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As mulheres não representavam na época de Shakespeare. Elas só tiveram acesso aos palcos londrinos em 1660, algumas décadas depois de sua morte. Desta forma, não é de estranhar que a peça tenha apenas duas personagens femininas, Ofélia e a rainha Gertrudes, e quase nenhum contato físico. A paixão, portanto, era evidenciada através do texto, o que não chegava a constituir nenhuma desvantagem insuperável, já que é pelo texto que a platéia toma conhecimento de tudo o que ocorre no palco e fora dele.

Ao longo do texto, o casamento da rainha Gertrudes com o rei Cláudio, irmão de seu falecido marido, é tido como incestuoso. Hamlet, em seu primeiro solilóquio, se queixa do luto rápido observado por sua mãe, que “se apressou com tanta sofreguidão para lençóis incestuosos” (to post/ With such dexterity to incestuous sheets!) (1.2). O fantasma do pai de Hamlet era da mesma opinião, referindo-se ao irmão como “aquele monstro incestuoso e adúltero” (that incestuous, that adulterate beast) (1.5). Nos textos bíblicos, no entanto, não há uma condenação formal a este respeito. Ao contrário, na ausência de filhos, o casamento com o cunhado era um procedimento recomendado pela lei do levirato.

O adultério sugerido pelo fantasma é uma acusação grave, mas esta é a única vez em que o assunto é mencionado na peça. O falecido rei possivelmente afastava-se de casa por longos períodos, a exemplo da campanha militar empreendida contra a vizinha Noruega, o que talvez favorecesse a proximidade do casal transgressor. A idéia deste afastamento paterno é reforçada pelo apego do jovem príncipe a Yorick, a quem ele se refere com saudade, na cena do cemitério: “ele me carregou mil vezes nas costas” (he hath borne me on his back a thousand times) (5.1). Nada disso, no entanto, causaria estranheza à platéia da época: os reis costumavam combater à frente de seus exércitos e seria natural que o bobo da corte se mostrasse simpático com seu futuro soberano. Na dúvida, a favor do réu. O adultério pode ter sido uma força de expressão do fantasma, que se comunicava em elegantes decassílabos. Afinal, em duas ocasiões ele pediu a Hamlet que nada fizesse contra sua mãe.

Ofélia é vítima de uma vigilância cerrada tanto por parte de seu pai Polônio quanto do irmão Laertes. Na terceira cena do Primeiro Ato eles são pródigos em recomendações. O irmão pede a ela que se coloque “fora do alcance e do perigo do desejo” (Out of the shot and danger of desire) (1.3) e o pai recomenda que “seja mais parcimoniosa em mostrar sua presença virginal” (Be somewhat scanter of your maiden presence) (1.3), até proibir de todo que ela entre em contato com o príncipe. Ela, como boa filha, promete obedecer.

Curiosamente, para demonstrar ao casal real que o destempero do príncipe decorre de seu afastamento de Ofélia, Polônio promete que “vai deixar a filha solta para ele” (I’ll loose my daughter to him) (2.2). Assim, quando o príncipe for passear pelas galerias do palácio, encontrará Ofélia “acidentalmente”, dando oportunidade a Polônio e ao rei de bisbilhotarem a conversa dos namorados. Na sua ânsia de prestar serviços ao rei, o conselheiro esquece-se de que “deixar a filha solta” é uma flagrante contradição de seus desvelos paternos.

Na cena seguinte (3.1), Ofélia candidamente devolve os presentes recebidos de Hamlet, argumentando que “os ricos presentes tornam-se pobres, quando aqueles que os oferecem já não mais demonstram afeto” (Rich gifts wax poor, when givers prove unkind) (3.1). Logo em seguida, num diálogo cruel, o príncipe descarrega em Ofélia todo seu rancor. Trata-se, provavelmente, de uma simulação, para dar a Polônio e ao rei a impressão de loucura pretendida.

Na cena seguinte, a pobre Ofélia, certamente magoadíssima, senta-se ao lado do príncipe por ocasião da apresentação da peça que incriminaria o rei. Ela, com boas razões, mostra-se esquiva durante toda a representação, muito embora o príncipe aparente bom humor.

Ofélia retorna na quinta cena do Quarto Ato, enlouquecida após a morte do pai, entoando canções um tanto lascivas. Longe de depor contra a jovem, sua atitude apenas confirma a fala de Teseu, o duque de Atenas, em “Sonho de um Noite de Verão” (A Midsummer Night’s Dream): “o louco, o amante e o poeta são todos feitos de imaginação” (The lunatic, the lover and the poet,/ Are of imagination all compact) (5.1). Ofélia, na sua loucura, vive num novo mundo de ficção, ao qual só ela tem acesso, finalmente livre de todas as formas de opressão.

Na sua conversa dura com a mãe, Hamlet diz que “preciso ser cruel para ser honesto” (I must be cruel only to be kind) (3.4). De fato, ele precisou ser cruel com Polônio, a quem assassinou por engano, para ser fiel ao pedido do fantasma do pai. Hamlet preferiu não correr riscos, deixando Ofélia à margem de seus planos, sendo cruel também com ela. Sabe-se de seu suicídio na sétima e última cena do Quarto Ato, talvez por não suportar três perdas: o pai, assassinado inexplicavelmente, o namorado, aparentemente enlouquecido, e o irmão, distante da Dinamarca.

Na cena do cemitério, seu vigilante irmão Laertes espera que “de sua formosa carne imaculada brotem violetas” (from her fair and unpolluted flesh may violets spring) (5.1), o que parece indicar que ela resistiu bem às investidas do príncipe Hamlet.

Pobre Hamlet, ele gostava de Ofélia, conforme suas próprias palavras: “Eu amava Ofélia. Quarenta mil irmãos, com todo seu amor, não ultrapassariam o que eu sentia por ela” (I lov’d Ophelia; forty thousand brothers/ Could not, with all their quantity of love,/ Make up my sum) (5.1). Infelizmente, ele não confiou nela, talvez com receio do poder que o indiscreto Polônio exercia sobre a filha.

Muito se discute sobre uma eventual atração indevida de Hamlet por sua mãe. Aparentemente a indignação do príncipe decorre apenas, como bem disse a rainha, “da morte do pai e do nosso apressado casamento” (His father’s death and our o’erhasty marriage) (2.2). As mulheres, com seu espírito prático, sabem como ninguém entender o que se passa nas complexas relações familiares.