivo quando tenta agradar pela suavidade.
Contudo, é preciso reconhecer, finalmente, que assim como lhe devemos tudo ele tem uma dívida para conosco, a saber, que embora muito de sua glória se deva à percepção e ao julgamento, por sua vez outro tanto se deve ao hábito e à veneração. Fixamos nossos olhos em seus encantos e nos desviamos de suas monstruosidades, assim como nele toleramos aquilo que em outro odiaríamos ou desprezaríamos. Se tolerássemos sem glorificar, o respeito pelo pai de nosso teatro poderia nos desculpar, porém vi no livro de um crítico moderno um conjunto de anomalias que, mostrando ter ele deturpado nossa língua de todos os modos possíveis, são não obstante reunidas por seus admiradores como um monumento em sua honra39.
Há nele cenas de mérito inquestionável e eterno, mas talvez nenhuma peça que, se fosse hoje exibida como uma obra de um escritor contemporâneo, seria vista até fim. Na verdade, não creio absolutamente que suas obras tenham sido elaboradas segundo suas próprias ideias de perfeição; quando contentavam o público, satisfaziam ao escritor. Raramente os autores, muito embora mais ávidos da fama do que Shakespeare, alçam-se muito acima do padrão de sua própria época; aumentar um pouco aquilo que é o melhor sempre será suficiente para o louvor no presente, e aqueles que se acham alçados à celebridade anseiam por acreditar em seus encomiastas e poupar o esforço de discutir consigo mesmos.
Não é provável que Shakespeare tenha julgado suas obras dignas da posteridade, que tenha se arrogado o direito a algum tributo ideal dos tempos futuros, ou tivesse algum interesse além da popularidade ou do lucro imediatos. Encenadas suas peças, sua expectativa chegava a seu termo; não rogava ao leitor por nenhuma honra a mais. Portanto, não teve nenhum escrúpulo em repetir a mesma pilhéria em muitos diálogos, ou amarrar diferentes enredos mediante a mesma complicação, o que lhe pode ao menos ser perdoado por aqueles que se lembram de que, nas quatro comédias de Congreve, duas terminam com um casamento simulado, com um engano improvável e que, afora serem ou não plausíveis, ele não inventou40.
Tão descuidado da celebridade futura foi este grande poeta que,embora recolhido ao conforto e à abundância, mas enquanto não havia inteiramente “caído no vale dos anos”41, antes que a fadiga o entediasse ou a enfermidade o incapacitasse, não compilou suas obras nem desejou salvar as que já haviam sido publicadas da falsificação que as obscurecia ou garantir às restantes um destino melhor, apresentando-as ao mundo em seu estado original.
Das peças que levam o nome de Shakespeare nas últimas edições, a maioria não foi publicada até cerca de sete anos, e as poucas que vieram à luz durante a sua vida são claramente lançadas ao mundo sem a assistência do autor e, portanto, provavelmente sem o seu conhecimento.
De todos os editores, clandestinos ou declarados, a negligência e a inabilidade foram suficientemente demonstradas pelos últimos organizadores. As falhas de todos eles são, na verdade, muito numerosas e grosseiras, e não apenas adulteraram muitas passagens, talvez além da possibilidade de recuperação, mas também atraíram a suspeita para outras que são somente obscurecidas pelo estilo ou pela inabilidade e pedantismo do escritor. Alterar é mais fácil do que explicar, e a temeridade é uma qualidade mais comum do que o zelo. Aqueles que perceberam a necessidade de, até certo ponto, aventar hipóteses estavam inclinados a se deixar levar um pouco mais longe. Tivesse o autor publicado suas próprias obras, poderíamos sentar-nos calmamente para deslindar seus enredos e esclarecer suas passagens obscuras; mas agora rasgamos o que não conseguimos desembaraçar e jogamos fora o que porventura não entendemos.
As falhas existem em número maior do que poderia ter havido sem a concorrência de muitas causas. O estilo de Shakespeare era em si mesmo incorreto, confuso e ininteligível; com certeza suas obras eram transcritas para os autores por quem dificilmente as entendia; eram transmitidas por copistas, igualmente inábeis, que multiplicavam ainda mais os erros; algumas vezes, talvez mutiladas pelos atores a fim de encurtar as falas e, enfim, impressas sem a correção das provas.
Nesse estado permaneceram não, como o Dr. Warburton imagina, porque estavam abandonadas42, mas porque a arte da edição ainda não havia sido empregada nas línguas modernas e nossos ancestrais estavam tão acostumados com o desleixo dos impressores ingleses que conseguiam a ele se resignar. Por fim, Rowe levou a cabo uma edição43, não porque um poeta devia ser publicado por outro, pois Rowe não parece ter dado muita importância à correção ou à explicação, mas porque as obras de nosso autor poderiam se apresentar como as de seus pares, com os aditamentos de uma biografia e de um prefácio. Rowe foi clamorosamente censurado por não cumprir o que não havia prometido, e é hora de fazer-lhe justiça, reconhecendo que, embora não pareça ter-se importado com outro tipo de adulteração além dos erros do impressor, mesmo assim fez muitas emendas – caso não houvessem sido feitas anteriormente – que seus antecessores aceitaram sem notar e, se feitas por eles, encheriam páginas e páginas com censuras à estupidez responsável pelas faltas cometidas, com a exibição dos absurdos que acarretavam, com exposições pomposas da nova interpretação e autocongratulações pela ventura de descobri-la.
Quanto aos outros editores, conservei seus prefácios44, assim como tomei emprestada a Rowe a biografia do autor, embora seja desprovida de elegância ou vigor, pois narra tudo que até o presente se pode saber e, portanto, merece constar de todas as edições posteriores.
Há muitos anos a nação contentara-se razoavelmente com o desempenho do sr. Rowe, quando o sr. Pope a informou do verdadeiro estado do texto de Shakespeare, demonstrou que ele estava extremamente deturpado e deu motivos para crer que havia meios de o corrigir. Confrontou as cópias antigas, que jamais alguém pensara em examinar, e devolveu a muitos versos sua forma original; contudo, com uma crítica muito sumária, rejeitou tudo que não lhe agradava e tendeu mais à amputação do que à cura.
Ao que parece, Pope julgava essa tarefa indigna de suas habilidades, mostrando-se incapaz de superar seu desprezo pelo “ofício entendiante de um editor”. Ele entendeu apenas parte de seu empreendimento. O trabalho de um editor, contudo, como outras tarefas maçantes, é extremamente necessário; mas um crítico revisor desempenharia mal seu ofício se desprovido de qualidades muito distintas do tédio. Ao examinar uma obra adulterada, deve ter diante de si todos os significados, com todas as expressões possíveis. Deve ser essa a amplitude de sua reflexão e a riqueza de sua língua. Dentre todas as leituras possíveis, ele deve ser capaz de selecionar o que é mais adequado ao estado, às opiniões e tipos de linguagem predominantes em cada época assim como à tendência do pensamento e da expressão de seu autor em particular. Deve ser esse o seu conhecimento e o seu gosto. A crítica especultiva requer mais do que a humanidade possui e aquele que a exerce com o maior mérito muitas vezes necessita de indulgência. Isso é tudo que é preciso dizer acerca do entediante ofício de um editor.
A confiança é a consequência comum do sucesso. Aqueles a quem se louvou ruidosamente alguma espécie de excelência logo concluem que suas capacidades são universais. A edição de Pope ficou abaixo de suas próprias expectativas, e o que mais o desgostava era descobrir que havia deixado algo para outros fazerem e no fim de sua vida mostrou-se hostil à crítica.
Conservei todas as suas notas, a fim de que nenhum fragmento de um escritor tão ilustre se perdesse; seu prefácio, valioso tanto pela composição refinada quanto pelas observações corretas, contendo uma crítica tão ampla de sobre seu autor que pouco deixa a acrescentar e tão exata que mal admite contestação, faz com que todo editor se sinta inclinado a suprimi-lo, não fosse sua inserção exigida por todos os leitores.
Pope foi seguido por Theobald45, homem de espírito limitado e de parcos conhecimentos, desprovido do brilho do talento inato e essencial ao gênio, pouco provido da luz artificial da erudição, mas ávido de exatidão minuciosa e nada indolente em buscá-la. Ele compilou as cópias antigas e corrigiu muitos erros. De um homem tão impacientemente rigoroso se deveria esperar mais, mas o pouco que fez foi em geral correto.
Em suas informações acerca das cópias e das edições não se deve confiar sem uma verificação. Muitas vezes ele fala vagamente das cópias, quando possui apenas uma. Em sua relação das edições, refere-se aos dois primeiros fólios como altamente confiáveis e ao terceiro como de autoridade apenas mediana; mas a verdade é que o primeiro tem o mesmo valor que todos os outros e que o restante dele se desvia unicamente em virtude da negligência do impressor. Quem possui qualquer um dos fólios tem todos, à exceção daqueles diferenças que a simples repetição das edições acarretará. Compilei-as todas desde o início, mas depois utilizei-me apenas da primeira.
Das suas notas conservei em geral aquelas que ele próprio fez em sua segunda edição, exceto quando foram refutadas pelos comentaristas subsequentes ou eram pormenorizadas demais para merecer ser preservadas. Algumas vezes adotei seu restabelecimento de uma vírgula, sem acolher o panegírico que dedicou a si próprio pela sua façanha. A desmedida excrescência de seu estilo muitas vezes cortei, o seu triunfo sobre Pope e Rowe algumas vezes suprimi e sua exibição desprezível frequentemente ocultei; porém, em algumas passagens eu os expus, do mesmo modo que ele próprio o faria, para divertimento do leitor, a fim de que o enfatuado vazio de algumas notas possa justificar ou desculpar a redução do restante.
Theobald, fraco e ignorante, mesquinho e ateu, petulante e pomposo, graças à boa sorte de ter Pope como seu inimigo, salvou-se e salvou-se sozinho, com renome, de seu empreendimento. Assim, de bom grado o mundo apoia aqueles que solicitam favor, contra os que exigem reverência, e é prontamente louvado aquele a quem ninguém pode invejar.
Nosso autor caiu, então, nas mão de sir Thomas Hanmer, o editor de Oxford46, um homem a meu ver notavelmente dotado pela natureza para tais estudos. Ele possuía, o que constitui requisito fundamental para a revisão crítica, aquela intuição mediante a qual num átimo se descobre a intenção do poeta e aquela sagacidade intelectual que prontamente expede seu ofício do modo mais fácil. Indubitavelmente, ele leu muito; seu conhecimento dos costumes, opiniões e tradições parece ter sido abrangente, e muitas vezes é erudito sem disso fazer alarde. Raramente se pronuncia sobre o que não entende sem tentar descobrir ou deduzir um sentido e às vezes prontamente logra o que um pouco mais de atenção teria encontrado. Quando não tem muita certeza de que o autor pretendia estar gramaticalmente correto, diligentemente o corrige. Shakespeare dava mais atenção à sucessão de ideias do que às palavras e, como sua linguagem não se destinava ao leitor, submetia-a a suas necessidades, a fim de se comunicar com o público.
A atenção dada por Hanmer à metrificação foi demasiadamente censurada. O ritmo estava alterado em tantas passagens, graças ao silêncio laborioso de alguns editores, com a silenciosa aquiescência dos demais, que ele se julgou autorizado a estender um pouco mais a licença já tão tolerada; quanto a suas correções em geral, é preciso confessar que na maioria das vezes são justas e feitas comumente de modo a violentar o texto o mínimo possível.
Porém, ao inserir na página suas correções, inventadas ou tomadas de empréstimo, sem nenhuma informação sobre cópias variantes, ele apropriou-se do trabalho de seus predecessores e privou sua própria edição de parte de sua autoridade47. Na verdade, sua confiança tanto em si quanto nos outros era exagerada; ele está convencido da correção de tudo que fora feito por Pope e Theobald, parece não suspeitar da falibilidade de um crítico e, consequentemente, foi muito natural que reivindicasse o que generosamente concedia.
Como ele nunca escreveu sem antes proceder a uma cuidadosa investigação e uma reflexão rigorosa, acolhi todas as suas notas e acredito que qualquer leitor desejaria mais.
Do último editor é mais difícil falar48. Deve-se respeito à alta posição, brandura para com a reputação em vida e reverência ao gênio e à erudição; mas não tem o direito de se sentir ofendido pela liberdade quem dela tantas vezes deu exemplo, nem muito cioso do modo como julgam as notas que ele nunca deveria ter considerado como parte de suas ocupações importantes e as quais, imagino, uma vez mitigado o ardor da composição, não mais classifica como uma de suas efusões bem-sucedidas.
O primeiro e fundamental defeito de seu comentário é a aquiescência aos seus pensamentos imediatos, aquela precipitação gerada pela consciência da pronta perspicácia e aquela confiança que tem a presunção de realizar pelo exame da superfície o que tão somente o esforço pode conseguir pelo mergulho nas profundezas. Suas notas revelam às vezes interpretações despropositadas e suposições improváveis; às vezes ele atribui ao autor um significado mais profundo do que a frase admite e em outras descobre disparates quando o sentido é evidente para qualquer outro leitor. Mas a quantidade de suas correções oportunas e justas é igualmente frequente e sua interpretação de passagens obscuras, eruditas e argutas.
De suas notas rejeitei geralmente aquelas contra as quais a voz corrente do público se manifestou ou aquelas cuja própria incongruência prontamente interdita e que, creio eu, o próprio autor desejaria ver esquecidas. Quanto às demais, em parte as acolhi com a mais viva aprovação, inserindo no texto a leitura apresentada, em parte deixei ao leitor a decisão, dado serem discutíveis, embora especiosas, e em parte censurei sem restrições, mas, seguramente, sem amarga malevolência e, espero, sem intenção de insultar.
Não me apraz observar, ao rever meus escritos, a quantidade de papéis gasta em refutações. Quem quer que examine as revoluções na erudição e os vários problemas de maior ou menor importância, aos quais o talento e a razão devotaram suas habilidades, deve lamentar o insucesso da investigação e os lentos progressos da verdade, quando pondera que a maior parte do esforço de todo escritor consiste apenas na destruição daqueles que o precederam. O primeiro cuidado do construtor de um sistema é demolir os edifícios intactos. A principal aspiração de quem comenta um autor é mostrar o quanto os outros comentadores o deturparam e obscureceram. As opiniões predominantes em uma época, tomadas como verdades acima da controvérsia, são refutadas e rejeitadas em outra e ressurgem como aceitas em épocas muito distantes. Desse modo, o espírito humano mantém-se em movimento, sem que progrida. Desse modo, às vezes a verdade e o erro e por vezes oposições entre dois enganos alternam-se em uma invasão recíproca. A maré do conhecimento aparente que jorra sobre uma geração reflui e deixa uma outra desnuda e árida; os súbitos meteoros da inteligência, que durante alguma tempo parecem emitir seus raios de luz sobre plagas sombrias, de um átimo recolhem seu brilho e devolvem os mortais ao seu andar tateante.
Essas ascensões e declínios da celebridade e as contestações às quais estarão inevitavelmente expostos todos aqueles que aperfeiçoam o conhecimento, uma vez que deles não estão salvos nem os mais eminentes e brilhantes que a humanidade produziu, podem sem dúvida ser pacientemente suportados pelos críticos e comentadores, a quem é permitido tão somente incluir-se no rol dos satélites de seus autores. “Como é possível que peçais misericórdia”, diz o herói de Homero a seu cativo, “quando sabeis que aquilo que suportais agora é apenas o que um outro dia haverá de cair sobre Aquiles?”49
O renome do dr. Warburton bastou para conferir celebridade àqueles que poderiam se alçar a antagonistas, e suas notas provocaram um clamor ruidoso demais para serem inquestionáveis. Seus principais opositores foram os autores de The canons of criticism e do Revisal of Shakespeare’s text, dos quais um ridiculariza seus erros com petulância leviana, bastante adequada à frivolidade da controvérsia e o outro investe contra eles com uma maldade abominável, como se estivesse fazendo justiça a um assassino ou incendiário. Se um ferroa como uma mosca, suga um pouco de sangue, voeja alegremente e volta em busca de um pouco mais, o outro morde como uma serpente e de bom grado deixaria atrás de si infecções e gangrena. Quando penso em um, acompanhado de seus cúmplices, lembro-me de Coriolano, que tinha medo de que “donzelas com espetos e mancebos com pedras o apunhalassem em batalhas de brincadeira”50; quando o outro me vem ao pensamento, lembro-me da façanha de Macbeth:
A falcon tow’ring in his pride of place,
Was by a rousing owl hawk’d at and kill’d.51
Façamos-lhe justiça, porém. Um é arguto e o outro, erudito. Ambos possuem perspicácia suficiente para descobrir equívocos e ambos avançaram algumas interpretações plausíveis de trechos obscuros; mas quando se arvoram em teóricos e retificadores revela-se como nos enganamos ao avaliar nossas próprias habilidades, e o pouco que puderam realizar devia ensiná-los a ser mais tolerantes com os esforços dos outros.
Antes da edição do dr. Warburton, havia publicado seu Critical observations on Shakespeare o sr. Upton52, hábil em línguas e familiarizado com livros, mas aparentemente desprovido de inspiração vigorosa ou de gosto apurado. Muitas de suas explicações são interessantes e proveitosas, porém ele, ao mesmo tempo, tendo muito embora admitido se opor à excessiva segurança dos editores e seguir as cópias antigas, é incapaz de refrear a fúria de corrigir, ainda que seu ardor seja mal assistido por sua capacidade. Todo empírico53 insensível, quando exaltado por um experimento bem-sucedido, arvora-se em teórico, e o laborioso cotejador, em um malfadado momento, diverte-se em especular.
Um Critical, historical and explanatory notes, sobre Shakespeare, foi igualmente publicado pelo dr. Grey, cuja leitura atenta dos escritores ingleses antigos lhe permitiu fazer algumas observações proveitosas. O que prometeu fez com razoável competência, mas, como não pretende realizar uma crítica nem categórica nem corretiva, faz antes uso de sua memória do que de sua argúcia. Seria preferível que todos aqueles cujo conhecimento não superasse o seu se empenhassem em imitar sua modéstia.
Posso dizer com toda sinceridade acerca de meus predecessores o mesmo que, espero, digam a meu respeito: que nenhum deixou de aperfeiçoar Shakespeare e que não haja um só a quem eu não deva alguma ajuda ou informação. Minha intenção foi referir tudo que neles obtive ao seu verdadeiro autor, e pode-se estar certo de que, quando não atribuí a outro, foi porque acreditei, ao escrever, que a mim pertencia. Em alguns casos, talvez outros tenham se antecipado a mim, mas toda vez que percebo estar usurpando as observações de outro comentador de bom grado transfiro as honras, grandes ou pequenas, ao primeiro pretendente, pois seu direito, que a ele somente pertence, está acima da disputa; o segundo pode provar suas pretensões apenas a si mesmo e nem sempre é capaz, com razoável segurança, de distinguir da lembrança a invenção.
Tratei a todos com delicadeza, cuidado que não observaram entre si. Não é fácil descobrir a que realmente se deve a acrimônia de um escoliasta. Os assuntos que lhe cabe discutir são de somenos importância; não envolvem nem a propriedade nem a licença, tampouco levam em consideração o interesse de seitas ou partidos. As diversas maneiras de ler e as diferentes interpretações de um trecho parecem ser questões que poderiam exercer a argúcia, sem que envolvessem paixões. Porém, seja porque “as questiúnculas são o orgulho dos homens medíocres”54 e a vaidade se aproveita dos menores motivos, seja porque todas as divergências de opinião, até mesmo naqueles que não mais conseguem defendê-la, enfurecem os homens orgulhosos, vislumbra-se nos comentários um traço involuntário de invectiva e desdém mais impaciente e virulento do que o manifestado pelo mais colérico dos polemistas políticos contra aqueles que foi contratado para difamar.
E possível que a frivolidade do assunto leve à veemência da ação: quando o fato investigado está tão próximo da inexistência que escapa à atenção, seu volume deve ser aumentado pela ira e pela grita: aquilo a que, em seu estado original, seriam todos indiferentes pode atrair a atenção quando se lhe acrescenta a reputação de um nome. Um comentador, com efeito, sente-se bastante tentado a suprir pela- violência o que lhe falta em mérito, espalhar à larga sua pequena fortuna e fazer com que provoque um grande efeito aquilo a que nenhuma arte ou empenho consegue infundir ânimo.
As notas que tomei emprestadas ou escrevi são ou explicativas, nas quais se elucidam dificuldades, ou críticas, nas quais se apontam defeitos ou méritos, ou retificativas, nas quais se corrigem as adulterações.
As explicações transcritas de outros, caso eu não tenha acrescentado outra interpretação, são em geral por mim consideradas cometas; de qualquer forma, tacitamente admito não ter nada melhor a propor.
Depois de todos os esforços de todos os editores, encontrei muitos trechos que provavelmente constituem um obstáculo à maioria dos leitores e julguei meu dever facilitar sua leitura. É inevitável que um comentador escreva muito pouco para alguns e demasiado para outros. O que ele pode fazer é decidir o que é necessário segundo lhe dita a experiência e, por mais que pondere, acabará por explicar muitas linhas que ao letrado parecerão bastante claras e se omitir em outras para as quais o desprovido de instrução necessitará de seu auxílio. Essas desaprovações são meramente relativas e devem ser toleradas em silêncio. Procurei não ser nem inutilmente repetitivo nem excessivamente lacônico, e espero haver tornado o pensamento do meu autor acessível a muitos que receiam folheá-lo e oferecer ao público um prazer inofensivo e adequado.
Não se deve esperar de um escoliasta uma explicação perfeita de um autor que não seja regular e coerente, mas inconstante e caprichoso, rico em alusões improvisadas e insinuações extravagantes. Todos os comentários individuais, quando os nomes são omitidos, em poucos anos são irremediavelmente apagados, e os costumes demasiado insignificantes para atrair a atenção da lei, tais como tipos de vestimenta, formalidades sociais, regras de convivência, disposição do mobiliário e práticas de cortesia, que naturalmente ocorrem no diálogo cotidiano, são tão efêmeros e fortuitos que dificilmente são conservados ou recuperados. O que é possível saber é obtido por acaso, entre papéis ignorados e inaproveitáveis, folheados comumente com outros propósitos. Um pouco desse conhecimento todos os homens possuem, mas muito não é possível a nenhum; contudo, quando um autor conquistou a atenção do público, aqueles que podem contribuir ainda mais para a sua elucidação comunicam suas descobertas e o tempo traz à luz o que havia escapado ao empenho.
Ao tempo fui obrigado a confiar muitas passagens que, embora obscuras para mim, talvez algum dia sejam explicadas, tendo, espero, esclarecido algumas que outros omitiram ou entenderam mal, às vezes mediante observações sumárias ou indicações secundárias, como por exemplo as que cada editor acrescentou segundo sua vontade e às vezes por meio de comentários mais pormenorizados do que o assunto parecera merecer, pois o que é mais difícil nem sempre é mais importante, e para um editor nada que torne obscuro seu autor é insignificante.
As qualidades ou defeitos poéticos não fiz muito empenho em comentar. Algumas peças contêm um número maior e outras menor de comentários apreciativos, mas essa diferença não está proporcionalmente relacionada ao mérito, e sim distribuída segundo o capricho que me permiti nesta parte de meu trabalho. Ao leitor, creio eu, raramente agrada ver seu julgamento antecipado; é natural se deliciar mais com o que nós próprios encontramos ou fazemos do que com o que recebemos. O julgamento, como qualquer outra faculdade, é aperfeiçoado pela prática, e seu progresso é retardado pela submissão a decisões ditatoriais, do mesmo modo que a memória se entorpece com o uso de um livro de anotações.
Ao fim da maioria das peças acrescentei breves apreciações, contendo uma desaprovação das falhas em geral ou elogio às qualidades, julgamento cujo grau de coincidência com a opinião corrente ignoro; contudo, nenhuma pretensão de idiossincrasia fez com que dela me desviasse. Não entrei em nenhum pormenor ou particularidade e, portanto, deve-se esperar que haja muito a louvar nas peças desaprovadas e, nas louvadas, muito a ser desaprovado.
O aspecto no qual todos os editores, em sua crítica, sucessivamente concentraram grandes esforços, dando oportunidade à mais arrogante exibição e incitando a mais aguda acrimônia, é a correção de passagens adulteradas, para as quais a atenção do público havia sido atraída graças à violência da disputa entre Pope e Theobald e mantida pela perseguição que, como uma espécie de conspiração,- desde então se promoveu contra todos os editores de Shakespeare.
É inquestionável que muitas passagens se deterioraram ao longo de todas as edições; tentou-se sua restauração apenas por meio do cotejo de cópias ou da argúcia especulativa. O ofício do cotejador é seguro e fácil; o do especulador, perigoso e difícil. Contudo, como somente uma cópia da maioria das peças foi conservada, nem o perigo deve ser evitado nem a dificuldade recusada.
Algumas das interpretações resultantes dessa competição entre retificações feitas até o presente como produtos do empenho de cada editor foram por mim antecipadas no texto; elas devem ser consideradas, a meu ver, como suficientemente provadas; há as que, por serem claramente equivocadas, simplesmente rejeitei; outras incluí nas notas, sem reparos ou aprovação, indeciso entre a objeção e a defesa; e outras ainda, que me pareceram especiosas, embora incorretas, foram inseridas e acompanhadas das devidas restrições.
Organizadas as observações de outros, restou-me, por fim, procurar reparar seus equívocos e remediar suas omissões. Cotejei as cópias que pude obter e mais desejaria, porém os compiladores dessas raridades não me pareceram muito expansivos. Forneci uma enumeração das edições que a sorte ou a generosidade depositaram em minhas mãos, a fim de não ser acusado de desdenhar do que não era capaz de fazer.
Pelo exame das cópias antigas, logo descobri que os últimos editores, com todo o alarde de seu zelo, permitiram que muitas passagens desautorizadas fossem conservadas e se contentaram com a versão do texto estabelecido por Rowe, mesmo quando tinham conhecimento de sua arbitrariedade e, com um pouco mais de reflexão, poderiam descobrir que estavam erradas. Algumas dessas alterações consistem apenas na rejeição de uma palavra por outra que lhe parecia mais elegante ou mais clara. Essas adulterações muitas vezes retifiquei discretamente, pois a história de nossa língua e o verdadeiro vigor de nossas palavras somente podem ser conservados se livrarmos da adulteração os textos dos autores. Outras, bastante numerosas, suavizaram a cadência ou regularizaram o metro; neste último caso não fui tão rigoroso; quando se tratava apenas da inversão de uma palavra ou da inserção ou omissão de uma partícula, algumas vezes mantive o verso, pois a variação das cópias é tão grande que facilmente se podem permitir algumas licenças. Mas não deixei que essa prática fosse levada muito longe e restaurei a dicção original onde quer que, por algum motivo, pudesse ser preferida.
As correções realizadas mediante a comparação de cópias foram inseridas no texto; algumas vezes, quando o resultado era praticamente imperceptível, sem nenhuma observação e outras vezes acompanhadas de uma justificativa da mudança.
Por inevitável que muitas vezes seja a especulação, a ela não me entreguei temerária ou liberalmente. Tenho por princípio que a interpretação dos livros antigos está provavelmente certa e, portanto, não deve ser perturbada em favor da elegância, da clareza ou do simples aperfeiçoamento do significado. Isso porque, embora não se deva dar muito crédito à fidelidade nem ao bom senso dos primeiros editores, ainda assim é provável que aqueles que tiveram a cópia diante de seus olhos leram-na mais corretamente do que quem o fez apenas na imaginação. Mas é evidente que muitas vezes cometeram eixos singulares por ignorância ou negligência e que, portanto, a crítica pode fazer a devida tentativa, mantendo-se entre a ousadia e a timidez.
Essa é a crítica que tentei exercer e, onde uma passagem pareceu inextricavelmente confusa, esforcei-me em descobrir como o sentido podia lhe ser devolvido com a menor violência possível. Mas empenho- me sempre, em primeiro lugar, em examinar o texto antigo e tentar saber se há alguma fenda por meio da qual ele possa ser elucidado; nem o próprio Huet55 me acusaria de me esquivar ao trabalho da pesquisa pela ambição de mudar. Nesse modesto empreendimento não fui mal- sucedido. Salvei muitos versos das violações da temeridade e preservei várias cenas da usurpação da emenda. Adotei a opinião dos romanos de que é mais honroso salvar um cidadão do que matar um inimigo e tive mais cuidado em proteger do que atacar.
Conservei a distribuição usual das peças em atos, não obstante crer que ela, em quase todas as peças, seja desprovida de legitimidade. Algumas que estão divididas nas recentes edições não o estão no primeiro fólio, e outras que nele se encontram divididas não o estão nas cópias anteriores. A convenção atual do teatro requer quatro intervalos na peça, mas poucas, quando muito, das obras de nosso autor podem ser estritamente dispostas desse modo. Um ato, no drama, passa-se sem a alteração do tempo ou mudança de lugar. Uma pausa inicia um novo ato. Em toda ação real e, portanto, em- toda imitação, os intervalos podem ser mais ou menos numerosos, sendo pois acidental e arbitrária toda restrição a cinco atos. Shakespeare sabia-o e assim procedeu; suas peças foram escritas e inicialmente impressas sem quebra de continuidade e deveriam hoje ser apresentadas com breves pausas, sem interrupção segundo mude a cena ou se requeira o transcorrer de um tempo considerável. Esse método suprimida de uma só vez inúmeros absurdos.
Ao devolver as obras do autor a sua integridade, considerei a pontuação como de minha inteira competência, pois que cuidado poderia ter com dois pontos e com vírgulas quem deturpou palavras e sentenças? Tudo que seria possível fazer mediante a correção da pontuação foi, portanto, feito sem alarde; em algumas peças com muito cuidado e em outras com menos; é difícil manter os olhos constantemente fixos em átomos efêmeros ou um pensamento dispersivo sempre concentrado na verdade efêmera.
A mesma liberdade foi tomada com umas poucas partículas ou outras palavras de pouca importância. Algumas vezes as inseri ou omiti, sem mais comentários. Fiz o que por vezes os outros editores sempre fizeram e que, realmente, o estado do texto pode suficientemente justificar.
A maioria dos leitores, em vez de nos censurar por ninharias passageiras, admirar-se-á de que a simples bagatelas se tenha despendido tanto trabalho, debatido com tanta consideração e em termos tão solenes. A esses respondo sem hesitação que estão emitindo juízos sobre uma arte que não entendem; contudo, não posso inteiramente reprová-los por sua ignorância nem afiançar que se tornariam, em geral, mais úteis, mais felizes ou mais sábios por meio da crítica letrada.
Quanto mais uso faço da conjetura, mais aprendo a nela pouco me fiar; depois que editei umas poucas peças, resolvi não inserir no texto nenhuma das minhas interpretações. Congratulo-me hoje por essa cautela, pois a cada dia aumenta minha dúvida quanto às minhas correções.
Uma vez que restringi meus voos imaginativos às notas de rodapé, não se deve censurá-los com muita severidade, dado que a eles me permiti unicamente em seus próprios domínios. Não há nenhum mal na conjetura quando ela se apresenta como tal, e, enquanto o texto permanece ileso, essas mudanças podem ser apresentadas sem perigo algum, dado que não são consideradas necessárias ou indubitáveis nem mesmo por quem as propõe.
Se minhas interpretações têm escasso valor, não foram presunçosamente apresentadas ou tediosamente impostas. Eu poderia ter escrito notas mais longas, pois a arte de redigi-las não apresenta dificuldade. Esse trabalho se faz, primeiramente, atacando a estupidez, a negligência e a mediocridade asinina de todos os editores antecedentes e mostrando, em tudo que antes e depois se fez, a elementaridade e a inépcia da antiga exegese, estabelecendo depois a verdadeira interpretação com uma longa paráfrase, concluindo com ruidosos aplausos pela descoberta e um desejo prudente do progresso e florescimento da genuína crítica.
Tudo isso se pode fazer e quiçá algumas vezes até mesmo sem nenhuma impertinência. Porém, sempre suspeitei de que a interpretação está certa quando requer muitas palavras para provar que está errada, e a retificação, errada quando não pode ser admitida como certa senão a custa de muito esforço. A justeza de uma boa restauração imediatamente se impõe e o preceito moral quod dubitas ne feceris56 pode perfeitamente aplicar-se à crítica.
É natural o marujo temer a praia que vê repleta de destroços. Vi pessoal mente tantas críticas temerárias acabarem mal que me rendi à cautela. Presenciei a cada página o Engenho em luta com seus próprios sofismas e a Erudição confusa com a multiplicidade de seus pareceres. Fui obrigado a reprovar quem admirava e não pude deixar de refletir, enquanto proscrevia suas emendas, que muito breve a mesma sorte me caberia e que muitas das versões que havia corrigido poderiam ser justificadas e reestabelecidas.
Criticks I saw, that other ’s names efface,
And fix their own, with labour, in the
place;
Their own, like others, soon their place
resign ‘d,
Or disappear’d, and left the first behind.
Pope57
Não deveria causar admiração nem a outros nem ao próprio crítico especulativo que ele possa muitas vezes se equivocar, caso se leve em conta que sua arte não se pauta por um método ou uma verdade fundamental e axiomática que regule asserções subordinadas. A probabilidade de erro renova-se a cada tentativa; um ligeiro equívoco na compreensão de uma passagem, um eventual descuido na conexão entre as partes bastam para fazê-lo não apenas cometer erros mas erros ridículos, e quando é mais bem-sucedido produz apenas uma versão dentre as muitas plausíveis e aquele que sugere uma outra sempre poderá reclamar seus direitos.
Triste é a condição na qual o perigo se oculta sob o prazer. Dificilmente se resiste às tentações da correção. A especulação proporciona toda a alegria e todo o orgulho da invenção, e quem uma vez logrou uma alteração feliz sente um prazer intenso demais para ponderar sobre as objeções que se poderão erguer contra ela.
Contudo, a crítica especulativa foi muito proveitosa ao mundo letrado, e eu jamais pretenderia depreciar um trabalho ao qual se entregaram tantos espíritos brilhantes desde o florescimento da erudição até nossa própria época, do Bispo de Aleria ao inglês Bentley58 60. Os críticos dos autores antigos, no exercício de seu intelecto, tiveram muitos recursos de que o editor de Shakespeare está inevitavelmente desprovido. Eles se ocupam de línguas gramaticalmente estabelecidas, cuja construção contribui de tal modo para a argúcia que há em Homero um número muito menor de passagens ininteligíveis do que em Chaucer. As palavras possuem não apenas uma regência conhecida mas também quantidades fixas que orientam e restringem a escolha. Geralmente, há mais do que um manuscrito e eles poucas vezes concorrem para os mesmos equívocos. Contudo, Scaliger pôde confessar a Salmasius a escassa satisfação que lhe proporcionaram suas correções. Illudunt nobis conjecturae nostrae, quarum nos pudet, posteaquam in meliores codices incidimus59. Lipsius pôde queixar-se de que os críticos estavam cometendo erros ao tentarem eliminá-los: Utolim vitiis, ita nunc remediis laboratur60. De fato, onde se deve apenas fazer conjeturas, as correções de Scaliger e Lipsius, não obstante sua argúcia e erudição extraordinárias, são muitas vezes vagas e discutíveis como a minha ou a de Theobald.
É possível que não me censurem mais por ter cometido erros do que por ter feito pouco, por criar no público expectativas que, por fim, não cumpri. A expectativa da ignorância é infinita e a do conhecimento, muitas vezes tirânica. É difícil contentar aqueles que desconhecem o que exigem ou aqueles que exigem propositalmente o que julgam impossível obter. Na verdade, a ninguém desapontei mais do que a mim mesmo; contudo, não poupei esforços em executar minha tarefa. Na obra inteira nem uma única passagem que me pareceu deturpada deixei de tentar restaurar, assim como nenhuma obscura que eu não tenha me empenhado em elucidar. Em muitos casos fracassei como os demais; e, depois de todos os meus esforços, em muitos outros recuei e confessei meu repúdio. Não omiti, com pedante superioridade, o que é igualmente difícil para o leitor e para mim, mas quando não me foi possível esclarecê-lo reconheci minha ignorância. Eu poderia facilmente ter acumulado uma grande quantidade de erudição aparente a propósito de cenas pouco complexas, porém não se deve imputar ao descaso aquilo que, não sendo necessário, não foi feito, ou que, tendo sido comentado à saciedade por outros, nada mais lhe acrescentei.
As notas são muitas vezes necessárias, porém males necessários. Possa todo aquele que, não estando familiarizado com a capacidade de Shakespeare e que almeja sentir o maior prazer que o teatro pode proporcionar, ler cada peça da primeira à última cena, ignorando inteiramente todos os seus comentadores. Quando sua fantasia alçar voo, não desça a cada correção ou explicação. Quando estiver inteiramente absorto, desdenhe igualmente lembrar-se da reputação de Theobald e de Pope. Que leia do começo ao fim, por entre o brilho e a obscuridade, por entre a perfeição e a adulteração; que conserve sua compreensão do diálogo e seu interesse pelo enredo. E, quando os prazeres da novidade tiverem cessado, que atente para a exatidão e leia os comentadores.
As passagens especiais são esclarecidas pelas notas, mas o efeito geral da obra se enfraquece. O espírito sente-se aliviado com a interrupção; os pensamentos desviam-se do assunto principal, o leitor entediado não imagina por que motivo e finalmente abandona o livro que tão cuidadosamente estudara.
Não se devem investigar as partes antes que o todo tenha sido examinado; há uma espécie de distância intelectual necessária à compreensão do plano global e das verdadeiras proporções de toda grande obra; uma observação minuciosa revela as menores graciosidades, mas a beleza do todo não mais se discerne.
Não é muito agradável pensar quão pouco a sucessão de editores acrescentou à capacidade de agradar que tem o seu autor. Ele foi lido, admirado, estudado e imitado quando ainda se encontrava adulterado por todas as inadequações que a ignorância e o descaso poderiam ter acumulado sobre ele, quando nem a versão fora ainda retificada em suas alusões entendidas; contudo, mesmo então Dryden declarou “que Shakespeare foi o homem que, de todos os poetas modernos e talvez os antigos, possuía a alma mais completa. Todas as imagens da natureza ainda nele moravam e ele as pintou graças, não ao esforço, mas a sua boa estrela: quando descreve algo, além de vê-lo, vós também o sentis. Aqueles que o acusam de ser pouco instruído fazem-lhe o maior elogio: sua erudição era inata; ele não necessitava das lentes dos livros para ler a natureza; olhava para dentro de si e lá a encontrava. Não se pode dizer que ele seja sempre o mesmo; se o fosse, seria uma ofensa compará-lo com o maior da humanidade. Muitas vezes é banal e insípido; sua veia cômica degenera em trocadilhos, seu genuíno entusiasmo em linguagem bombástica. Mas é sempre grandioso quando alguma ocasião solene se lhe apresenta. Ninguém pode dizer que ele se tenha alguma vez se defrontado com um assunto à altura do seu engenho sem que se tenha então alçado acima dos demais poetas:
Quantum lenta solent inter viburna cupressi.61
É lamentável que um semelhante autor requeira um comentário, que sua linguagem tenha se tornado obsoleta ou seus sentimentos, obscuros. Porém é ocioso alimentar desejos que estão além do alcance dos homens; que o que inevitavelmente acontece a todos tenha ocorrido a Shakespeare, em virtude do acaso ou do tempo; e que, mais do que padeceu qualquer outro escritor desde a utilização dos tipos, sofreu-o em virtude do desprezo que voltava à fama, ou talvez em virtude daquele espírito superior, que desdenhou de suas próprias realizações quando comparadas com sua capacidade e julgou indignas de serem conservadas essas mesmas obras cuja restauração e exegese os críticos das épocas seguintes deveriam disputar em busca da celebridade.
Como os candidatos à fama inferior, submeto-me ao julgamento do público e desejaria poder fazer meu comentário com uma confiança igual ao encorajamento que tive a honra de receber. Toda obra dessa espécie é por natureza deficiente, e eu deveria me sentir menos ansioso pela sentença se ela devesse ser pronunciada apenas pelos talentosos e pelos letrados.
Samuel Johnson
1) Aristóteles, Metafísica 1.5. (N.T.)
2) Horácio, Epístolas II.i.39. (N.T.)
3) Cícero, Cartas familiares XVI.8. (N.T.)
4) Hieroclis commentarius in Aurea Carmina. (N.T.)
5) Petrônio, Satyricon I.i. (N.T.)
6) No prefácio à sua edição de Shakespeare (1725). (N.T.)
7) Addison diz o mesmo, no Spectator Nc419. (N.T.)
8) John Dennis (1657-1734) foi dramaturgo, porém é mais conhecido como crítico. Entre outras obras, escreveu The advancement and reformation of modem poetry (1701), Essay on the genius and writings of Shakespeare (1712). Thomas Rymer, um dos mais rígidos críticos ingleses do século XVII. (N.T.)
9) Kenrick aprovou esta passagem na sua resenha, no Monthly Review, em novembro de 1765. (N.T.)
10) Horário, Arte poética II, vv. 343-344. (N.T.)
11) John Heming e Henry Condell, membros da companhia de atores de Shakespeare, “editaram” suas peças cm 1623. (N.T.)
12) Voltaire censura a cena das duas sentinelas no seu Apelo a todas as nações; as palavras de lago a Brabâncio, tanto no Apelo quanto no Prólogo do tradutor à sua tradução de Júlio César. Rymer havia anteriormente censurado a cena de abertura do Otelo, em seu Breve resumo da tragédia. A cena dos coveiros, em Hamlet, contudo, parece ter sido a que mais suscitou a ira de Voltaire, pois é mencionada nas Cartas filosóficas, na sua Dissertação sobre a tragédia antiga e moderna e novamente no Apelo. Anos mais tarde ele voltaria ao mesmo tema na sua Carta à Academia Francesa. (N.T.)
13) Preface to Shakespeare (1725). “Os numerosos tropeços e erros crassos dos primeiros editores das suas obras são responsáveis pelo anacronismo de Heitor-Aristóteles e pela convicção geral quanto à ignorância de Shakespeare.” (N.T.)
14) Troilos e Cressida II.ii.166-167. (N.T.)
15) Sir Philip Sidney (1554-1583), aristocrata e erudito que, com outros pares, recebera Giordano Bruno na Inglaterra. Uma das suas obras mais famosas é o Apologie for poetry (1583). (N.T.)
16) Cf. Addison, Spectator N2 39 e 285. (N.T.)
17) Pierre Corneille se pronunciara acerca das três unidades, desde 1638 (Sentiments de L´Académie sur le Cid)> principalmente em 1660, no terceiro dos seus Discours dramatiques. (N.T.)
18) Catão, de Addison (1713), 52 ato, cena 1. Joseph Addison (1672-1719), mais conhecido hoje como o ensaísta que, no jornal Tatlere depois no Spectator, junto com Steele, conta-se entre òs precursores da crítica literária moderna. Sua série de artigos mais famosa é formada pelos ensaios N2 411-421, sob o nome de The pleasures ofthe imagination. (N.T.)
19) Lucano, Farsalia III. 138-140. “Este longo dia não confundiu a grandeza e a baixeza a tal ponto que as leis, devessem elas ser defendidas pela voz de um Metelo, não preferissem ser suprimidas por César.” Trata-se de uma fala de César em resposta a seu opositor, Metelo, e seu sentido, no contexto, é que: tanto a demagogia senatorial quanto o populismo dos generais são igualmente opressoras da liberdade individual sustentada pela lei civil. Tradução de Alceu Dias Lima. (N.T.)
20) Eneida II. 610-615. (N.T.)
21) William Lily foi autor de uma famosa gramática do latim; Thomas More escreveu várias obras nessa língua e traduziu Lucianos; Stephen Gardiner e Reginald Pole, eruditos e homens de Estado, tinham ligações com Cambridge; tanto Sir Thomas Smith quanto Waltcr Haddon foram professores e, mais tarde, ocuparam um alto cargo naquela universidade; John Clerk foi capelão de Wolsey, chanceler de Henrique VIII e bispo de Bath e Wells. Johnson editou as obras em inglês de Roger Ascham em 1761, embora o editor nominal tenha sido James Bennet. (N.T.)
22) O Conto de Gamelyn não é mais atribuído a Chaucer. Esse conto foi reaproveitado posteriormente no Rosalynde, de Thomas Lodge (1590), que, por sua vez, forneceu o enredo de Shakespeare. (N.T.)
23) Colley Cibber, ator e dramaturgo. Deve ter visto uma edição da narrativa História de Hamblet, publicada pela primeira vez em 1608. A história de Hamlet é encontrada anteriormente na Historia Danica, de Saxo, publicada em 1514. (N.T.)
24) Johnson refere-se a Rei Lear e suas filhas, mas essa balada é posterior à peça de Shakespeare. (N.T.)
25) A tradução de Sir Thomas North foi publicada pela primeira vez em 1579. (N.T.)
26) Apelo a todas as nações. (N.T.)
27) Ben Jonson (1573-1637), contemporâneo de Shakespeare e autor de Volpone, or the fox, encenada no Teatro Globe em 1609. (N.T.)
28) Ricardo III I.i. 144. (N.T.)
29) Segundo Sherbo, Shakespeare não poderia tê-lo feito, pois a tradução de W. W. do Menaechmi foi publicada em 1595. (N.T.)
30) Alexander Pope (1688-1744), considerado por seus contemporâneos um dos maiores poetas ingleses, tradutor de Ilíada e autor de, entre outras obras, o Essay on man (traduzido para o português por Paulo Vizioli, Editora Nova Alexandria), e do que pode ser considerado como um sumário da teoria crítica do século XVIII, o Essay on criticism. (N.T.)
31) Johnson tinha pouco conhecimento do teatro na época de Shakespeare. Mas isso era comum e ocorre também com Dryden, Rowe e Hanmer, entre outros. (N.T.)
32) Nicholas Rowe (1674-1718), dramaturgo, escreveu peças consideradas agradáveis, porém sem maior fôlego, tendo recebido o título de Poeta Laureado quando da ascensão de George I ao trono. (N.T.)
33) Some account of the life of Mr. William Shakespeare (1709). (N.T.)
34) Robert Boyle, cientista e um dos fundadores da Royal Society. (N.T.)
35) Troilos e Cressida III.iii, 224. (N.T.)
36) Essay on the genius and writings of Shakespeare (1712). (N.T.)
37) Escrita por T. Norton e T. Sackville, em 1562. (N.T.)
38) Segundo Sherbo, uma referência à obra de Thomas Kyd, Spanish tragedy, publicada por volta de 1592, geralmente conhecida como Hieronnymo ou Jeronimo. (N.T.)
39) Trata-se do Criticai observations on Shakespeare, de John Upton (1746). (N.T.)
40) William Congreve (1670-1729), dramaturgo. As duas peças a que se refere Johnson são The old bachelor e Lovefor love. (N.T.)
41) Otelo III.ii.269-270. (N.T.)
42) Prefácio de sua edição das obras de Shakespeare (1747). (N.T.)
43) A edição de Rowe foi publicada em 1709. (N.T.)
44) Segundo Sherbo, a versão de Some account of the life of Mr. William Shakespeare, reimpressa no primeiro volume da edição de Johnson, é na verdade a revisão do original feita por Pope (op. cit., nota 7, p. 93). (N.T.)
45) Lewis Theobald, cuja edição de Shakespeare foi publicada em 1733. (N.T.)
46) A edição de Hanmer foi publicada entre 1743 e 1744. Johnson a havia criticado no seu Miscellaneous observations on the tragedy of Macbeth (1745).
47) Segundo Sherbo, uma edição anônima de Shakespeare fora publicada em 1745, dando a conhecer a quantidade de correções ocultas, assim como as roubadas na versão de Hanmer. (N.T.)
48) William Warburton, cuja edição fora publicada cm 1747. Nomeado bispo de Gloucester em 1759. (N.T.)
49) Ilíada XXI, 106-114. (N.T.)
50) Coriolano IV, iv, 5-6. (N.T.)
51) II.iv.12-13. “Um falcão orgulhoso em sua majestade foi por uma coruja desperta capturado e morto.” (N.T.)
52) John Upton, cuja edição de Shakespeare foi publicada em 1746. (N.T.)
53) Sherbo observa, quanto ao significado desse termo, que no século XVIII possuía uma conotação negativa: “Em seu Dicionário Johnson utiliza a definição de Quincy: “Um provador ou experimentador; pessoas que não têm uma verdadeira educação ou conhecimento da prática concreta e se apoiam apenas no que ouvem e na observação'”. A mesma depreciação observa-se no termo “mechanic”, com o sentido de assalariada, que executa trabalho manual. (N.T.)
54) Shakespeare, Henrique VI (4.1.106.) (N.T.)
55) Daniel Huet, célebre erudito francês, autor do De interpretatione libri duo (1661). (N.T.)
56) Plínio, Epístolas I.xviii: “Quando em dúvida, não o fareis.” (N.T.)
57) Temple of fame 11.37-40: “Críticos vi que outros nomes apagam/ E põem o seu próprio, com a labuta, em seu lugar;/ O seu próprio, como os outros, logo cedem seu lugar,/ Ou desapareceram, deixando atrás de si o outro”. (N.T.)
58) Joannes Andreas, escrivão da biblioteca do Vaticano, à época de Paulo II e de Sextus II, editou Heródoto, Lívio, Aulo Gélio e outros autores clássicos. Dr. Richard Bentley, famoso como editor de Milton e tido como um dos maiores editores da Inglaterra. (N.T.)
59) Epistolae (1627), epístola CCXLVIII: “Nossas especulações troçam de nós, envergonhando-nos, quando posteriormente nos deparamos com outras melhores”. Tanto Scaliger quando Salmasius foram grandes humanistas. (N.T.)
60) Justus Lipsius (1547-1606), erudito flamengo. Prefácio “Ad lectorem” para seu Annales Cornelii Taciti liber comentarius siv notae (1581): “Assim como antes trabalhamos duramente nas adulterações, agora lutamos contra as correções”. (N.T.)
61) Essay of dramatic poesy 1.79-80. A citação latina é de Virgílio, Écloga 1.25: “Como os ciprestes habitualmente estão entre os carregados vimeiros”. (N.T.)