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Machado de Assis (1839-1908) foi um grande leitor de Shakespeare, particularmente de “Hamlet”, bem como de outras peças, que direta ou indiretamente estão mencionadas em sua extensa obra.

No romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), o personagem principal assim descreve sua própria morte, no primeiro capítulo do livro:

“E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o ‘undiscovered country’ de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego como quem se retira tarde do espetáculo”.

Pois bem, as palavras “undiscovered country” fazem parte do famoso solilóquio “Ser ou não ser, eis a questão”. A propósito, há uma tradução de Machado de Assis deste solilóquio, na coletânea Ocidentais (1879-1880), que ele intitulou “To be or not to be”. A expressão “undiscovered country” aparece no poema machadiano como “esse eterno país misterioso”. Esta passagem volta a ser lembrada no capítulo XXIII do romance, em que ele se refere à morte como “esse duelo do ser e do não ser”. Mais adiante, uma outra expressão do solilóquio é mencionada, no capítulo LXXXIII, neste trecho:

“Que me cumpria fazer? Era o caso de Hamlet: ou dobrar-me à fortuna, ou lutar com ela ou subjugá-la”.

O famoso solilóquio aparece como referência em alguns contos. Em “A Mulher de Preto”, Estêvão reconhece: “Eis-me na dúvida de Hamlet”. No conto “Aurora Sem Dia”, há a seguinte descrição do personagem Luís Tinoco:

“Ele respigava nas alheias produções uma coleção de alusões e nomes literários, com que fazia as despesas de sua erudição, e não lhe era preciso, por exemplo, ter lido Shakespeare para falar do ‘to be or not to be’, do balcão de Julieta e das torturas de Otelo”.

Em “Uns Braços”, está a expressão “dormir e talvez sonhar”. No conto “Troca de Datas”, Machado cita no original: “That is the rub”, sem traduzir a frase nem referir-se à sua origem. O elegante autor pressupõe que seu leitor leu “Hamlet” no original e, portanto, dispensa referências adicionais. O mesmo ocorre na crônica “História de 15 Dias”, em que aparece a expressão “That is the question” e numa outra crônica, de 30 de dezembro de 1894, em que Machado usa a frase: Outrageous Fortune!

Em “Quincas Borba”, no capítulo CVI, Machado faz uma paródia de uma fala bem conhecida de Hamlet: “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que pode sonhar tua filosofia” (There are more things in heaven and earth, Horatio,/ Then are dreamt of in your philosophy) (1.5). Variantes desta fala aparecem no conto “A Cartomante” e em três crônicas machadianas.

Machado faz muitas referências a Ofélia, a namorada do príncipe Hamlet. Um de seus poemas é justamente uma paráfrase designada “A Morte de Ofélia”, que encerra o livro “Falenas” (1870). No conto “A Chave”, Machado cita no original a fala famosa de Laertes: “Too much water hast thou, poor Ophelia!” Na crítica sobre Eça de Queirós e “O Primo Basílio”, a jovem Ofélia é mencionada como uma “das mais castas figuras do teatro”, entre outras “eternas figuras, sobre as quais hão de repousar eternamente os olhos dos homens”.

A cena do encontro de Hamlet, Horácio e os coveiros no cemitério tamnbém mereceu muitos comentários de Machado. No capítulo CVIII do romance “Esaú e Jacó”, o narrador comenta: “Ainda uma vez, não há novidade nos enterros. Daí o provável tédio dos coveiros, abrindo e fechando covas todos os dias. Não cantam, como os de Hamlet, que temperam as tristezas do ofício com as trovas do mesmo ofício”. Como se sabe, a naturalidade do coveiro, que cantava enquanto trabalhava, provocou a estranheza do príncipe: “Será que este sujeito não tem consciência de seu ofício, já que canta enquanto abre uma cova?” (Has this fellow no feelings of his business, that he sings at grave-making?) (5.1). A resposta de Horácio assemelha-se a este comentário do narrador do conto “Identidade”: “o uso encruara naquela gente a piedade e a sensibilidade”.

Nesta cena Hamlet emociona-se ao se deparar com o crânio de Yorick, o bobo da corte. Um dos contos machadianos refere-se ao episódio e chama-se “A Cena do Cemitério”. Nele o narrador exclama: “_ Alas, poor Yorick! Eu o conheci, Horácio”. Numa crônica de 21 de janeiro de 1889, o autor acrescenta: “Tiro o chapéu às caveiras; gosto da respeitosa liberdade com que Hamlet fala à do bobo Yorick”. Numa crítica a Álvares de Azevedo (1831-1852), autor da “Lira dos Vinte Anos”, diz Machado: “O poeta fazia uma freqüente leitura de Shakespeare, e pode-se afirmar que a cena de Hamlet e Horácio, diante da caveira de Yorick, inpirou-lhe mais de uma página de versos”. Machado, um grande leitor de Shakespeare, reconheceu no jovem autor um gosto literário semelhante ao seu.

Ainda no conto “A Cena do Cemitério”, a passagem incorpora-se a um sonho do protagonista:

“Era o enterro da Ofélia. Aqui o pesadelo foi-se tornando cada vez mais aflitivo. Vi os padres, o rei e a rainha, o séquito, o caixão. Tudo se me fez turvo e confuso. Vi a rainha deitar flores sobre a defunta. Quando o jovem Laertes saltou dentro da cova, saltei também; ali dentro atracamo-nos, esbofeteamo-nos.”

Em “Versos a Corina”, parte VI, Machado refere-se indiretamente a uma passagem da peça, quando Laertes diz ao rei que se arriscará “como o carinhoso pelicano, que entrega sua própria vida” (like the kind life-rendering pelican) (4.5). Segundo Machado: “Pelicano do amor, dilacerei meu peito,/ E com meu próprio sangue os filhos meus aleito”.

Machado inicia uma crônica de 23 de abril de 1893 com um comentário sobre a resposta evasiva de Hamlet a Polônio, quando este perguntou o que o príncipe estava lendo:

“Eu, se tivesse de dar o título ‘Hamlet’ em língua puramente carioca, traduziria a célebre resposta do príncipe da Dinamarca ‘Words, words, words’, por esta: ‘Boatos, boatos, boatos’. Com efeito, não há outra melhor que diga o sentido do grande melancólico. Palavras, boatos, poeira, nada, coisa nenhuma.”

No dia 23 de abril de 2014 comemoram-se 450 anos de nascimento de William Shakespeare, razão pela qual é oportuno encerrar este texto com o extenso testemunho da admiração de Machado por Shakespeare, na mesma crônica de 23 de abril de 1893:

“Tudo são aniversários. Que é hoje senão o dia aniversário natalício de Shakespeare? Respiremos, amigos; a poesia é um ar eternamente respirável. Miremos este grande homem; miremos as suas belas figuras, terríveis, heróicas, ternas, cômicas, melancólicas, apaixonadas, varões e matronas, donzéis e donzelas, robustos, frágeis, pálidos, e a multidão, a eterna multidão forte e movediça, que execra e brada contra César, ouvindo a Bruto, e chora e aclama César, ouvindo a Antônio, toda essa humanidade real e verdadeira. E acabemos aqui; acabemos com ele mesmo, que acabaremos bem. All is well that ends well.”
Referências bibliográficas

1 – MACHADO DE ASSIS. Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986. 3 volumes.

2 – SHAKESPEARE, William. The Complete Works of William Shakespeare. Londres: Oxford University Press, 1935. 1352p.