Introdução à Série

          Shakespeare Através das Eras apresenta não a mais atual tendência da crítica de Shakespeare, mas seu melhor, do séc. XVII até hoje. Nesse processo, o volume também mapeia a torrente de discussões de obras particulares através dos tempos. Outras coleções úteis e fascinantes de crítica de Shakespeare existem, porém nenhuma coleção que conhecemos contém tamanho escopo de comentários sobre cada uma das maiores obras de Shakespeare e, ao mesmo tempo, enfatiza os maiores críticos da nossa tradição literária: de John Dryden no séc. XVII, a Samuel Johnson no séc. XVIII, de William Hazlitt e Samuel Coleridge no séc. XIX, a A. C. Bradley e William Empson no séc. XX, até os mais perceptivos críticos de nossos dias. Esse cânon da crítica shakespeariana enfatiza a estética em vez da análise política e social.

          Alguns dos excertos incluídos aqui são ensaios completos; outros são partes designadas a apresentar algum ponto chave. Muito (mas não todo) da crítica mais antiga consiste em algumas pequenas menções às obras específicas. Em adição aos clássicos da crítica, algumas peças de importância, sobretudo histórica, foram incluídas frequentemente, por prover um pano de fundo para importantes reações dos críticos futuros.

          Esses volumes são endereçados aos estudantes, particularmente àqueles começando suas explorações em Shakespeare. Por isso, incluímos também materiais básicos com a intenção de prover uma base sólida para cada obra: uma biografia de Shakespeare, uma sinopse, uma lista de personagens, e uma explicação das passagens chaves. Ademais, cada seleção de crítica de um século em particular inicia-se com um ensaio introdutório discutindo a natureza geral do comentário daquele século e os assuntos particulares e as controvérsias colocadas pelas críticas apresentadas no volume.

          Shakespeare foi “não de uma época, mas de todo o tempo”, mas muito da crítica de Shakespeare é decididamente de sua própria época, de importância duradoura apenas para o erudito que a escreveu. Os estudantes hoje leem apenas as críticas mais acessíveis, o que significa ensaios impressos em livros e jornais recentes, especialmente jornais disponíveis na Internet. A crítica antiga está frequentemente enterrada em livros esgotados ou em estantes esquecidas das livrarias ou em periódicos defuntos. Por esse motivo, muitos estudantes, particularmente os mais jovens, não têm como saber que as mais profundas críticas das obras de Shakespeare foram escritas décadas ou séculos atrás. Esperamos que essa série remedie esse problema, e, mais importante, esperamos inculcar nos estudantes o entusiasmo das críticas desse volume, pela beleza e o poder da poesia de Shakespeare.

Introdução por Harold Bloom

          A mais notável qualidade dos surpreendentes Sonetos de Shakespeare é o misterioso distanciamento da voz que os fala. Essa voz efetua suas declarações como um poeta e como um ator, mas não como um interior dramático ou personagem em uma peça. Shakespeare, ao contrário de seus protagonistas, recusa o auto-entreouvir (self-overhearing). Assim como o Belo Homem Jovem, a Dama Negra e o Poeta Rival, ele é outra ficção consciente.

          Hamlet e Falstaff são ficções mais ricas, pois seus interiores são aparentemente infinitos, mas o falante dos Sonetos é meramente uma voz. Como uma voz é infinitamente flexível e não tem rival entre as vozes líricas na língua. Mas Shakespeare mantém sua curiosa impessoalidade, como se todas as humilhações, desapontamentos e traições fossem sofridas por outrem.

          John Hollander aponta a diferença entre as sequências tradicionais de sonetos, endereçadas a mulheres idealizadas, as Musas, e a de Shakespeare, que invoca um jovem homem não nomeado e uma mulher fatal, que podem ser ou não personagens reais. Eu adicionaria que nem o homem nem a mulher são idealizados, colocando à parte a beleza do homem e a perigosa sedução da mulher. De fato, o homem amado é algo de autocentrado, um monstro narcisista, enquanto a mulher parece ser puro decadentismo moral. Nenhum é apresentado em termos de julgamento, nem o falante condena a si mesmo moralmente, apesar de ele parecer aceitar a visão social que ser um ator-dramaturgo é um tipo de degradação.

          Foi G. K. Chesterton que observou que as ironias de Chaucer eram muito amplas para serem vistas. As ironias dos Sonetos são ambas, palpáveis e invisíveis, um paradoxo que eu não posso resolver. Shakespeare sabe tudo o que está fazendo, mas nós não. Nossa ótica é impedida por sua transparência. Nós não somos apresentados a nenhum perspectivismo, trágico ou cômico, como somos nas peças. Saberíamos nós necessariamente que o autor dos Sonetos escreveu as melhores tragédias e comédias já escritas se lêssemos apenas os Sonetos? Sim e não, não e sim, dependendo de como nós lêssemos.

          Os Sonetos foram feitos no começo da década de 1590 até 1609, ainda que não dê a impressão de um tempo tão longo de composição. Ninguém esperaria que 154 poemas atingissem tamanha façanha, ainda que apenas um punhado ou dois sejam descartáveis como artefatos estéticos. Dante, Petrarca, Sidney e Spenser – todos grandes poetas – não mantêm um nível tão alto, talvez por desígnio. Aqui está o número 122 dos Sonetos de Shakespeare, um dos menos renomados, mas um poema que não posso esquecer:

Thy gift, thy tables, are within my brain

Full character’d with lasting memory,

Which shall above that idle rank remain

Beyond all date, even to eternity;

Or at the least, so long as brain and heart

Have faculty by nature to subsist;

Till each to razed oblivion yield his part

Of thee, thy record never can be miss’d.

That poor retention could not so much hold,

Nor need I tallies thy dear love to score;

Therefore to give them from me was I bold,

To trust those tables that receive thee more:

       To keep an adjunct to remember thee

       Were to import forgetfulness in me.

Teus dons, tuas palavras, estão em minha mente

Com todas as letras, em eterna lembrança,

Que permanecerá acima da escória ociosa

Além de todos os dados, mesmo na eternidade;

Ou, ao menos, enquanto a mente e o coração

Possam por sua natureza subsistir;

Até que todo o esquecimento liberte sua parte

De ti, teu registro não se perderá.

Esses pobres dados não podem reter tudo,

Nem preciso de números para medir o teu amor;

Assim fui corajoso para dar de mim a eles,

Para confiar nesses dados que sobram em ti.

       Manter um objeto para lembrar-te

       Seria aceitar o esquecimento em mim.

          O sujeito ostensivo está dando um livro de anotações no qual sonetos estão escritos, mas a linha crucial aqui é: “Nem preciso de números (tallies) para medir o teu amor,” que pode ter sugerido o uso de “tally” por Whitman como o auge de sua imagem para a voz. O contraste do soneto 122 entre inscrições internas e externas é simplista, e pode ser irônico. É o poema uma apologia ao proclamar o amor de alguém ao ceder um livro de anotações? “Bold” sugere a repreensão de um amante pelo tornar público. Ademais ouço uma auto-repreensão na sequência “idle rank”, “razed”, “missed”, “tallies”, “score”, “bold”, “trust”. Entretanto os sonetos legíveis são subordinados às suas memórias, eles retêm um valor além da lembrança. Quão felizes nós estaríamos em possuir um desses livros de anotações agora!

          A ordem dos Sonetos é arbitrária mas às vezes revelatória. O soneto anterior é uma obra de arte selvagem, número 121:

‘Tis better to be vile than vile esteem’d,

When not to be receives reproach of being,

And the just pleasure lost which is so deem’d

Not by our feeling but by others’ seeing:

For why should others false adulterate eyes

Give salutation to my sportive blood?

Or on my frailties why are frailer spies,

Which in their wills count bad what I think good?

No, I am that I am, and they that level

At my abuses reckon up their own:

I may be straight, though they themselves be bevel;

By their rank thoughts my deeds must not be shown;

       Unless this general evil they maintain,

       All men are bad, and in their badness reign.

É melhor ser vil do que vil considerado,

Quando não se é, e ser repreendido por sê-lo,

E o prazer justo perdido, que é tão caro

Não por nós, mas pela opinião alheia.

Por que a visão falsa e adulterada dos outros

Deve julgar o meu sangue ardente?

Ou minhas fraquezas, enquanto o mais fraco espia,

Que por eles seja mau o que acredito bom?

Não, eu sou quem sou, e eles que julgam

Meus erros reconhecem em mim apenas os deles;

Posso ser reto, embora eles sejam tortos;

Diante desses pensamentos, meus atos se ocultam,

       A menos que esse mal geral que eles mantêm:

       Todos são maus e em sua maldade reinam.

          O choque peculiar disso é sua audaciosa cotação de Javé nomeando a si mesmo para Moisés do livro da queimação: ehyeh asher ehyer, “I am that I am”, fazendo trocadilho com as quatro letras YHWH. Como Deus, Shakespeare afirma a presença, mas nega a culpa. “Posso ser reto, embora eles sejam tortos”: isso pode ser lido incorretamente (talvez) como uma das muitas antecipações de Shakespeare de um uso posterior de “straight”? (reto, heterossexual) Em uma apreensão errônea, um leitor atual pode perguntar-se se “sangue ardente” insinua o homoerotismo que Shakespeare ironicamente nega.

          O Soneto 121 distancia-se da sua própria selvageria de tom, e Shakespeare sutilmente mantém distância mesmo onde é acusado. Eu dificilmente sei como a postura geral dos Sonetos pode ser chamada: “Distanciamento” não é suficientemente preciso. O Soneto 94 é um dos mais sutis no que se refere a aparentes distanciamentos:

They that have power to hurt and will do none,

That do not do the thing they most do show,

Who, moving others, are themselves as stone,

Unmoved, cold, and to temptation slow,

They rightly do inherit heaven’s graces

And husband nature’s riches from expense;

They are the lords and owners of their faces,

Others but stewards of their excellence.

The summer’s flower is to the summer sweet,

Though to itself it only live and die,

But if that flower with base infection meet,

The basest weed outbraves his dignity:

       For sweetest things turn sourest by their deeds;

       Lilies that fester smell far worse than weeds.

Aqueles que têm o poder de ferir e nada farão,

Que não fazem o que demonstram,

Que ao impelir outros, são como pedra,

Imóveis, frios, e imunes à tentação –

Eles por direito herdam às graças celestes,

E preservam as riquezas da natureza de desgastarem-se;

Eles são os senhores e donos de si mesmos,

Os outros, apenas os servos de sua excelência.

A flor do verão é doce para a estação,

Embora para si mesma apenas viva e feneça;

Mas se essa flor for ferida em sua essência,

A erva daninha mais singela arrancará a sua honra;

       Pois o mais doce se torna amargo por seus feitos;

       Lírios mais fétidos do que as ervas daninhas.

          Esse retrato inquietante do Belo Homem Jovem termina com uma linha proverbial que apareceu em Eduardo III (1596), uma peça histórica que Shakespeare pode ter escrito (Eu duvido disso). O patrão-amigo de Shakespeare presumivelmente leu esse soneto e talvez ele era sua audiência pretendida. A sofisticação mútua dificilmente pode superar ambos o Soneto 94 ou sua provável situação. Ao ensinar o poema, peço aos estudantes cismarem com a palavra “rightly” na linha 5, porque ela contém o que seria um universo de amargura em qualquer poeta ou pessoa, exceto Shakespeare. Contudo, como devemos interpretar “rightly” aqui? Ela transcende a ironia e intima uma realidade na qual o que não é dado, não obstante, torna faminto o provável receptor. Aqui o narcisismo do jovem nobre está à beira do abismo do sadomasoquismo.

          Ser o administrador da excelência alheia é ser não mais que um servo mais alto de uma vontade que não é própria. Qual o tom de Shakespeare aqui? Acho essa questão ainda mais irrespondível que a anterior. A distância encontra-se no limiar de uma proximidade íntima que não permite nenhuma intimidade. Se esse é o Conde de Southampton ou Pembroke, ele é no mínimo um personagem vicioso, com uma decadência profética de uma esquisitice wildeana de três séculos à frente.

          O contraste com o Soneto 94 é, para mim, o mais forte da sequência, o grande clamor de uma temporada erótica no inferno que é o Soneto 129, um atordoante tributo negativo a Dama Negra:

The expense of spirit in a waste of shame

Is lust in action; and till action, lust

Is perjured, murderous, bloody, full of blame,

Savage, extreme, rude, cruel, not to trust,

Enjoy’d no sooner but despised straight,

Past reason hunted, and no sooner had

Past reason hated, as a swallow’d bait

On purpose laid to make the taker mad;

Mad in pursuit and in possession so;

Had, having, and in quest to have, extreme;

A bliss in proof, and proved, a very woe;

Before, a joy proposed; behind, a dream.

       All this the world well knows; yet none knows well

       To shun the heaven that leads men to this hell.

O desgaste do espírito quando se envergonha

É obra da luxúria; e, até a ação, a luxúria

É perjura, assassina, sanguinária, culpada,

Selvagem, extrema, rude, cruel, desleal,

Logo desfrutada, porém, em seguida, desprezada,

Perdida a razão, e logo esquecida,

Odiada razão, como isca lançada

De propósito para enlouquecer a presa;

Insano ao ser perseguido, e possuído;

Tido, tendo, e na busca por ter, extremo;

Felicidade ao provar, e uma vez provado, a tristeza;

Antes, uma ansiada alegria; por trás, um sonho;

       O mundo bem sabe, embora ninguém se lembre

       De descartar o céu que a este inferno os conduz.

          A antítese entre a economia do Belo Homem Jovem em “as riquezas da natureza de desgastarem-se” no Soneto 94 e a explosiva abertura do 129: “O desgaste do espírito quando se envergonha / É obra da luxúria”. Tão poderoso é esse redobre lírico que eu não encontrei essa energia cinética de libertação em nenhum outro poema, em qualquer linguagem que conheço. “Spirit” aqui é o sêmen de Shakespeare, e seu dispêndio é julgado uma perda da vitalidade. “Hell” na gíria elisabetana era a vagina, e uma repugnância é expressada muito mais complexamente que os similares recuos de Lear ou de Edgar perante a sexualidade feminina. Nenhum dos Sonetos claramente homoeróticos têm qualquer coisa do ímpeto do Soneto 129. Shakespeare, conforme devemos saber das peças, foi tão ferozmente heterossexual quanto Robert Browning ou W. B. Yeats. O que necessitamos saber mais (e nunca iremos) é o poder erótico da Dama Negra. Meu velho amigo Anthony Burgess persuadiu-me que essa mulher excitante era Lucy Negro, a principal prostituta das Índias Orientais de Londres. Recomendo fortemente o romance de Burgess sobre Shakespeare, Nada Como o Sol.

          Depois do 129, qualquer outro soneto pode parecer anticlimático, mas eu gostaria de concluir aqui com dois maravilhosos poemas, 86 e 87. Aqui no Soneto 86, a invocação hiperbólica do Poeta Rival, que parece a mim Cristopher Marlowe em vez de George Chapman:

Was it the proud full sail of his great verse,

Bound for the prize of all too precious you,

That did my ripe thoughts in my brain inhearse,

Making their tomb the womb wherein they grew?

Was it his spirit, by spirits taught to write

Above a mortal pitch, that struck me dead?

No, neither he, nor his compeers by night

Giving him aid, my verse astonished.

He, nor that affable familiar ghost

Which nightly gulls him with intelligence

As victors of my silence cannot boast;

I was not sick of any fear from thence:

       But when your countenance fill’d up his line,

       Then lack’d I matter; that enfeebled mine.

Foi a vela enfunada de seu grande verso,

Destinado a receber o prêmio de tua preciosidade,

Que meus pensamentos maduros conjuraram,

Matando-os no ventre onde cresceram?

Foi seu espírito, ensinado pelos ares a escrever

Acima de ditames mortais o que me aniquilou?

Não, nem ele, nem seus noturnos confrades

Ao ajudá-lo atormentaram o meu poema.

Nem ele, nem aquele amável fantasma familiar,

Que noturnamente instiga-lhe a inteligência,

Vitoriosos, não podem gabar-se de meu silêncio;

Não adoeci por medo de nada disso.

       Mas quando te ergueste para dizer seu verso,

       Então perdi o senso – o pouco que eu já tinha.

          Novamente altamente sofisticado e certamente irônico, essa visão agonística do fantasma de Marlowe, ou um composto Marlowe-Chapman, é expressado com um sorriso bem amplo. Assim como o Faustus de Marlowe, o Poeta Rival canaliza espíritos e demônios em ordem de alcançar “seu grande verso”. Mas Marlowe é enganado ou confundido com noções falsas, e Shakespeare graciosamente indica sua própria falta de medo. Em vez disso, ele charmosamente sugere uma inibição através do ciúmes, não de poderes poéticos superiores, mas de encontrar o retrato do Belo Homem Jovem nos versos do rival.

O Soneto 87 é uma obra de imensa riqueza em compasso breve:

Farewell! thou art too dear for my possessing,

And like enough thou know’st thy estimate:

The charter of thy worth gives thee releasing;

My bonds in thee are all determinate.

For how do I hold thee but by thy granting?

And for that riches where is my deserving?

The cause of this fair gift in me is wanting,

And so my patent back again is swerving.

Thyself thou gavest, thy own worth then not knowing,

Or me, to whom thou gavest it, else mistaking;

So thy great gift, upon misprision growing,

Comes home again, on better judgment making.

       Thus have I had thee, as a dream doth flatter,

       In sleep a king, but waking no such matter.

Adeus! És muito caro para que eu te tenha,

E bem conheces o teu próprio valor:

O privilégio de teu peso te liberta;

Minha devoção a ti é toda determinada.

Como posso ter-te, senão por teu favor?

E, diante de tanta riqueza, que fiz por merecê-lo?

A causa do presente que me é dado é meu desejo,

E, assim, meu direito me é subtraído.

Tu mesmo marcaste teu valor sem o saber,

Ou a mim, a quem o deste, por engano;

Pois tua grande dádiva, de mim arrancada,

Retorna à tua casa, melhor considerada.

       Assim, tive a ti, como um sonho demasiado:

       Um rei ao dormir e, ao despertar, um exilado.

          Na Introdução à Segunda Edição do meu tratado, A Ansiedade da Influência, confessei em débito com a versão shakespeariana do processo de influência, tanto no amor quanto na literatura. “Swerving”, “mistaking”, “misprision” são três emblemas cruciais, todos os quais roubei para minha própria teoria da influência. A linguagem legalista do Soneto 87 emana fortes ironias que dão a este poema diversas tonalidades, combinando alienação e desejo perdido: “too dear”, “possessing”, “estimate”, “charter of thy worth”, “releasing”, “bounds”, “granting”, “gift”, “patent”. A entrega tornou faminto o receptor, mas Shakespeare permanece Shakespeare, intensamente cônscio da grande luz da realidade escurecendo o sonho de Eros. 

Sumário dos Sonetos

          O poeta irlandês Louis MacNeice, no séc. XX, escreveu em seu poema “Snow”: “O mundo é mais repentino que o imaginamos. / O mundo é mais louco e mais do que pensamos, / Incorrigivelmente plural.” Descascando uma tangerina, o falante sente a “embriaguez das coisas serem várias.” Repentino. Plural. Vários. Essas são palavras excelentes para preparar o leitor para as maravilhas da divisão e diversificação que desfilam entre os Sonetos de William Shakespeare. Tomados como um todo, esses poemas mostram um surpreendente escopo de voz, imagem, situação, crise, meditação e resignação. Duas breves clarificações devem ser feitas. Primeira, Os Sonetos é o título coletivo, e tem sido assim desde que os sonetos apareceram pela primeira vez impressos em 1609, para dizer dos 154 poemas líricos de Shakespeare de 14 linhas. Em segundo lugar, a palavra “divisão” é usada acima em ao menos dois sentidos: o poético ou musical, como quando Shakespeare escreve “divisão arrebatadora” em 1 Henrique IV, e a psicológica, como em auto-divisão, aquela bravura examinadora, introspectiva, que coloca os poemas de Shakespeare à parte de quase todos seus correspondentes. Por quatro séculos leitores admiraram (mas nem sempre admiraram, como veremos em breve) as realizações técnicas e retóricas desses poemas condensados e memoráveis. E eles também se empenharam em localizar a originalidade lírica mais profunda nos Sonetos – uma originalidade da voz, de pensamento reconhecível e sentimento, de alguma forma executada em todas as suas complexidades na antiga linguagem do Inglês moderno e na estrutura formal do soneto. Alguns argumentaram que Shakespeare, nesses sonetos, inventou uma nova forma de subjetividade, um novo caminho no qual o “Eu” que fala na poesia lírica pode avaliar a si mesmo e vir até nós, como se se elevasse vivo e tridimensional da tinta preta do texto.

          Apesar de suas inovações, Shakespeare não foi de forma alguma o primeiro escritor a produzir uma longa sequência de sonetos. Pelo contrário, ele compôs perto do final de mais de dois séculos de produção de sonetos na Europa, e também durante um forte modismo literário por sonetos em Inglês, na Inglaterra elisabetana nos anos 1590. Francesco Petrarca, um humanista florentino, diplomata e poeta, elevou o soneto para uma forma literária influente com sua sequência conhecida como o Canzoniere ou Rime sparse. A forma poética preferida por Petrarca nessa coleção foi o soneto, um poema lírico de 14 linhas que frequentemente expressava estágios de meditação ou de raciocínio argumentativo. A forma era apropriada para essas atividades mentais e emocionais pois permitia “viradas” em pontos diferentes do poema, que avançavam, rejeitavam, repetiam ou complicavam o ponto presente. Os predecessores literários de Petrarca em Florença, incluindo o grande poeta épico Dante Alighieri, frequentemente escreviam sonetos, assim como os poetas sicilianos o faziam na corte imperial. Muitos desses poetas eram também advogados na corte, e isso pode explicar por que o soneto foi sempre sagaz, um movimento argumentativo. Os sonetos de Petrarca na Rime eram predominantemente poemas de amor ou poemas que ruminavam exaltações e preocupações de amor. Sua amada visada e tema principal era Laura, uma distante, casta e justa mulher. O falante celebra Laura, ele chora por perdão, e está geralmente obcecado por sua beleza, sua virtude, e às vezes o que ele percebe ser sua crueldade. Em parte inspirado pela grande heroína de Dante, Beatriz, Laura provou ser a mais influente personagem da poesia lírica europeia.

          O soneto não foi importado para a escrita em Inglês até o começo do séc. XVI, menos de 50 anos antes do nascimento de Shakespeare. Os poetas da corte, servindo o primeiro grande monarca da Inglaterra na Renascença, Henrique VIII, adotaram a escrita de sonetos como um entre vários hábitos italianos sofisticados. Esses inovadores não eram escritores profissionais, mas aristocratas, cortesãos ou diplomatas, os quais as atividades literárias forneciam uma “graça civil” a suas várias realizações nas linguagens, música, caça e esporte. Thomas Wyatt foi o mais importante escritor de sonetos Henriciano, e ele traduziu vários sonetos de Petrarca encontrados em Rime. Também manteve a forma “Petrarquiana” ou italiana do soneto, contendo uma oitava, ou oito linhas em um esquema de rima abbaabba, seguida por uma “virada” para um sexteto, as seis linhas finais que rimavam cdecde, ou apresentando alguma variação desse padrão. Cada linha tinha 10 sílabas, frequentemente em pentâmetro iâmbico (cinco pares de sílabas em uma ordem não-acentuada-acentuada), e esse tipo de linha permaneceu uma característica chave dos sonetos até nossos dias. Henry Howard, conde de Surrey, foi um simpatizante dos sonetos durante o reinado de Henrique VIII, e sua escolha frequente de uma forma de soneto diferente iria influenciar os hábitos de Shakespeare mais obviamente.

          Howard reorientou a forma dos sonetos de Petrarca em um esquema mais simétrico, repetitivo, um no qual era possível acomodar as poucas rimas da linguagem inglesa: abab cdcd efef gg. Às vezes os poetas podem repetir as mesmas duas rimas no segundo ou terceiro quarteto (ou stanzas de quatro linhas), mas o uso possível de mais rimas deu a eles mais flexibilidade. A alteração de Howard também introduziu duas outras surpreendentes diferenças formais: não há mais uma “virada” principal, como no movimento petrarquiano da oitava para o sexteto, e o final era agora acentuado por um dístico conclusivo, ou par de linhas conectados por uma rima. Howard pôde ecoar o modelo petrarquiano e redirecionar o soneto depois de sua oitava linha ou no final do segundo quarteto. Mas, de repente, mais opções estruturais estavam disponíveis: a mesma ideia pode ser repetida, com variações ou diferentes ênfases, em cada um dos três quartetos e então no dístico ser concluída…ou completamente renunciada. Shakespeare quase sempre usa essa forma mais flexível de soneto, provavelmente porque ela o dava mais oportunidades para mudança de voz ou desenvolvimento dramático. Essa forma, compreendendo três quartetos e um dístico, tornou-se conhecida como o soneto “Inglês”, ou, em homenagem a seu maior praticante, o soneto “Shakespeariano”. Dos 154 sonetos de Shakespeare, os únicos que divergem do modelo Inglês são o soneto 99, que tem uma linha a mais; o soneto 126, que tem apenas 12 linhas, em dísticos; e o soneto 145, os quais as linhas têm apenas oito sílabas.

          Os sonetos de Wyatt e Howard eram lidos principalmente na corte e circulavam em manuscrito. Eles foram impressos pela primeira vez e estruturados de uma forma mais geral, que o leitor comum poderia apreciar, em 1557, quando apareceram em uma antologia poética chamada Songs and Sonnetts, conhecida hoje como Tottel´s Miscellany. O único grande escritor de sonetos entre esses poetas Henricianos e Shakespeare é Philip Sidney, um cortesão elisabetano, soldado, o autor da sequência de sonetos Astrophil and Stella. Tomando de empréstimo uma linha do Hamlet, Sidney era o “espelho da moda” (glass of fashion) nos anos 1580. Seus escritos inspiraram seus círculos de amigos, e sua morte prematura no campo de batalha na Holanda tornou-o um herói nacional. Os mais de 100 sonetos da sua sequência foram populares por causa da reputação do seu criador mas também por causa das intrigas de amor cortesãs que eles reservadamente semi-ocultavam. Alguns leitores deviam saber que o relacionamento secreto dramatizado em Astrophil and Stella na realidade envolvia Sidney e Penelope Rich, uma proeminente dama da corte. Sidney faz trocadilhos com o nome “Rich” na sequência, e com uma piscadela que também esconde seu próprio nome, Philip, no personagem do título “Astrophil”. Confiando em seus aprendizados de Grego e Latim para os trocadilhos trilíngues, Sidney deu a seus protagonistas nomes que querem dizer “o amante da estrela” e “estrela”.

          Pelo fato desses poemas servirem como “projeções” de atividades amorosas possivelmente reais na corte, e da mesma forma que outros escritores da corte, ele preferiu distribuir seus poemas em manuscrito, nem Sidney nem sua família planejaram publicar Astrophil e Stella. Porém um impressor pirata estava feliz em fazê-lo, e uma aparição não autorizada da sequência de sonetos de Sidney apareceu em 1591, criando uma mania literária que durou por mais de uma década, e isso levou a incontáveis outras sequências de sonetos por poetas de vários talentos. Muitos poemas de Shakespeare estavam entre eles. Paul Innes, em Shakespeare and the English Renaissance Sonnet, admiravelmente preenche esse amplo movimento de atividade dos sonetos na Inglaterra da Renascença, assim como os relacionamentos de Shakespeare com seus predecessores. E haviam muitos, incluindo poetas significantes como Thomas Watson, Michael Drayton e Edmund Spenser. A atividade deles e a popularidade de seus sonetos são refletidos nas longas listas de sequências do soneto Inglês nas obras de Peter Hyland e Katherine Duncan-Jones. Os Sonetos de Shakespeare, tão divergentes, ambíguos e memoráveis, sustentam-se proeminentemente acima dos seus pares. “Ele é nosso melhor escritor de sonetos”, declara diretamente John Masefield, e mais críticos ao menos desde o século dezenove concordam.

          Quando Shakespeare começou a composição dos seus sonetos? As opiniões dos eruditos diferem largamente sobre essa matéria. Em 1971 Andrew Gurr argumentou que o soneto 145 foi o primeiro dos muitos poemas de Shakespeare, porque ele contém na linha “Eu odeio a partir do ódio que ela lançou” (“I hate´ from hate away she threw”) um trocadilho sobre a eventual esposa de Shakespeare, Anne Hathaway. Gurr pensava que Shakespeare, ainda nos seus anos de adolescência, pode ter escrito isso no começo dos anos 1580. O esquema mais curto do poema, com uma batida de quatro linhas (diferentemente de todos os outros poemas da sequência) e sua falta de qualquer habilidade particular eram outras razões pode suportar a teoria da sua composição primitiva.

          Tradicionalmente, entretanto, os eruditos acreditam que Shakespeare escreveu a maioria dos seus sonetos na primeira parte da década de 1590. Ele estava em Londres nesse momento, escrevendo para os teatros públicos, e muitos encontram como evidência para essa data vários paralelos de linguagem e imagem entre Os Sonetos e as primeiras peças de Shakespeare. Nós também sabemos que Shakespeare estava escrevendo dois poemas narrativos em 1593 e 1594, provavelmente por causa do fechamento dos teatros em Londres pela praga. Esses dois poemas, Vênus e Adônis e O Rapto de Lucrécia, foram rapidamente impressos e foram muito populares durante o tempo de Shakespeare, especialmente se comparado com os primeiras recepções mornas dos seus sonetos no começo do século dezessete. Mais intrigante, Shakespeare escreveu prefácios adulatórios para ambos os poemas narrativos, os quais dedicou a Henry Wriothesley, o conde de Southampton. Essas dedicatórias sugerem que o jovem conde era um provável patrono de Shakespeare, isto é, um nobre que empresta seu bom nome e seus recursos financeiros para poetas desacreditados e sem condições, assim como para companhias. Outros argumentaram a favor de datas posteriores para, pelo menos, alguns dos sonetos, porque há referências históricas inferidas de certos poemas ou por causa de temas mais obscuros, momentos mais cerebrais de certos sonetos convidam à comparação com peças do período de maturidade ou das últimas fases da carreira de Shakespeare como dramaturgo. De qualquer forma, a mais antiga data de composição dos sonetos é 1609, quando Thomas Thorpe publica um quarto, ou pequeno livro, de Os Sonetos. A edição não contém um prefácio de Shakespeare, e os críticos desde então debatem se essa publicação foi ou não autorizada por Shakespeare. Qualquer que tenha sido o caso, foi um momento incrivelmente importante na história e na recepção dos Sonetos, e a edição de Thorpe continua sendo o texto base para editores modernos hoje.

          Nós não podemos nos esquecer que esses sonetos foram escritos pelo mesmo autor que estava escrevendo, Sonho de uma Noite de Verão, Romeu e Julieta e Hamlet, e ser capaz de imaginar Os Sonetos como uma série de declarações dramáticas, ou mini-monólogos, é um hábito crítico valioso. Como você verá nos ensaios a seguir, os argumentos sempre viraram em torno de quão autobiográficos os poemas de Shakespeare são – esses sentimentos de amor, expressados tão passionalmente, são do próprio Shakespeare, ou esses poemas são ditos por somente mais uma criação dramática de um grande escritor? O falante aqui não é nomeado Benedict, ou Otelo ou Lear, mas o “Eu” que fala nos poemas líricos pode ser enganoso e pode muito bem ser somente uma ficção como qualquer criação para o palco. A força emocional desviante do falante ou persona dos Os Sonetos levou muitos a acreditar que esses poemas gravam as expressões mais profundas de Shakespeare. Por exemplo, Ralph Waldo Emerson acreditava que Shakespeare revelou (como as “projeções” de Sidney perante a si) “sob máscaras que não há máscaras para a inteligência, a crença da amizade e do amor”. Ainda muitos outros questionaram essa simples identificação histórica um-a-um. Pelo contrário, o “Eu” no poema lírico pode tornar-se uma criação fictícia ainda mais sofisticada, pois o gênero lírico provê uma projeção muito mais sutil de que qualquer ator desfruta quando interpreta um personagem no palco. Vamos assumir por conveniência, nesse sumário e nas próximas seções, que o “falante” desses sonetos é repetidamente identificável dessa forma. Assumir que ele é uma figura única sobre quem nós podemos falar certas coisas, com alguma expectativa que nossos comentários aplicar-se-ão consistentemente de um soneto para o próximo. Mas se mesmo isso é uma suposição, finalmente, é uma muito maior pensar que no uso de “Eu” de Os Sonetos, nós estamos ouvindo o genuíno e biográfico Shakespeare.

          Para complicar essa matéria ainda mais, o poeta e crítico John Hollander aponta-nos para a autoconsciência e as qualidades literárias do falante dos Sonetos e da sequência como um todo. “Nos Sonetos”, Hollander explica, “há um sentido de ambivalência total ao falar como um escritor de sonetos, ao ter que dizê-los na primeira pessoa….” Então, como resultado, o modo lírico mais sutil e complexo não é complexo o bastante; Shakespeare pode ainda ter se sentido limitado pelo “Eu” lírico, pelo o que ele poderia tipicamente dizer no final de uma tradição de escrever sonetos que fez uso de clichês e pela representação literária em geral. Por essas razões, Hollander e outros críticos encontraram confiança e eficácia de representação – simbolizada por imagens de espelhos, sombras, retratos, cosméticos, atuação e teatro, sonhos, livros – em ser uma das principais preocupações recorrentes ao longo de todos os Sonetos de Shakespeare. Assim esses sonetos tornam-se, entre muitas outras coisas, grande arte que medita em como se fazer arte, em ambas suas limitações que até mesmo os maiores poetas não podem superar e na capacidade de conceder imortalidade a esses grandes poetas e aqueles a quem eles favorecem.

          Nós não devíamos nos surpreender, por isso, em ver Shakespeare forçando contra, complicando ou subvertendo outras convenções de sequências de sonetos, convenções que se voltam para Petrarca. Por exemplo, uma das alterações mais ousadas de Shakespeare é endereçar a maioria dos seus sonetos não a uma virtuosa amante, como Laura, mas a um jovem homem. Essa mudança pede todo tipo de questões: São os dois homens apenas amigos, ou envolvidos romanticamente, ou comprometidos a um amor sublimado? Frequentemente o falante elogia o Jovem Homem em termos não distintos das idealizadas reverências de Petrarca à sua virtuosa amada, mas em outros momentos o Homem Jovem parece principalmente caprichoso e infiel. A amargura em certo ponto expressada nos Sonetos surpreende alguns leitores, mas aquele tom pode também ser encontrado em Petrarca, porém tipicamente com mais compaixão de si e delicadeza. (Philip Sidney debochava dos “longos-falecidos desgostos de Petrarca.”) O tom mais duro do falante de Shakespeare são mais claramente ouvidos nos lamentos de amor do seu precursor Inglês Thomas Wyatt. As várias diferenças entre o falante e o Jovem Homem, entretanto, são mais originais – o antigo falante versus o jovem endereçado, as provas e os infortúnios do falante versus os privilégios do jovem e a boa estima, a baixa classe social do falante comparada com o provável status de nobre do jovem homem, e, relativamente, a relação profissional explícita de patrono-poeta entre os dois homens, que às vezes fomenta ansiedade econômica e artística às tensões imediatas de um romance ou amizade.

          Se esses contrastes não fossem suficientemente inovativos, Shakespeare introduz também uma esperada mulher nos sonetos, mas ela é muito diferente da Laura de Petrarca e suas insossas sequências derivativas. A mulher de Shakespeare, ou “amante” (mistress), tradicionalmente conhecida como a Dama Negra, possivelmente entra na sequência nos sonetos 40-42, mas ela torna-se o centro obsessivo da subsequência que conclui os Sonetos. Diferentemente da Laura de Petrarca, essa amante é “negra como o inferno, escura como a noite”, e essa escuridão não é apenas física mas também um significante de seus atos e caráter moral. Qualquer coisa exceto um modelo de virtude, nós aprendemos que o relacionamento do falante com a Dama Negra foi consumado, e ele também revela que o relacionamento deles é extraconjugal. O mundo de desejo dos Sonetos é muito mais complexo comparado com as sequências anteriores, pois apresenta resolutamente traição, desespero romântico e satisfação sexual, desilusão e compulsão. Nós também encontramos relações mistas e competidoras. Os sonetos de Shakespeare diferenciam-se das sequências anteriores ao dramatizar não relacionamentos simples entre duas pessoas mas em vez disso, triângulos de personas e as raivas, ciúmes, competições e humilhações que se sucedem. Entre as aparições desestabilizantes da Dama Negra (ou duas amantes diferentes), Shakespeare cria outro triângulo, agora causando angústia profissional e artística, entre seu poeta-falante e um Poeta Rival, que compete por, e parece ganhar, os favores do Jovem Homem às custas do falante mais velho, poeticamente menos elegante.

          Essas, então, são as principais personagens e seus relacionamentos básicos mostrados pelos Sonetos de Shakespeare. A sequência abre com uma nota de apelo, pois o falante encoraja o Jovem Homem a casar-se e ter uma criança como uma forma de passar sua beleza antes que o Tempo (um inimigo alegórico em vários poemas) devore sua juventude, ou, pior, tome sua vida. Os primeiros 17 sonetos, todos aproximando-se do mesmo tópico, são frequentemente chamados de sonetos da Procriação, ainda que exista algum debate sobre quantos poemas precisamente constituem essa sequência de abertura. Essa falta cabal de certeza sobre esses agrupamentos de poemas, ou a exata história por eles narrada, deve levar-nos a uma pausa. Devemos nos prevenir de olhar tão certamente e simplistamente para a “história” nos Sonetos, como fazemos em um romance de Tolstoy ou em um conto de Raymond Carver. Se não podemos finalmente identificar o “Eu” como a mesma voz em cada soneto, então é menos provável que encontremos ao longo dos sonetos uma narrativa coesa, consistente e cronológica. E. A. J. Honigmann aponta que o arranjo final dos sonetos, e a história percebida ali, era provavelmente inconcebível para os primeiros leitores, que devem ter encontrados os poemas em um manuscrito “isoladamente ou em pequenos grupos.” Honigmann postula que o jovem particular, dramatizado nos poemas como o Jovem Homem, teria lido os sonetos na forma incompleta, provisória. A reação dele aos poucos que encontrou deve ter influenciado consideravelmente o tom dos esforços posteriores de Shakespeare. Philip J. Martin fornece uma avaliação notavelmente equilibrada dos poemas tomados individualmente e como um arranjo coletivo, com diversas camadas de coesão narrativa:

          “Falando geralmente podemos dizer que cada soneto na sequência é final e ainda não final, que alguns sonetos (como em “Não me permita que o casamento de mentes verdadeiras”) podem ser lidos à parte do resto com nenhum ganho ou perda, e que um grande número, como se provisoriamente autossuficientes, são modificados ou elevados por outros, próximos ou não, e talvez pela sequência como um todo.”

          Em outras palavras, Martin está aberto para a criação de sentido em todos os níveis: dentro do poema individual, lido em isolamento; no grupo próximo de poemas; e através da sequência inteira também, conforme palavras ou imagens recorrem e retrospectivamente reestrutura momentos anteriores. Essa generosidade interpretativa é possivelmente a melhor aproximação à sequência composta por William Shakespeare.

          Certamente existem grupos de poemas – amplamente definidos, como os sonetos de Procriação, ou em pares menores, como os sonetos 64-65 ou 67-68 – eles parecem compartilhar uma consistência de pensamento, um caráter formal, ou uma situação dramática, um exemplo proeminente do último tipo é o grupo do Poeta Rival (sonetos 78-86). Paul Edmondson e Stanley Wells, na excelente introdução aos Sonetos na série Oxford Shakespeare Topics, identificam múltiplos poemas conectados por tema ou por uma única palavra, e seus grupos menores de dois sonetos somente até seis ou oito poemas em uma subsequência definível. Leitores em busca de um maior senso de continuidade entre esses muitos sonetos devem consultar a tabela de Edmondson e Wells desses agrupamentos (33); Dympha Callaghan, em sua recente introdução aos Sonetos, inclui um apêndice similarmente útil sobre a “matéria” dos Sonetos, consistindo de breves paráfrases da informação ou argumento que cada poema expressa ou estabelece. Mais uma vez, os leitores são desencorajados em formular facilmente uma narrativa estrita ou muito avidamente identificar as personas da sequência com seus presumidos duplos históricos. Ler dessa forma é simplificar as ricas ambivalências e multiplicidades de sentido e eventos que a poesia lírica torna possível. Ensaios recentes por James Schiffer e Georgio Brown dão aos leitores uma ampla apreciação das complexidades do gênero e da identidade literária com respeito aos padrões dos Sonetos, narrativas, e amostras de tempo e movimento. Ambos os autores mantêm os leitores longe da maior tentação colocada pelos poemas de Shakespeare – o tipo de leitura redutiva descrita acima, que compromete a diversidade do efeito pelo qual esses sonetos são mais elogiados. Por exemplo, considere esse comentário de George Rylands, elogiando os poemas líricos de Shakespeare e John Donne:

          “Esses dois poetas antes de todos os outros expressaram os muito diferentes tons do sentimento, as experiências variadas e complexas, e as atitudes do amante; o idealismo e realismo, o Odi et Amo, a constância e o ciúme, os devaneios e as desilusões, a dedicação altruísta e os tormentos da luxúria.”

          Se os Sonetos por si só são “variados e complexos” em seus sentimentos, experiências e atitudes, então, por conseguinte, as grandes peças de poesia lírica magistrais de Shakespeare encontrarão reações críticas diversas e apropriações criativas, durante os últimos quatro séculos. Os ensaios e leituras que se seguem, todos atestam essa lógica e provêm o leitor de um panorama total da amplitude inexpressível e da riqueza dessas reações.

          Apesar dessas reações tenderem para os desenvolvimentos editoriais e crítico-literário através dos séculos, os leitores podem estar certos que até mesmo hoje a promessa do falante ao Jovem Homem do soneto 55 – “Você vive nisso, e habita nos olhos do amante” – está repetidamente sendo levado a vários contextos criativos, em muitos continentes, e através de muitas mídias. Os mistérios dos Sonetos são explorados de formas diferentes e mais especulativas nos frequentes romances que buscam reconfigurar as situações originais e os personagens que as habitavam. Emprestando o seu título do Soneto 130, Nada Como o Sol (1964) de Anthony Burgess é o exemplo supremo, mas no novo século obras similares foram publicadas por Lennard J. Davis e Samuel Park. A versão da história dos Sonetos por Christopher Rush, Will, provou-se sensual o bastante para ser o finalista do prêmio Literary Review´s 2007 Bad Sex na categoria ficção. Mais canonicamente, Virginia Woolf referiu-se aos sonetos de Shakespeare em dois de seus mais famosos romances, Ao Farol e Mrs. Dalloway, enquanto outro gigante modernista, Marcel Proust, será sempre associado com Shakespeare, pelo menos para seus leitores ingleses. C. K. Scott-Montcrieff escolheu uma frase do soneto 30 “Relembranças de coisas do passado” como título para sua tradução do grande romance de Proust, A la recherché du temps perdu.

          Os poetas, também, continuam a buscar inspiração na realização lírica de Shakespeare. A poeta inglesa Wendy Cope escreveu uma sequência satírica chamada “Sonetos Strugnell” que caprichosamente esvazia as convenções dos sonetos de seu predecessor da Renascença – “Não somente o mármore / mas os brinquedos de plástico / E até as embalagens de cereais vão sobreviver a essa rima.” Nos últimos poucos anos, Peter Cummings publicou “Sonetos sobre os Sonetos de Shakespeare”, um título no qual o efeito espelho impressionaria seu inspirador, e William Bracy publicou sonetos “de um modo shakespeariano” que servem como crítica poética à sua sequência modelo. Mais curiosamente, Thomas Rangdale é o autor de “Sonetos Indecentes Decaídos de Shakespeare”, que é descrito como uma “série de sonetos politicamente incorretos, literariamente deficientes e agradavelmente desagradáveis”, inspirados por Shakespeare. Talvez o poeta original, o maior escritor de comédia de sua época também, ficaria menos ofendido por essa sequência de poesia indecente do que podemos imaginar. Mais digno de menção aqui é Um Bom Frenesi: Poetas Respondem a Shakespeare, uma excelente antologia de poemas contemporâneos em resposta a todos os aspectos de Shakespeare e sua obra, incluindo uma dúzia de poemas diretamente relacionados com os Sonetos. É claro que a influência poética de Shakespeare alcança muito além da língua inglesa. Nos últimos anos apareceram traduções dos Sonetos em Bengali e Siciliano, e no último século alguns dos maiores poetas da Europa elevaram a sua própria arte ao encarar o desafio de traduzir os poemas de Shakespeare. “Como é possível para um tradutor encontrar equivalentes que podem capturar os efeitos maravilhosos de certos modos de expressão particularmente notáveis pela sua absoluta simplicidade?” pergunta o grande poeta italiano Giuseppe Ungaretti. “Como posso fazer justiça à outras expressões que esforçam-se para revelar uma nova e liberta mensagem de uma única e inimitável natureza, ao recair nas formas tradicionais e nos temas desgastados?” Ungaretti, por seu crédito, reconheceu a árdua tarefa de seu trabalho, e relembra como ele “torturou a página por meses para terminar sem uma pitada de progresso.” Mais recentemente, o poeta francês Yves Bonnefoy escreveu com sensibilidade similar sobre a grande tarefa de traduzir Shakespeare.

          Os Sonetos de Shakespeare mantêm-se, mesmo no limite das tecnologias mais vivas e modernas. A peça do dramaturgo americano Tony Kushner, “Terminating” ou “Sonet LXXV” ou “Lass meine Schmerzen nicht verloren sein” ou Ambivalence toma sua epígrafe do soneto 75, “Assim você é para meu pensamento como alimento para a vida”, e um dos personagens principais da peça, Billygoat, recita linhas do poema para seu amante, Hendryk, que responde com irritação memorável: “Cala a boca! Odeio os sonetos. Chato chato chato.” Na terapia, a posterior descrição de Billygoat por Hendrik – “Ele é bonito e não tem alma” – torna-o suspeitosamente parecido com um Jovem Homem, mas é a Billygoat que é permitido expressar mais completamente o espírito dos dramas de desejo de Shakespeare: “Não me deixe deixá-lo. Posso não ter uma alma mas sou bonito, então faça um favor à sua alma, apegue-se a mim firmemente.” Os filmes, também, animaram os Sonetos, de Catorze Sonetos por uma Epidemia, de Derek Jarman, que escolhe poemas eróticos e interconexões estéticas, para uma recente produção da BBC, A Waste of Shame: The Mystery of Shakespeare and his Sonnets, apresentando Rupert Graves como Shakespeare e Zoë Wanamaker como a condessa de Pembroke. O exército de donos de iPod pode encontrar gravações dos Sonetos interessantes, e especialmente recomendável é a leitura de Alex Jennings de todos os 154 poemas, produzido por Naxos Audiobooks. E, é claro, a Internet torna disponível uma vasta quantidade de recursos sobre os Sonetos, com vários graus de qualidade e precisão. Os sites essenciais incluem O Incrível Site dos Sonetos de Shakespeare (http://shakespeares-sonnets.com) e Mr. William Shakespeare e a Internet (http://shakespeare.palomar.edu) – o último na guia “Obras” e “A Poesia e os Sonetos.” Manuscritos, livros, CDs, DVDs, MP3s, URLs – Shakespeare parece ter previsto que esses sonetos assumiriam novas formas, sons, interações e identidades da mídia. “E mais, muito mais, que meu verso pode conter”, seu falante diz no soneto 103, “Seu próprio vidro mostrará a você” (querendo dizer “espelho” então, mas hoje talvez a TV ou a tela do computador?) “quando você olhar nele.”

Lista das Personas dos Sonetos

          Existem quatro importantes personagens, ou personas, que aparecem ao longo dos Sonetos de Shakespeare.

O Falante

          O falante é uma persona paradoxal nos Sonetos de Shakespeare. Ele imagina ser o mais transparente – o único que expressa a si mesmo presumivelmente em todos os poemas e às vezes a um grau incrivelmente revelador – então como pode ele ser qualquer outra coisa exceto franco e aberto à avaliação? Ademais ele (podemos falar “ele”?) permanece uma voz incrivelmente complicada e elusiva para se julgar com sensibilidade literária. Muito frequentemente ao longo da história dos Sonetos, o falante foi instantaneamente e simplistamente equacionado com seu criador, William Shakespeare. Por exemplo, em 1962 Edward Hubler declarou que os Sonetos concernem a quatro pessoas, a primeira sendo “Shakespeare, que escreve na primeira pessoa.” Hubler pensava que o gênero lírico presumia que o “Eu” falando nesses poemas “pode ser tomado como autobiográfico em um grau no qual as peças não podem.” Em verdade, o falante identifica-se como “Will” em um espirituoso par de sonetos (135-36), mas isso basta para presumir essa simples identificação?

          Mesmo se fosse correto (e é problemático na melhor das hipóteses), tratar Shakespeare ele mesmo como um personagem essencial, estático, que permanece sem alterar-se do primeiro soneto ao último, é ainda uma hipótese crítica frequente feita muito rapidamente. O “Eu” na poesia lírica não é nunca tão simples, uma relação um-a-um, nem os maiores objetivos da poesia incluem preencher os registros biográficos que tanto interessam os admiradores de Shakespeare ou aqueles meramente curiosos sobre a história literária. Os amantes da poesia lírica não devem estabelecer-se nesses tipos de simplificações de “informações” ou reconfortos, especialmente em uma sequência de poemas que interroga questões de subjetividade e auto-representação e dramatiza meditações interiores sobre o desejo como nenhum outro trabalho criativo já o fizera.

          Uma vez reconhecida a construção habilidosa e sofisticada dos Sonetos, seu criador e falante, e as condições emocionais ou situações que elas verbalmente engendram, seria igualmente errôneo avaliar o falante do outro extremo – completamente impessoal, como o produto conveniente de um exercício literário, como se Shakespeare estivesse mexendo seus polegares quando sua pena não estava rabiscando poemas de 14 linhas. As leituras mais sensíveis e flexíveis desses poemas sugerem alguma combinação de desígnio astuto e história pessoal, pelo qual aquele torna-se mais entendível e permanente. Primeiramente, as qualidades formais e convencionais em torno dos Sonetos não são de forma alguma mutuamente exclusivas com os detalhes biográficos e a emoção genuína refletida pelo autor. Os críticos, ao longo do século vinte, incluindo George Wyndham, G. K. Hunter e C. L. Barber captaram isso bem e frequentemente melhor que os séculos anteriores. Harold Bloom avalia a presença complexa do autor nesses termos: “Se um humano é inventado nos Sonetos, ele não é uma representação de Shakespeare ele mesmo. “Idêntico” com Shakespeare ele não é, ainda que permaneça perto de Shakespeare, e nos fascina por essa proximidade.”

          Com essa posição equilibrada na mente – não “idêntico” ainda que biograficamente próximo – o que propuseram os críticos sobre o falante dos Sonetos, permitindo temporariamente que ele seja o único falante e fale com uma voz razoavelmente consistente ao longo da sequência? Primeiramente, ele é um homem mais velho, pois um amigo é endereçado como “jovem” repetidamente, e dois jovens homens tipicamente não falam entre si dessa forma. Ouvimos no soneto 62 que o falante é “Batido e cortado com curtida antiguidade,” e nos sonetos 71 e 73 ele se incomoda com o “inverno” de sua vida e contempla o mundo depois de sua morte, um mundo no qual o Jovem Homem ainda estará vivo. Isso o torna consideravelmente mais velho, ou ele está usando uma hipérbole poética em um poema onde ele recua ante o “Pecado do egoísmo” e torna-se de alguma forma autoconsciente quando contempla no jovem a “beleza dos teus dias”? Está ele lidando, no segundo exemplo, com uma séria doença ou o prospecto iminente da morte, ou ele é principalmente um amante melancólico e possivelmente em luta com a autoindulgência também? Nós é dada a impressão, também, de um homem que resistiu às provações da vida. Podemos apontar o soneto 29 – “Quando em desgraça com a Fortuna e os olhos dos homens” (When in disgrace with Fortune and men´s eyes) – ou ao soneto 66 – “Cansado de tudo isso, por uma morte tranquila clamo” (Tired with all these, for restful death I cry) – ou o soneto 37 – “Como um pai decrépito tem deleite / … / Assim eu, feito fraco pelo rancor mais caro à Fortuna,” (As a decrepit father takes delight / … / So I, made lame by Fortune´s dearest spite,” que parece combinar ambos esses tópicos com velhice e disfortúnio. Ademais, note os “Como” (As) e “Assim” (So), que claramente estrutura a declaração do falante em termos figurativos. Da mesma forma, a frase do soneto 93 “Como um marido enganado” (Like a deceived husband) levou Edmund Malone, um dos grandes editores de Shakespeare, a presumir que a mulher de Shakespeare, Anne Hathaway, teria sido infiel a ele e por isso ele apaixonou-se por um jovem e dormiu com a Dama Negra. Alguns sonetos expressam a dor indignada da traição, como nos sonetos 40-42, ou a recognição resignada da falsidade entre os amantes, como no soneto 138 ou 151, mas a inferência de Malone de uma comparação não é sensata nem editorialmente nem logicamente.

          Ainda mais uma vez, no soneto 23, o falante alude para o que pode possivelmente ser a carreira de Shakespeare como ator (“Como um ator imperfeito no palco”), ou ele pode estar usando uma analogia conveniente para descrever quão língua presa seu amante o torna. Ele se refere a sua carreira dramática mais claramente nos sonetos 110 e 111? Seu ir “aqui e ali” pode representar seu trabalho como um ator viajante, algo que “fez de mim mesmo uma mixórdia a vista” e “por isso minha natureza foi vencida / Pelo que ela trabalha, como a mão do tintureiro.” Mais seguramente, o falante faz repetida, explícita referência à sua identidade como um escritor ou ao menos a seus escritos desses mesmos poemas que no início da sequência ele oferece ao Jovem Homem como um tipo de antídoto contra o encantamento do Tempo. Ele menciona sua “Musa,” sua “pena” e “tinta,” e seus esforços para escrever. Parece existir também uma ansiedade genuína quando o Poeta Rival aparece na sequência, ao longo dos sonetos 76 até o 86. E isso leva a questões sobre um possível relacionamento de patronagem entre um rico homem jovem que suporta um poeta mais velho e mais pobre. O falante se refere a esse relacionamento mais profissional entre patrono-escritor quando chama a si mesmo de “escravo,” ou esta é uma declaração da sua servidão romântica?

          Essas questões de identidade e representação não se tornam menos complicadas na seção final da sequência, envolvendo a Dama Negra. É ela quem encanta o falante no soneto 128 ou meramente uma imagem convencional de uma donzela interpretando uma virgem? (Pense na pintura de Vermeer aqui ou em vários retratos do Cinquecento Italiano.) E o desgosto sexual no soneto seguinte, 129 – atribuímos a Shakespeare também, ou ao falante, que identificamos nesse ponto da sequência, ou é meramente um “amontoado” literário de várias definições e efeitos sobre o tópico da luxúria? Se começarmos a ver quão complicado o gênero da poesia lírica torna a identificação dos personagens, ou mesmos das personas, nesses sonetos, então começamos a apreender as oportunidades de complexidade representacional que o dramaturgo supremo em Shakespeare sem dúvida saboreou.

O Jovem Homem

          O Jovem Homem é provavelmente o destinatário da maioria – ou ao menos vários, senão todos – dos sonetos 1-126. A maioria endereça a um “tu” (thou), na segunda pessoa, mas alguns outros poemas narrativos na terceira pessoa podem aludir à mesma pessoa ou personagem, mesmo que de uma outra perspectiva poética simplesmente. Associado a isso, alguns críticos escrupulosos apontam que a divisão clássica dos endereçados – o Jovem Homem nos sonetos 1-126 e a Dama Negra nos 127-154 –  é assumida no caso de vários sonetos em cada série, sem pistas de nenhuma forma nos pronomes de gênero. Um leitor cético pode também notar que não há distinção, uma característica identificável que torna o “jovem”, ou “meu amor” ou “justa beleza” e assim por diante, endereçados ao longo desses sonetos à mesma pessoa ou o mesmo personagem. Nós não sabemos, ainda que haja um tratamento excepcionalmente caloroso e intensidade da situação dramatizada nesses sonetos, essas qualidades fizeram a maioria dos leitores por quatro séculos assumir, senão um atual, um destinatário histórico por trás do Sonetos (pois a maioria dos leitores de fato assumiram isso), então, ao menos uma presença cuidadosamente criada, sustentada e fictícia, a qual o falante declara-se, essa persona lírica e discutivelmente dramática ficou conhecida como o Jovem Homem.

          É ele a quem o falante apela nos primeiros 17 sonetos de “Procriação”, e alguns críticos levantaram a hipótese que Shakespeare pode ter sido encarregado por pais preocupados a escrever esses poemas para convencer seu filho a casar-se e ter filhos. Nós ouvimos desse jovem já no soneto 2, e ele é “mais rico em juventude” e goza dos seus “dias de juventude’ no soneto 15. O soneto 22 declara que “juventude e tu são da mesma data.” Os poemas posteriores, apresentando um relacionamento mais exaltado ou tenso entre o falante e o Jovem Homem, referem à juventude dele como uma causa do comportamento que machuca o falante ou ao menos tornar-se uma desculpa conveniente para as ações do mais jovem. O soneto 41 fala de uma repreensão à beleza do Jovem Homem e a “juventude extraviada”, enquanto o soneto 96, abrindo com o inócuo “Alguns dizem”, incomoda-se com a juventude do homem por esta ser a fonte de suas faltas e descontroles, assim como de sua beleza. Frequentemente a juventude do Jovem Homem é emparelhada com sua beleza, como na frase do soneto 54 “bela e linda juventude.” Por contraste, o falante no soneto 73 permanece “nas cinzas da juventude dele”, apesar de às vezes as graças do jovem ou o desejo do falante serem suficientes para dá-los uma identidade mútua: “nossos amores indivisíveis são um” (soneto 36), “meu amigo e Eu somos um” (41), “tu meu, eu teu, amor eterno” (108, e veja também os sonetos 31, 36 e 39). A famosa defesa do soneto 116 do “casamento de mentes verdadeiras” parece pelo contexto ser endereçada ao Jovem Homem. Às vezes o reconhecimento do falante da idade do Jovem Homem soa totalmente carinhosa – “garoto doce” (108), “meu querido garoto” (126) – e no incomparável soneto 20, “Uma face de mulher pintada com as mãos da Natureza,” o falante alegremente sugere que o jovem tem característica femininas muito atraentes, e ele lamenta que a Natureza tenha ido tão longe e dado ao Jovem Homem uma “coisa”, ou pênis, porque de outra forma ele seria um amante perfeito. Alguns leitores pensaram que nesse soneto sobre o “mestre-amante da minha paixão” (master-mistress of my passion) seria chocante, a mais explícita expressão do falante do seu relacionamento sexual com o Jovem Homem. Outros, entretanto, inferiram o exato oposto: aqui temos o falante dizendo simplesmente que o jovem, sendo um homem, é a única razão porque eles não são completamente amantes. Eles compartilham um amor, mas “seu uso do amor” (isto é, sua atividade sexual) é feita para mulheres.

          Como podemos definir o relacionamento do falante com o Jovem Homem exatamente? Eles são meros amigos, mesmo que a linguagem da amizade da Renascença seja mais forte e aparentemente mais íntima do que é comum hoje? A linguagem de lado, os rapazes hoje são capazes de serem tão dedicados, tão elogiosos aos seus melhores amigos? Ou o falante e o Jovem Homem estão romanticamente envolvidos, e se sim, há ali algum signo que o romance deles foi consumado e é fisicamente ativo? Um poema como o soneto 20 acima lança luz sobre esses mistérios? Essas questões atraíram (ou distraíram) eruditos e críticos por séculos. O relacionamento parece ter sido intenso o bastante pois o “doce amor” do Jovem Homem sustenta o falante durante tempos difíceis (29), e, mais problematicamente, o falante pode sentir-se traído, ou antes em conflito, quando os triângulos ocorrem entre ele mesmo, o Jovem Homem e outros. Assim, os sonetos 40-42 dramatizam um escândalo social que muitos tomam como sendo a traição do Jovem Homem com uma mulher conhecida por ambos, que pode ser a Dama Negra da última série de sonetos. A emergência de um Poeta Rival, da mesma forma, empurra o falante até o desespero, pois ele contempla um mundo no qual as afeições ou a mera atenção do Jovem Homem são perdidas. É importante notar que mesmo aqui, quando o relacionamento deles é mais tenso, o falante não é avaro nos elogios ao amado amigo: Ele continua falando da beleza do jovem no soneto 41 com o tipo de repetição que beira a obsessão ou o descontrole emocional, e no soneto 144, onde o falante estrutura a si mesmo como se instigado por dois amantes, é o jovem quem é o amor do conforto. Ele é descrito em termos quentes: “o melhor anjo é um homem muito belo,” que aponta para a abertura da sequência, quando o falante explica geralmente como desejamos “aumento” das “criaturas mais belas.” (1.1.).

          Momentos de elogio ao Homem Jovem ocorrem frequentemente, dos “olhos brilhantes” ao exagero, “o ornamento fresco do mundo” no mesmo poema de abertura, aos múltiplos usos de “belo” (fair) em praticamente todos os sonetos de Procriação. Similarmente, o falante pede ao Tempo não “escavar a bela face do meu amor” no soneto 19, e o “amigo belo” (soneto 104), ou o amor do falante por ele, é descrito nesses termos em outros lugares (sonetos 21, 43, 46, 69, 82, 83, 105 e 108). A “beleza” do Jovem Homem é lembrada frequentemente, apesar de, às vezes, em contextos comprometedores. Por exemplo, o falante toma as dores de discutir a beleza do Jovem Homem nos primeiros sonetos porque ele procura avisá-lo que sua beleza não irá durar para sempre, e então ele deve ter um herdeiro que continuará sua bela forma. Ou, em outro lugar, ele traz a beleza do jovem para contrastá-la com a falsidade feia (vejo o soneto 41 mais explicitamente). No soneto 95, a “beleza de teu nome germinante” é percebida com vergonha, e o soneto anterior, 94, é igualmente comprometedor. Ainda muito mais comum, o falante compõe e opera no reino do elogio comemorativo: o falante protegerá “a beleza doce do meu amor” do esquecimento da Idade pois “Sua beleza deve ser vista nessas linhas negras” (soneto 63).

          A propensão do falante a idealizar o Jovem Homem é uma das características chave que distingue seu papel na sequência do papel da Dama Negra, onde há quase sempre um senso de ambivalência (para colocá-lo moderadamente). Às vezes o Homem Jovem parece a forma platônica para tipos mais baixo e artificiais de beleza, como quando o soneto 68 promete que a beleza do jovem é feita “Para mostrar para a falsa arte o que a beleza era outrora,” ou a longa “exibição” (ou catálogo) do soneto 106 do “melhor da doce beleza,” que ultimamente é discriminada somente para sugerir ao Homem Jovem “Mesmo essa beleza que é sua agora”. Adicionalmente, o jovem torna-se o tesouro da Natureza e serve como medida para indicar a abundância da natureza. Mais abstratamente, encontramos “a beleza da tua mente” elogiada no soneto 69, enquanto o soneto 101 ousadamente anuncia, “Ambas verdade e beleza de meu amor depende,” como o faz a Musa do poeta, ainda outro gesto idealizante comum na poesia lírica cortesã dedicada ao amor exaltado. Shakespeare apresenta de maneira mais autoconsciente o elemento idealizante e possivelmente enganoso de sua arte quando, no soneto 95, ele endereça “a ti, Onde o véu da beleza cobre cada borrão / E todas as coisas tornam-se belas para os olhos verem!” Esse véu dos borrões não os apaga da memória do falante machucado, nem os remove; ele meramente parece belo aqueles olhos que “podem ver.” Mas há aqueles que sabem, como o falante sabe, que esse relacionamento é muito mais complexo, e o Jovem Homem bem menos ideal, sem mencionar menos leal e confiável. Mesmo um discurso aparentemente transparente – “Senhor do meu amor” (soneto 26) – pode soar efusivo no amor ou um sinal escuro do sentimento do falante de dependência ou escravidão ao amado (57, 75), até materialmente, em termos do relacionamento de patronagem entre o nobre e o poeta, ou emocionalmente, conforme o falante debate-se nas redes de um amor perscrutado que sente-se inseguro ou não retribuído.

          Essa insegurança pode ter muito a ver com a aparente posição social do Jovem Homem, algo que muito já foi escrito e ainda mais inferido dos próprios sonetos. Claramente o falante admira o jovem para além da beleza física. O soneto 37 diz da “beleza, nascimento ou riqueza, ou argúcia” sendo “Conferidas às tuas partes,” e depois ele fala da “tua glória.” (Sonetos 80 e 87 também parecem assumir a boa reputação do jovem aos olhos do mundo.) Alguns críticos enfatizaram a construção hipotética aqui, “Se a beleza” e assim por diante, mas aquela qualificação parece intencional, e a lista ficaria fora do lugar se essas qualidades não fossem aplicadas ao Jovem Homem. Ademais, a palavra “Conferida” (Intitled) é escolhida precisamente se o endereçado é da aristocracia proprietária de terras. O falante castiga o jovem ao adicionar uma maldição a suas “belas bênçãos” no soneto 84, pois ele está agindo rudemente em “Ser encontrado nos elogios” ou preocupando-se muito com sua reputação entre as classes gerais. Certos sonetos indicam que o Jovem Homem detém alta posição pública. O falante diz que o jovem não precisa “me honrar com a gentileza pública / A menos que tu tomes aquela honra de teu nome” (soneto 36), enquanto o soneto 96 pode dizer “todos os tipos de pessoas” quando diz das graças e faltas do jovem “são amadas mais e menos.” Esse poema também encoraja-o a “usar a força de todo seu estado!” que provavelmente refere-se aos privilégios do status. (Os sonetos 69 e 95 também implicam o jovem que gasta tempo sobre os olhos públicos.) O falante soa defensivo no soneto 124 – “Se meu caro amor fosse apenas a criança do estado” – e ele provavelmente não tem necessidade de desdenhar “a pompa sorridente” e a “política”, ao menos que estivesse em perigo de ser visto como um oportunista ou bajulador, deleitando-se no brilho da boa fortuna do jovem. A argúcia do poema, de fato, é elevada por essa hipótese de posição social ou política, pois eventualmente o falante gaba-se que seu amor “permanece somente extremamente político.” Ele quer dizer “político” não no sentido que seus acusadores o fazem, como um favorito ou protegido politicamente envolvido, mas antes “político” no sentido de prudente ou sábio, pois as adversidades dos dias não influenciarão seu amor.

          Com essas ideias em mente, não surpreende que as duas figuras históricas mais consistentes propostas como modelos para o Jovem Homem tenham sido dois jovens nobres ativos na Inglaterra elisabetana e jacobina, o conde de Southampton e o conde de Pembroke. Os argumentos sobre as candidaturas deles, e de muitos outros, serão encontrados nos ensaios seguintes sobre a recepção crítica dos Sonetos, especialmente na introdução ao século dezenove.

A Dama Negra

          A Dama Negra é a mulher (presumivelmente somente uma, mas ninguém pode dizer isso com certeza) a qual o falante de Shakespeare se volta após os sonetos do Jovem Homem. Esse novo destinatário emerge no soneto 127 e permanece até o final da sequência (de novo, presumivelmente) ou ao menos até o soneto 152 se os sonetos 153 e 154, menos pessoais, são julgados separados – ou como epílogos seguindo os poemas da Dama Negra ou como estrofes que desvia dos sonetos como um todo para A Queixa de um Amante, o longo poema de conclusão da versão in quarto dos Sonetos em 1609. Apesar de Shakespeare não prover pistas explícitas, é possível que a Dama Negra entre na sequência nos sonetos 40-42, que dramatiza a crise no relacionamento do falante e do Jovem Homem por causa do caso do último com uma mulher. É a Dama Negra o objeto do “furto’ pelo “ladrão cortês” que é o Homem Jovem? Essa mulher mais agressivamente “corteja” no soneto 41, e alguns editores emendaram o pronome em “ele prevaleceu” para “ela” – isto é, a mulher torna-se a sedutora da “juventude extraviada” do Jovem Homem, um papel tornado explícito na linha 13. O soneto 42 resolve esse triângulo ou, mais precisamente, o dissolve. O falante admite que ele amou uma mulher afetuosamente mas também admite lamentar a traição do Jovem Homem muito mais. Ele acusa ambos de abusarem dele. Em um final mais astuto que satisfatório, declara que seu amigo e ele são um só, e assim, apesar do caso, ainda “ela ama apenas a mim.”

          Quando mais formalmente a Dama Negra aparece ou reaparece, já no fim da sequência, o falante rapidamente fornece alguns detalhes físicos e outras características que faltaram anteriormente. Atingindo um certo encerramento com “meu amado garoto” no soneto 126, o falante chega ao soneto 127 a uma meditação sobre as medidas variantes da beleza. Uma vez que as coisas “belas” ou claras são consideradas belas, “Mas agora é a beleza negra a herdeira sucessiva / E a beleza caluniada com uma vergonha bastarda.” Ouvimos que a amante tem olhos que são “negros como o corvo,” e os sonetos subsequentes falam de seus seios “pardos”, os “fios negros” de seu cabelo, e a beleza negra dela em geral. Os críticos usualmente tomaram esses detalhes como sinais do aspecto negro da Dama Negra. Note que no soneto 127 o falante não admite que a negritude seja bela, mas que somente o tempo presente apresenta-a assim e por isso difama a beleza verdadeira. É o primeiro sinal de uma crescente misoginia em relação à amante, e A. D. Cousins aponta habilmente que o relacionamento do falante com o Jovem Homem às vezes celebra a continuidade entre o passado e o presente (veja o soneto 106), mas aqui a Dama Negra preside sobre um mundo em declínio. O falante pode condenar os cosméticos, que previne os outros de saber se uma mulher era branca ou negra, e ele equaciona aquela duplicidade com as falsas aparências dos olhos da amante – “eles parecem enlutados” (uma comparação revisitada no soneto 132). Os sonetos 128-130 mostram um escopo incansável de tom e expressão no espaço de três sonetos curtos. O primeiro é um poema encantador sobre o desejo físico, baseado em um quadro popular da Renascença de uma mulher atuando como virginal, com um instrumento parecido com um piano, que no contexto da Dama Negra, conota provavelmente forte ironia. O soneto 129, um dos mais famosos da sequência, reage à jovialidade corporal do poema anterior com uma feroz repulsão contra a escravidão irracional do apetite sexual. O falante atormentado enquadra as atrações sexuais da mulher paradoxalmente, como um “céu que leva os homens a esse inferno.” Essa linguagem dura, e o amargo encantamento por trás dela, aparecerá em um crescendo nos sonetos restantes à Dama Negra. Mesmo que a paródia petrarquiana do soneto 130, “Os olhos da minha amada não são como o sol,” restaura algo do ar revigorante que o soneto 129 havia frustrado. Muitos tomaram o dístico, que distingue “meu amor” de “ela se contradisse com falsas comparações,” mas essa frase final reintroduz o tema da duplicidade, do desejo enganoso, e a representação falsa (ou por cosméticos ou pela imagem petrarquiana nos sonetos) que assombrou o falante nessa subsequência.

          Na próxima série de sonetos, o falante explora mais a fundo seu desejo ambivalente pela Dama Negra e revela a extensão da divisão dentro de si mesmo. “Tua negritude é a mais clara do meu lugar de julgamento,” ele confessa no soneto 31, mas somente depois de considerar clinicamente como os outros não considerariam a face da Dama Negra valiosa, tornando-a a amante cruel e orgulhosa da convenção poética. O falante, entretanto, sente outra coisa, mas mesmo ele, quando só e falando consigo mesmo, está terrivelmente cônscio da “difamação” que é sua “idolatria” a essa mulher, como se ela fosse sua amante ideal. Tendo delineada a sua própria inconsistência e desejo contraditório, o falante introduz o “amigo” no soneto 133 e assim reintroduz o triângulo dos personagens. Ele e o Jovem Homem são problematicamente similares – ambos, parece, estão romanticamente fascinados pela Dama Negra. O falante, ao ver os efeitos do seu desejo em outro, fica com raiva dessa mulher prejudicial e seu “âmago de aço.” Ademais, o falante identifica-se próximo do Jovem Homem nos sonetos, que é “meu próximo ser” e “aquele outro meu” e assim por diante. O falante procura ser um dublê sacrificial para seu amigo no soneto 133 mas é manipulado no 134 – ele se fascina pela Dama Negra, mas ela não libertou o Jovem Homem de sua paixão, ou vice-versa, por isso: “Eu o perdi, tu tens a ambos ele e eu; / Ele paga inteiro, e assim não sou livre.” A mulher é acusada de trair os amantes, causando sofrimento a ambos. Os Sonetos 135-137 são os mais indecentes dos Sonetos, e, ao empregar tão livremente o significado de gíria para “querer” (will) (Significando a genitália masculina ou feminina, assim como o desejo carnal geralmente), o falante coloca a Dama Negra e a si mesmo em um discurso altamente sexualizado flagrantemente analítico. Aparentemente a mulher pode ter qualquer homem que ela quiser, e assim “Vontade em excesso,” que talvez não seja uma grande surpresa pois nos é dito que a “vontade (dela) é larga e espaçosa.” Considerando quão promíscua ela é, porque o falante não pode esconder suas “vontades” nela também? O soneto 136 torna clara a fundação última do relacionamento do falante e da Dama Negra e o que é mais desejado. Não é o coração nem a alma de amantes ideais, mas a “Vontade irá preencher o tesouro do seu amor, / Sim, enchê-lo de vontades,” adiciona o falante grosseiramente. O soneto 137 continua esse tom, falando do sexo da mulher como a “baía onde todos os homens passeiam,” e ainda assim o falante admite que isso o fascina, falsifica seus olhos, e, através deles, fisga seu julgamento. Esse senso de hipocrisia frustrado é mais analisado nos sonetos 139-142, onde o falante justifica e denuncia a indelicadeza da Dama Negra e trata de seus olhos e coração. O auge do descontentamento dele, entretanto, é encontrado no soneto 138, “Quando meu amor jura que ela é feita de verdade.” As listas de mentiras e a gratidão mútuas por essas mentiras, foi descrito como “tão feliz quanto viciosa,” mas um sentimento todo diferente parece principal aqui – a profunda resignação à ilusão sexual do casal e a compartilhada necessidade dessa própria ilusão.

          Levado por um símile estendido entre mãe e filho, o soneto 143 implica uma situação na qual a Dama Negra está agora interessada em outro, que não está tão interessado nela, situação que leva o falante, “teu bebê”, a buscar a mulher e implorar a ela que volte e o receba novamente. O soneto 144 claramente reestabelece o triângulo que o falante se encontrava com a Dama Negra e o Jovem Homem. Sem ambiguidade ele mostra sua preferência ao amigo, o amor do conforto que é o “melhor anjo”, enquanto a mulher, “um espírito pior” que é “colorida na doença,” é o amor do desespero, tentando o Jovem Homem sexualmente e assim o falante ao inferno. Acreditando que o “sujo orgulho” dela irá vencer a “pureza” do Jovem Homem, o falante termina o poema em um tom derrotado e um talvez sugestivo de doença venérea. O soneto 146, um excepcional na sequência, é um raro exemplo de Shakespeare escrevendo no viés da poesia religiosa. Aqui ele deseja mover-se além dos confins do corpo e seus desejos e olha no sentido da paz eterna da alma, para além da Morte. Ainda que esse anseio espiritual seja transitório. Os próximos quatro sonetos tratam da servidão e inconsistência enfurecedora cada vez maior do falante. O soneto 147 retorna ao tema “irracional” do soneto 129 com uma urgência renovada, enquanto os outros voltam-se ao motivo familiar dos sonetos do “amante cego”. Ele acusa seu “astuto amor” de mantê-lo em lágrimas, pois previne seus olhos de serem “bem vistos” e encontra as “faltas sujas” dela. O soneto 149 é um poema doloroso, porque reconhece ambos a rejeição da Dama Negra pelo falante e seu contínuo amor por ela, apesar de doentio e imerecido – “todo meu melhor venera teu defeito,” o falante diz. Ele emite um amargo convite em seu estado de cegueira: “amor, odeie” quando chega a ele, e ame em vez disso aqueles que veem bem. O soneto 150 explora intensamente um paradoxo terrível: por que o falante está cada vez mais devotado a uma mulher que “quanto mais ouço e vejo somente causa ódio?” É como se a escala de afecção tenha sido completamente invertida no falante emocionalmente iludido, que infelizmente mantém uma espantosa claridade clínica da sua própria situação ridícula. O soneto 151 retorna às preocupações entre corpo-mente do soneto 146, mas de uma maneira apática, murcha. Aqui o falante admite sua escravidão à sua carne – “Eu traí / Minha parte mais nobre a traição do meu rude corpo” – mas rapidamente o soneto transfere-se para uma série de piadas sobre ereção. O próprio nome da Dama Negra leva o falante para “altos e baixos,” como se ao menos uma parte do corpo fosse serva ou tenente do capitão sexual que é a mulher. O último dos poemas à Dama Negra, soneto 152, nos informa que a Dama Negra é de fato uma adúltera. Ao amar e então rejeitar o falante, ela quebra um “voto-de-cama,” querendo dizer seu juramento de casamento, e ela também quebra o juramento de amar o falante ao “jurar novo ódio” a ele. Porém a subsequência termina em uma nota de auto-recriminação. Ele quebrou vinte juramentos por ela, que quebrou dois, pois repetidamente ele perjurou seus olhos (e sua própria pessoa, seu “Eu” nesses sonetos atormentados) porque “Eu havia jurado à tua justiça.” A imagem que conclui enquadra o falante como vítima do cego Cupido, e assim adequadamente, os dois últimos sonetos, os mais impessoais de toda a sequência são poemas emblemáticos sobre o “pequeno deus-Amor.”

          Por séculos os eruditos tentaram identificar a Dama Negra dos sonetos finais de Shakespeare com sua contraparte histórica. Os críticos antigos, que defendiam a honra de Shakespeare (assumindo completamente que o “Eu” dos Sonetos era sempre ele) foram rápidos ao associar a mulher com a esposa do poeta, Anne Hathaway. Imaginar a mulher como uma esposa na sequência – atormentada com escravização sexual, traição, e ódio corruptor do amor – dificilmente fornece a respeitabilidade social tão cara a esses críticos, e, além disso, o comentário do falante sobre a quebra de um “juramento de cama” torna inteiramente claro que seu relacionamento com a Dama Negra era extraconjugal. Outras candidatas históricas propostas incluem Elizabeth Vernon, a noiva do conde de Southampton, frequentemente pensado como o histórico Jovem Homem; A dama de honra de Elizabeth I, Mary Fitton, que foi uma candidata popular no final do século dezenove, até que retratos dela apareceram e a mostraram muito clara em aspecto, sem os olhos “negros como corvos” da amante dos Sonetos; A Rainha Elizabeth ela própria (!); Jane Davenant, a qual o filho William (provavelmente em um caso de profunda emulação literária patológica) de fato insinua-se que ele tenha sido um filho ilegítimo de Shakespeare; uma prostituta africana chamada Lucy Morgan; e Emilia Lanier, uma escritora e amante do Lord Chamberlain, que patrocinava a companhia de Shakespeare. Como um crítico honesto e raramente humilde coloca, “Houve muitas conjecturas, mas ninguém realmente sabe quem ela foi.”

          Apesar de muito velha para ser mesmo uma remota candidata, Penelope Rich também foi mencionada – a inspiração por trás da sequência de sonetos de Philip Sidney em 1580 Astrophil e Stella, uma fonte influente para Shakespeare. Rich levanta outro ponto importante: a convenção literária também influenciou a escolha de Shakespeare das características da sua amante. Por exemplo, Sidney descreve Stella no soneto 70 da sua sequência em termos visivelmente similares:

Quando a Natureza fez sua obra principal, os olhos de Stella,

De cores negras, por que ela embrulhou os raios de luz tão brilhantes?

Lá onde o negro parece ser o contrário da Beleza,

Ela mesmo em negro faz todas as belezas fluírem?

          A presença dessa tradição literária deveria pausar todos os detetives históricos inclinados em identificar os personagens dos Sonetos. O interesse na presença da Dama Negra na poesia de Shakespeare e as várias realidades dela – histórica, cultural ou lírica – tem frequentemente se alterado conforme altera-se a abordagem da crítica literária. Assim os esforços para identificar a fonte histórica dela decresceram, enquanto os críticos interessados nos mais recentes tópicos do Novo Historicismo procuram diferentes tipos de evidência na representação da amante dos Sonetos. O que Shakespeare e seus primeiros leitores anteviam quando imaginavam a negritude da Dama Negra? Ela era Africana, Mediterrânea? Não-Inglesa no sentido geral, ou totalmente Inglesa e simplesmente com aspecto negro? Quais qualidades morais essa negritude pressupõe? Estudos de raça e teorias climáticas durante a Renascença indiretamente mostraram aos eruditos dos Sonetos que a mera escolha de Shakespeare da cor para identificar sua amante introduz na sua sequência assuntos complexos sobre cultura, nacionalidade, e outros. Eruditos recentes como Marvin Hunt e Ilona Bell alteraram suas avaliações da Dama Negra de um modo mais conscientemente literário, teórico, preocupando-se pouco com questões de história e raça, e considerando, em vez disso, o papel dela, nas palavras de Hunt, “como um sinal literário o qual os sinais de cor estão inevitavelmente anexados.”

O Poeta Rival

          O Poeta Rival é a menos significante das quatro personas nos Sonetos, apesar de seu breve aparecimento, dos sonetos 78-86, precipitar uma série de crises na autoconfiança do falante – como um poeta, como escritor que desfruta a “assistência justa” de um suporte de um patrão e, mais pessoalmente, como um favorito exclusivo do Jovem Homem e participante com ele de um relacionamento complexo dramatizado ao longo dos primeiros 126 sonetos. A respeito disso, especialmente, o Poeta Rival faz um importante papel em completar outra “triangulação” que repetidamente marca a sequência de Shakespeare e mina a paz da mente do falante. Já escutamos insinuações na sequência do comportamento pobre do Jovem Homem e vimos um drama de infidelidade também, talvez entre o Jovem Homem e a Dama Negra, nos sonetos 40-42. A “pena estranha” do Poeta Rival irá da mesma forma alienar o falante da afecção do Jovem Homem, assim criando um segundo triângulo totalmente masculino. Dito isso, o soneto 76 indica uma dúvida em si mesmo no falante, de que a subsequente presença do rival só aumente. “Por que meu verso é desprovido do novo orgulho,” a linha da abertura pergunta, por que ele está fora de moda e um estranho a “Novos métodos encontrados e estranho a misturas”? Porém a segunda metade do soneto oferece uma resolução: “Você e o amor continuam sendo meus argumentos,” o falante diz ao Jovem Homem. Ele coloca um novo vestido em antigas palavras que refletem a consistência do relacionamento deles. Isso explica o estilo fora de moda do falante, que ele parece defender aqui de forma indireta?

          O soneto 78, tradicionalmente o primeiro do grupo do “Poeta Rival”, ainda não reflete uma competição direta entre os poetas velhos e novos, mas reconhece que o Jovem Homem inspirou e recebeu versos não somente do falante, mas também de “toda pena estranha.” Note como, nesse ponto, o falante defensivamente introduz um grupo de poetas, figurados aqui como invasores que competem para tomar o “uso” acostumado do falante, querendo dizer sua atividade poética, ou possível recompensa, com respeito ao jovem patrono. Quando o soneto faz a virada, no terceiro quarteto, o falante individualiza-se como o poeta mais leal e superior. Ele apela para o Jovem Homem ser “o mais orgulhoso” dele. As virtudes do Jovem Homem inspiram todos os poetas. Ainda que ele aumente os versos dos outros poetas de formas apenas superficiais, estilísticas, enquanto “tu és todo minha arte,” o falante declara. Os sonetos 79 e 80 intensificam as tensões introduzidas nos poemas anteriores. Alguns críticos interpretaram a repetição de “sozinho” nas primeiras duas linhas do soneto 79 como a ênfase do falante em ter sido deixado a sós. Entretanto, o significado primário aqui é sua raiva em ter sido anteriormente o poeta exclusivo do Jovem Homem e agora tendo competição, incluindo um poeta particular que faz o falante sentir-se inferior. Esse Poeta Rival é chamado de “uma caneta mais valorosa” poucas linhas depois e no soneto 80 torna-se “um melhor espírito.” O soneto 79 é principalmente acusatório, insinuando que o Poeta Rival é uma falsificador e mesmo um ladrão, “roubando” a aparência e o comportamento do Jovem Homem para ofertá-los novamente, como se fossem os presentes do próprio rival. Isso pode ser uma acusação sensível, porque qualquer aristocrata ficaria preocupado com servos possivelmente agindo desonestamente em sua propriedade. O complexo de inferioridade do falante cresce no soneto 80, assim como sua confiança na aprovação do Jovem Homem e na preferência por ele e sua poesia. Tomado igualmente, o falante concede que os elogios do Poeta Rival ameaçam deixá-lo “com a língua presa,” e ele julga-se “muito inferior” comparado com seu competidor. Apesar que se o Jovem Homem quiser, ele pode fazer, pelo seu favor, o humilde parecer “como a mais orgulhosa vela.” (sail)

          Se a crítica do falante ao Poeta Rival abre espaço para um apelo ao Homem Jovem, nos sonetos 79 e 80, então o tom mais frio do soneto 82 pode fazer essa segunda empreitada menos realizável. Assim como o soneto 116 (que também centra na ideia de casamento), há uma forte impressão que o falante está respondendo a uma crítica anterior pelo Jovem Homem. Provavelmente o patrão objetou à raiva ou os sentimentos machucados do falante, dizendo que ele não era “casado,” ou exclusivamente unido com a musa do falante. Indiretamente nós ouvimos informações adicionais sobre o Poeta Rival: tão grande é o valor do Jovem Homem, que ele deve “buscar novos / Algum carimbo mais fresco dos dias melhores.” O restante das linhas do soneto fornece ironia à frase “time-bettering”, ainda que o fato permaneça, que o patrão encontre na poesia rival algo de mais fresco e mais atual que aquela do falante antigo. O poeta mais velho acha as atrações do rival dúbias, cheias de “toques manchados” e “pintura grossa,” e não iguala a suas próprias “palavras verdadeiras e planas.” O soneto 83 isola o triângulo ainda mais ao mencionar para o Jovem Homem “ambos seus poetas.”

          Os sonetos 85 e 86 leva a sequência do Poeta Rival a um fechamento climático, desencorajador para o falante. Primeiro ouvimos do seu declínio poético. Sua “Musa de língua-atada” leva-o a ter um papel passivo, silencioso, perante as “boas palavras” “daquele belo espírito.” O rival tornou-se independente, com “forma polida de uma pena bem-refinada.” Embora o soneto 86 apresente duas longas questões, um tom de finalidade leva a pensar que essas questões são retóricas e amarguradas. Os críticos encontraram na linha de abertura – “Foi a completa e orgulhosa vela do seu grande verso” – uma dica do próprio estilo do Poeta Rival, um aparente alto estilo “acima do tom mortal.” John Blades memoravelmente sumarizou os sons que interrompem o fluxo de ar do “b” e “p” como criando um “ousado peso dramático.”

          Em 1874 William Minto sugeriu primeiramente George Chapman como o melhor candidato para o Poeta Rival, e Chapman permanece a escolha mais válida hoje. (Praticamente todo escritor contemporâneo a Shakespeare foi proposto, incluindo Christopher Marlowe, Ben Jonson, Samuel Daniel e Edmund Spenser.) Como um tradutor que reproduziu os poemas épicos homéricos em forma longa, as “quatorze” linhas inglesas, ele melhor se enquadra no desdém do falante, apreciação vencida e a obra de Chapman Shadow of Night pode ter sido aludida nas últimas linhas desses sonetos. O drama finalmente repousa sobre o Jovem Homem, entretanto. É sua “fisionomia” – a inspiração da sua aparência, mas mais importante sua aceitação – que permitiu o Poeta Rival navegar “completo” e garantiu que ao falante faltasse “matéria”, querendo dizer conteúdo poético, mas também uma privação pessoal, sentida mais profundamente. A honestidade dolorosa do falante nesses sonetos, acima da sua arte e posição social, sua amizade e seu amor, são razões significantes porque tantos leitores através dos séculos encontraram insistentemente nos Sonetos um registro de Shakespeare o homem.

A Crítica Através das Eras

Os Sonetos nos Séculos Dezesseis e Dezessete

          O primeiro comentário escrito sobre William Shakespeare e seus sonetos apareceu um pouco antes do séc. XVII e muito provavelmente foram contemporâneos com a escritura de ao menos alguns dos 154 poemas líricos da sequência longa e diversa que em breve seria conhecida como Sonetos. Francis Meres, em seu livro de lugares-comuns literários, Palladis Tamia ou Wit´s Treasury tem um grande e aparentemente exaustivo prazer em elogiar os autores ingleses contemporâneos. Ele argumentou orgulhosamente que seus compatriotas realizaram, na língua Inglesa e em uma variedade de gêneros, a mesma façanha que seus predecessores na antiga Grécia e Roma. O método de Meres de catalogar por pares antigos/modernos marcou o livro como um produto da Renascença Inglesa. Para muitos de seus gêneros e seu sentido de gosto literário, esse período da literatura inglesa regressava aos autores clássicos e suas realizações estéticas. Há também um apelo patriótico em Meres, que se sentia certo que a Inglaterra Elisabetana tardia, experienciava uma Época de Ouro literária, do tipo que não se via desde os tempos de Péricles em Atenas ou Augusto em Roma. Os elogios de Meres em relação a Shakespeare, tanto como poeta quanto dramaturgo, são curtos porém justamente famosos. Levantando uma história sobre metempsicose (ou transferência da alma) relacionada com o antigo filósofo Pitágoras, Meres declara que de maneira similar, a “espirituosa doce alma” do poeta Romano do amor, Ovídio, agora vive na “melíflua língua-de-mel” (“mellifluos and honey-tongued) de Shakespeare. Meres oferece como prova dois poemas narrativos de Shakespeare, Vênus e Adônis e O Estupro de Lucrécia, mas também menciona “seus Sonetos açucarados entre seus amigos privados.” Ele continua a elogiar Shakespeare como escritor de ambas tragédias e comédias, e as subsequentes listas das peças de Meres têm sido um presente para estudiosos do teatro por séculos.

          O mencionar dos dois outros poemas de Shakespeare pode parecer surpreendente à primeira vista, porém, para o tempo de Meres, faz perfeito sentido: Essas eram as obras mais populares, mais frequentemente reimpressas, de Shakespeare, durante sua vida. Cópias desses poemas narrativos vendiam mais rapidamente do que qualquer cópia de suas peças, e Shakespeare ele mesmo, de maneira muito extraordinária, incluiu uma dedicatória lisonjeira do autor na frente de cada texto. As dedicatórias eram endereçadas a Henry Wriothesley, conde de Southampton, que também é um dos maiores candidatos para o “Jovem Homem” endereçado em muitos dos sonetos de Shakespeare. Mais importante, as dedicatórias de Shakespeare testemunham uma vontade de ter esses poemas publicados e associados com o autor – exatamente o tipo de associação que é frustrantemente ausente quando nos voltamos aos Sonetos. Meres pode, de fato, apontar para as intenções muito diferentes de Shakespeare em relação aos sonetos quando especifica que eles circulavam não impressos, mas “entre seus amigos privados” (ênfase minha), isto é, passando de mão em mão em um círculo de conhecidos (que provavelmente conheciam o autor e talvez algumas das versões reais dos personagens e situações dos sonetos) em manuscritos, cópias.

          O que significa para Meres que o autor dos Sonetos tinha uma “suave língua-de-mel”? Ter uma adocicada língua de mel certamente soa como um alto elogio para um poeta, mas também é uma frase comumente conectada com poetas líricos durante a era de Shakespeare. “Melífluo” tem paralelos clássicos, que agradava a Meres, e o escritor popular medieval Boécio também usou essa palavra. Shakespeare ele mesmo inclui a frase “língua-de-mel” em sua peça da metade da década de 1590, Trabalhos de Amor Perdidos. Em pouco tempo ele usaria a mesma linguagem – “boca de mel” ou “sugando o mel” – em peças subsequentes, Hamlet e O Conto de Inverno, mas ali implica lisonja, duplicidade, e algo de saciedade; de fato, Meres pode ter tido alguma dessas conotações complementares na mente, ou ao menos esses adjetivos podem adequadamente reconhecer a qualidade artificial e de elevado ornamento da primeira poesia de Shakespeare, especialmente o popular Vênus e Adônis. Artifício e doçura também marcam muitos poemas dos Sonetos, mas a maioria dos críticos diriam agora que muito mais – retoricamente, psicologicamente – está, também, operante nessa extraordinária sequência. Há algo de novo e complexo entre as virtudes formais dos primeiros textos de Shakespeare. De qualquer forma, é também importante compreender que Meres não estava sozinho na sua avaliação das características poéticas de Shakespeare. John Weever chama Shakespeare de “língua de mel”, Richard Barnfield fala do “hony-flowing Vaine,” Thomas Heywood reusa o “melífluo,” e um dramaturgo anônimo endereça “Ó doce Mr. S,” um adjetivo também usado pelo jovem John Milton. Os comentários do século dezessete aos Sonetos são raros, mas ocasionalmente há evidência de leitura ativa. Sir John Suckling ecoa ao menos seis dos sonetos na sua tragédia Brennoralt (1640), e 30 anos depois, outro autor refere-se a eles em um prefácio à sua própria obra em prosa.

          É claro que não há nenhuma evidência conclusiva que Meres refere-se aos poemas que eventualmente apareceram na sequência de Shakespeare como a conhecemos. Entretanto, no próximo ano, cinco dos sonetos de Shakespeare apareceram no Peregrino Apaixonado (The Passionate Pilgrim), uma antologia impressa três vezes por William Jaggard. A segunda edição atribui a coleção inteira a “W. Shakespeare,” apesar de 15 outros poemas na coleção não terem nada a ver com nosso poeta. Jaggard parece ter tido acesso a dois dos sonetos que circulavam privadamente (número 138 e 144), o qual ele adicionou três outros sonetos cortados do quarto ato de Trabalhos de Amor Perdidos, mais esses outros poemas falsamente atribuídos. Como um todo, ele pode ter esperado enganar o público a pensar que sua coleção impressa de fato contivesse os “Sonetos” de Shakespeare que alguns estavam lendo em manuscrito e outros ouviam sobre. Os dois poemas dos Sonetos são reimpressos aqui conforme o Peregrino Apaixonado: os estudantes podem agora facilmente comparar essas versões com aquelas versões criticamente aceitas em seus livros didáticos. As variações frequentes entre as versões emprestam um suporte adicional à hipótese que Jaggard os adquiriu antes que Shakespeare concluísse a revisão, e que Shakespeare não teve envolvimento na impressão da antologia de Jaggard. Ademais, quando Jaggard novamente atribui o Peregrino Apaixonado a “W. Shakespeare” quando uma terceira edição aparece (1612), um dramaturgo chamado Thomas Heywood no seu Apologia aos Atores (1612 também) advertiu que Shakespeare “ficou muito ofendido com M[estre]. Jaggard (sem conhecimento dele) presume ser muito audacioso com seu nome.” Jaggard, como ficará claro, seria o primeiro de muitos a fazer isso.

          Alguns poucos sonetos adicionais de Shakespeare merecem uma breve menção aqui também, apesar deles não serem identificados assim por uma boa razão – o dramaturgo situou linhas poéticas na forma de soneto dentro do horizonte mais amplo do verso branco de suas peças. Mais obviamente, três personagens em Trabalhos de Amor Perdidos recitam sonetos, os quais, como vimos, mesmo o impressor William Jaggard pôde reconhecer e, assim, apropriar-se para sua própria antologia. Mais sutilmente, Shakespeare inclue dois sonetos em sua tragédia precoce sobre jovens amantes, Romeu e Julieta. Um serve como prólogo que anuncia o cenário, as disputas de famílias e as “duas horas de tráfego do nosso palco,” enquanto o outro compreende um flerte espirituoso e um delicioso diálogo entre Romeu e Julieta sobre votos de peregrinos e beijos afetuosos. Em algum outro lugar de sua obra dramática Shakespeare dramatiza – e parodia – os tempos passados emotivos dos cavalheiros elisabetanos e a escrita de sonetos, como quando Proteus em Dois Cavalheiros de Verona aconselha o Duke a escrever “triste sonetos, os quais as rimas compostas / Devem ser totalmente atormentadas com votos serviçais.” Ele também emprega a imagética encontrada nos Sonetos para expressões de amor e seus caprichos em seus personagens; Proteus inicia a mesma peça descrevendo sua paixão extravagante a seu amigo Valentine:

Ainda que escritores digam, como no mais doce botão

O cancro ao comer reside, assim o amor faminto

Habita a maior argúcia de tudo.

          O discurso de Proteu traz à mente o soneto 94, entre outros, e também é interessante a própria consciência de Proteu em relação à sua linguagem como ainda convencional dos escritores de sonetos – “escritores digam,” ele começa. Os eruditos continuam a explorar esse intercâmbio entre os sonetos mais conhecidos e o que Helen Vendler chamou de “experimentos extra-sequenciais” do dramaturgo, com a forma e a imagética dos sonetos encontradas nas peças.

          O mais importante texto único dos Sonetos de Shakespeare – de fato, o livro que deu uma identidade coletiva e permanece os 154 poemas individuais – apareceu impresso em 1609. O Stationers’ Register, um registro das intenções dos editores em publicarem novos livros, apresenta essa entrada para aquele ano: “20 maio. Registro de Thomas Thorpe para sua cópia sob as mãos do mestre Wilson e mestre diretor Lownes, um Livro chamado Sonnettes de Shakespeare.” A primeira edição foi impressa logo depois. Edward Alleyn, um dos mais famosos atores da Inglaterra da Renascença, detinha uma cópia: Atrás de uma carta de Junho de 1609, ele escreveu um inventário que incluía “um livro de Sonetos de Shakespeare – 5d.” Dois diferentes vendedores de livros são mencionados em diferentes cópias, mas Thomas Thorpe foi claramente uma figura central ao trazer os poemas de Shakespeare para impressão. Ele é o “T.T.” que assina a dedicatória incrivelmente enigmática ao volume, a qual, apesar da sua brevidade, fascina e confunde os pesquisadores por séculos com insinuações e (estratégicas? não intencionais?) evasões. Thorpe endereça, na ortografia moderna, “à única causa desses subsequentes sonetos.” Muitos leitores tomaram “causa” (begetter) como “inspirador,” assim referindo-se ao Jovem Homem, e assim quase reflexivamente identificado com o indivíduo que aparece próximo no texto de Thorpe – um “Mr. W. H.” (veja a entrada “Jovem Homem” na seção de “Lista de Personas” para uma discussão dos candidatos mais populares para essa misteriosa identificação.) Shakespeare ele mesmo é presumivelmente o “poeta eterno,” e Thorpe é o investidor ou “aventureiro do bem-querer” que está se “expressando” com a publicação desse livro visando lucro. Em 1799 George Chalmers turvou ainda mais essas turvas águas ao argumentar que “begetter” de fato quer dizer “procurador,” (“procurer”) e assim “Mr. W.H.” não era um homem central misterioso, e possivelmente um amante homem de Shakespeare, mas meramente um amigo ganancioso de Thorpe.  Shakespeare ele próprio foi sugerido, e da mesma forma o “aventureiro do bem-querer”, tomado objetivamente, foi identificado como o leitor prestes a “seguir” na leitura dos poemas.

          Mais ao ponto, o texto de 1609, frequentemente referido como o primeiro quarto, ou “Q”, coletou 154 sonetos e apresentou-os como Os Sonetos. Isso também é mais complicado do que parece à primeira vista. Não há provas que Shakespeare autorizou a publicação dos seus poemas, determinou a forma final que eles tomaram (existem de fato muitos erros de grafia nesse volume), ou arranjou-os na ordem presente. Somente 13 cópias desse importante livro existem, um número relativamente raro que levou alguns a argumentar que Shakespeare ativamente buscou retirar e destruir o volume. É difícil dizer, mas Heather Dubrow e Arthur Marotti estão entre os mais eloquentes céticos da autoridade de fato de “Q” e da forma que ele estrutura nossas hipóteses críticas. Por outro lado, Katherine Duncan-Jones, a editora na última edição Arden dos Sonetos, corajosamente sustenta que Shakespeare provavelmente autorizou a publicação de Thorpe. Um dos argumentos dela envolve o livro como um todo: a sequência de sonetos é seguida por um poema narrativo chamado A Queixa de um Amante, que estudiosos como John Kerrigan, Katherine Rowe e Ilona Bell acharam valioso para um estudo crítico estendido. O volume como um todo, como Duncan-Jones argumenta, não é uma junção aleatória de um impressor oportunista mas antes disso, é conforme os padrões para livros poéticos – contendo uma sequência de sonetos, seguido por um interlúdio (possivelmente os sonetos marcantemente diferentes 153 e 154, no caso de Shakespeare) e uma narrativa reclamatória mais longa.

          Infelizmente, aquela junção aleatória por um editor oportunista ocorreu três décadas depois, na forma da edição ”miscelânea” pirateada por John Benson dos Poemas de Shakespeare. Ainda mais infeliz, os leitores dos próximos dois séculos serão enganados por essa coleção de misturas, cheia de títulos “rótulos” (“Tempo Injurioso,” “A Glória da Beleza,” “A Crueldade do Amor,” etc.), sonetos reordenados e combinados indiscriminadamente para formarem poemas líricos (e alguns sonetos deixados de fora), mudanças estratégicas de pronúncia, que torna o Jovem Homem de Shakespeare parecer uma amante mulher mais tradicional. Em uma entrada de 1640 no Stationers’ Register lê-se, “Registrado para sua Cópia sob as mãos do doutor Wykes e o diretor Mestre Fetherson Uma Adição de alguns excelentes Poemas a os Poemas de Shakespeare por outro cavalheiro.” Essa nota provê uma dica para outro estratagema prejudicial de Benson: ele incluiu, entre as versões estraçalhadas dos sonetos de Shakespeare, A Queixa de um Amante (que foi incluído na versão de 1609) e “A Fênix e a Pomba,” e outros poemas de Ben Jonson, Francis Beaumont, Thomas Carew e Robert Herrick. Ademais, ele intercalou poemas adicionais da edição de 1612 do Peregrino Apaixonado falsamente atribuído a Shakespeare, ao ponto de, séculos depois, o grande poeta romântico William Blake ter cotado linhas de um poema não-shakespeariano da sua antologia e erroneamente listá-lo como de “Shakespeare”.

          Como uma teoria propõe, Benson pode ter adicionado esses poemas para promover seu livro (erroneamente) como a primeira publicação dos sonetos de Shakespeare. Eles não tiveram a felicidade, ele assegura no seu prefácio, de receber a “glória proporcional” das suas “obras” mais conhecidas – isto é, suas peças. Da mesma forma, ele pode ter combinado vários poemas para fazê-los menos reconhecíveis dessa forma, pois a moda dos sonetos de 1590 havia a muito passado no tempo de Benson. Um “antigo” argumento similar, aplica-se sobre o quarto de 1609, mas os críticos como Stephen Orgel e Peter Hyland, ao mostrarem que várias sequências de sonetos foram publicadas nos anos 1600, amenizaram esse argumento. (Para mais informações sobre essas edições dos Sonetos, veja B. Roland Lewis, Os Documentos de Shakespeare, vol. 2.) Por mais suspeitas as motivações e decisões de Benson, seu livro foi a edição primordial para o resto do século.

Os Sonetos no Século Dezoito

          Os Sonetos de Shakespeare foram reimpressos várias vezes durante o século dezoito, mas foi apenas no final desse século que um pesquisador heroico e pouco valorizado, Edmund Malone, restaurou a sanidade editorial para um dos textos mais famosos em Inglês. Entretanto, antes de tratarmos dessa edição impressa, é essencial que não ignoremos as primeiras formas de transmissão – a tradição manuscrita, ou circulação “privada” mencionada por Meres – que continuou através do século dezessete e no próximo. A perversa edição de Benson, em 1640, pode ter dominado o campo editorial até as correções do final do século dezoito de Malone, mas sonetos individuais de Shakespeare continuaram a ser recopiados e circularam em livros de anotações e manuscritos de miscelâneas.

          Avaliando as versões manuscritas dos sonetos, John Kerrigan observa que a maioria deriva dos reinados de James I e Carlos I, isto é, a primeira metade do século dezessete. Dito isso, muitos são claramente copiados das edições impressas dos sonetos, incluindo a edição errônea de Benson de 1640. Assim, a transmissão típica – do autor ou outra fonte manuscrita à edição impressa – pode ser reversa. Um dos mais famosos sonetos de Shakespeare, soneto 116, circulou amplamente em manuscrito e foi também arranjado em música pelo compositor Henry Lawes, no século dezessete. O efeito criou um eco fascinante:

Self-blinding error seizeth all those minds

Who with false appellations call that ‘love’

Which alters when it alteration finds

Or with the mover hath a power to movo – (1-4)

O erro que cega a si mesmo toma todas as mentes

Quem com falsas denominações chama aquele ‘amor”

Que altera quando encontra alteração

Ou com o que se move tem um poder de mover – (1-4)

          O mais frequente poema gravado, o soneto 2, é da mesma forma rotulado em um manuscrito como “Música,” e conectando os sonetos que têm a música como tópico também apareceram em manuscrito (sonetos 8 e 128 especialmente). O soneto 2 é mais comumente intitulado “Spes Altera” (ou “Esperança Alterada”), apesar que em certos momentos aparece com os títulos – “A aquela que morrerá uma donzela,” “De um Amante para sua Amada,” “O Benefício do Casamento” – que são designados para identificar a destinatária como uma mulher, assim transformando o relacionamento lírico em algo mais normativo socialmente, nomeadamente, o que caracteriza um amante masculino e uma amada feminina. Como vimos, Benson, ao alterar vários pronomes, não teve receio de fazer isso na edição impressa.

          Tendo reconhecido a presença contínua dos manuscritos dos sonetos de Shakespeare, vamos retornar a seu destino na impressão no começo do século dezoito. Em 1709, Nicholas Rowe alcançou um divisor de água na crítica de Shakespeare, ao completar The Works of Mr. William Shakespear, ao longo com o primeiro esforço de uma biografia, em seis volumes. No próximo ano, Charles Gildon lança um sétimo volume suplementar, expressamente com a intenção de mover a poesia obscura de Shakespeare para a luz quente das suas peças mais conhecidas e prestigiadas. Os Sonetos, de qualquer forma, eram realmente obscuros. Rowe não faz menção a eles em sua biografia, apesar de se referir a Vênus e Adônis e O Estupro de Lucrécia, “a única Parte da sua Poesia que ele próprio publicou.” Apesar da sua história sobre o jovem Shakespeare caçador de cervos em uma propriedade em Stratford ser possivelmente lendária, é interessante que a poesia tenha um papel. Nós ouvimos que Shakespeare foi condenado “de uma maneira muito Severa,” então que “fizemos uma Balada sobre” o nobre homem, uma “muito amarga” e que ela depois agravou a condenação. O jovem poeta estava soando como aquelas notas amargas, vencidas e enojadas que caracterizam alguns dos sonetos de traição, ou repulsão sexual, ou insatisfação romântica? Nós nunca saberemos, mas Rowe chama a primeira balada de vingança de Shakespeare o “primeiro Ensaio de sua Poesia,” e ela foi a causa da sua fuga de Stratford para seu famoso e imortal futuro em Londres.

          Sem surpresas, então, Gildon gasta muito tempo do sétimo volume suplementar das Obras de Rowe de um modo defensivo: argumenta no sentido de uma autoria genuína dessas “Obras de Shakespeare menos conhecidas,” as quais admitidamente não “todas de igual Excelência,” são bem parecidas com as peças em sua autenticidade. Ademais, ele defende a autoria de Shakespeare dos poemas, contra os céticos que podiam especular muito no fato de eles estarem de fora da impressão. Editores e livreiros mercenários, Gildon argumentou, não sentiam escrúpulos em atribuir peças que não eram de Shakespeare ao dramaturgo popular. Excluindo os poemas, então, era impossível o perfeccionismo editorial. Cada um dos poemas nesse volume, Gildon argumenta, carrega “a Marca de seu Autor, e um Selo sobre eles,” apesar de o volume, dependente da versão de Benson, conter vários poemas que não eram de Shakespeare. Gildon também levanta a bandeira biográfica que seria brandida tão vigorosamente no final do século e daí por diante. Contra os céticos dos sonetos, ele ofereceu a tese que alguma “Amante” pensou que os sonetos seriam um registro muito pessoal dela e do seu relacionamento com Shakespeare, e assim os manteve fora de impressão e dos olhos públicos.

          Um ano depois, Bernard Lintott publicou uma edição do quarto de Thorpe de 1609, provavelmente menos por razões editoriais nobres e mais porque ele tinha acesso mais seguro a esse volume anterior e esquecido e pôde assim driblar as restrições de direitos autorais. Ele apresentou seu volume como contendo “Cento e Cinquenta e Quatro Sonetos, todos em Elogio à sua Amante.” Como Gildon, Lintott foi erroneamente induzido pelas trocas de pronome de Benson, que eliminou a presença do Jovem Homem em muitos sonetos, ou simplesmente não podia conceber o receptor de tantos poemas românticos como um homem. É claro, em ambos os casos isso podia ser uma astuta ênfase do editor; ambos esperavam vender suas edições da poesia menos famosa de Shakespeare, e talvez eles temiam uma queda na leitura se esses sonetos não fossem vistos como escritos para uma amante. Lintott também declarou que os dois poemas narrativos de Shakespeare, Vênus e Adônis e O Estupro de Lucrécia, eram “universalmente reconhecidos” como sendo escritos por Shakespeare: “Eu imprimi de Edições muito antigas, as quais procurei, como o Leitor verá, me manter próximo à Ortografia dele.”

          George Sewell, pouco tempo depois, seguiu os passos editoriais de Gildon, quando em 1725 ele proveu um volume suplementar da poesia de Shakespeare para um editor (dessa vez Alexander Pope) que tinha novamente deixado passar os versos ao reunir sua edição das Obras de Shakespeare. Sewell referiu-se aos Sonetos de Shakespeare como poemas “Ocasionais”, escritos no começo da carreira do escritor e claramente inspirados por uma amante. Novamente vemos a inclinação para o caráter heterossexual e biográfico dos sonetos. Ao convidar essa influência, Sewell coloca Shakespeare em uma linha tradicional de poetas Ingleses, incluindo Abraham Cowley e supremamente, Edmund Spenser. Lewis Theobald, um editor bem sucedido do século dezoito de Shakespeare, falha em não mencionar os sonetos em seu prefácio de 1734 à sua edição, apesar de um pouco antes, em um jornal devotado para correções textuais, ele condignamente ter feito alterações em linhas problemáticas dos poemas. Por exemplo, a impressão de “gasto Negro” (waste Blacks) no soneto 77 parecia a ele um erro de “gastos Brancos,” (waster Blanks) que se encaixa melhor na metáfora em curso no livro (“vagas folhas” [vacant leaves] anteriormente no poema). Essa mudança é geralmente aceita pelos editores modernos.

          Em um espírito taciturno similar, dois grandes editores de Shakespeare da segunda metade do século, George Steevens e Samuel Johnson, têm pouco ou nada para dizer sobre os sonetos, ou, se pouco, nada bom para falar. Steevens reimprimiu o quarto de 1609 dos Sonetos em 1766 mas não incluiu nenhum comentário, como se estivesse totalmente embaraçado em revisitar esses poemas. Como veremos, ele realmente poderia estar. E assim como Johnson, talvez o maior crítico de Shakespeare de todos os tempos, leitores buscando entre os vários volumes modernos de “Johnson sobre Shakespeare” que ainda estão disponíveis sentiram-se estupefatos em não encontrar qualquer reconhecimento dos poemas entre os vários insights eternos às peças. Esse tipo de descuido sugere quão criticamente periférica era a poesia de Shakespeare nesse momento. Stephen Orgel legitimamente diz que o crescimento da reputação dos Sonetos é inversamente proporcional a reputação decrescente dos poemas narrativos, que foram as obras mais populares durante a vida de Shakespeare, mas são suas obras menos lidas hoje. No século dezoito, os poemas narrativos eram ainda enublados pelas grandes obras dramáticas tais como Hamlet, Rei Lear, Macbeth e similares, mas os Sonetos ainda não tinham sido tomados seriamente. D. Nichols Smith deixa isso claro na sua coleção de Ensaios do Século Dezoito sobre Shakespeare, na qual “Sonetos” não figura nem mesmo no índice do livro.

            Um grande herói esquecido dos Sonetos, Edmund Malone começou a mudar tudo isso em 1780 quando publicou um Suplemento à Edição das Peças de Shakespeare publicada em 1778 por Dr. Samuel Johnson e George Steevens. Malone foi um defensor da forma legítima dos sonetos e assim rejeitava a edição miscelânea de Benson em favor da melhor edição textual predecessora disponível, que era o quarto de 1609. Adicionando sua considerável sensibilidade linguística e senso comum para essa judiciosa escolha da fonte, ele estabeleceu a primeira edição crítica dos Sonetos, a qual continua a influenciar editores modernos. Ele também defendeu as verdades sociais dos poemas de Shakespeare, mesmo que elas parecessem repulsivas a seus oponentes críticos como Steevens. Esse senso de oposição aumentou ao se apresentar opiniões, na forma de diálogo entre os dois editores, em um Suplemento e edições posteriores. Uma das maiores realizações críticas de Malone foi fazer uma distinção que ainda é aceita pela maioria dos estudiosos (Heather Dubrow é uma notável e convincente exceção) – que os primeiros 126 sonetos são endereçados a um Jovem Homem, enquanto que os sonetos 127 a 154 giram em torno da Dama Negra. Steevens não discordava dessa análise mas ficou desconfortável ao reconhecer que Shakespeare escreveu “uma pequena proporção entre tantos” a uma mulher. Malone também estendeu o interesse biográfico dos seus predecessores editoriais imediatos e, mais importante, ele retratou o influente contexto generalizante e impessoal de Benson para com os Sonetos e concentrou-o no “Eu” da poesia, que para Malone era um e o mesmo com Shakespeare o poeta e a pessoa histórica. Assim Malone ponderou sobre os possíveis candidatos para o Jovem Homem para essa primeira, longa série de poemas. Ele rejeitou a sugestão de seu colega estudioso Richard Farmer que o “Mr. W.H.” do prefácio de Thomas Thorpe era o sobrinho de Shakespeare, William Harte (Esse candidato teria apenas 12 anos em 1598, quando alguns sonetos foram pela primeira vez ouvidos.) Muito mais convincente, ou pelo menos “não improvável”, a sugestão de seu amigo Thomas Tyrwhitt de W. Hughes, o qual ele acreditava ser celebrado com trocadilhos no soneto 20: “Uma cor masculina, a guardar todos os seus tons” (A man in hew all Hews in his controlling). O jogo de palavras similar de Shakespeare com seu próprio nome, “Will”, nos sonetos 135 e 136 provê uma útil colaboração para ambos estudiosos.

            Steevens expressou sua desaprovação aos Sonetos em termos formais e morais. Infelizmente para Shakespeare e sua sequência, muitos leitores no final do século dezoito encontravam no soneto geralmente uma forma poética totalmente desacreditada. Steevens pensava o soneto como principalmente uma “ninharia” cheia de “esquisitice, obscuridade e tautologia.” Essa “espécie de composição” prejudicial reduziu mesmo “os mais exaltados poetas ao mesmo nível dos rimadores mais inferiores.” Ademais, ele e seu contemporâneo John Monck Mason (que também via os Sonetos similarmente como “miseráveis” e “insípidos”) revelaram um parcialidade anti-italiana em suas condenações dos sonetos; o soneto, eles insistiam, deveria ter permanecido na Itália, e mesmo o editor antigo de Shakespeare, Gildon, arrependia-se que o espírito de Petrarca tivesse “infectado” a nativa argúcia e paixão de Shakespeare. A essa acusação, Malone foi brando na defesa, admitindo que os Sonetos sofreram de uma falta de variedade e, em muitas palavras, a falta de mulher endereçada em muitos poemas. Ainda assim são valiosos para estudo, mesmo que por nenhuma outra razão para além de “ilustrar passagens obscuras nas peças.” Felizmente Malone fez menos defesas dependentes também, elogiando a energia dos sonetos e as “muitas linhas belas” dispersas ao longo da sequência. As “expressões reluzentes” do soneto 29 (“Quando em desgraça com o fado e os olhos humanos”) sozinho foi suficiente para proteger os sonetos do esquecimento ou mesmo da “censura indiscriminada” de Steevens, e ele adicionalmente sugeriu, em sua maneira tipicamente composta, que os gostos dos críticos mais duros fossem talvez excessivamente estreitos, muito apegados “ao verso branco ou dísticos heroicos.” Malone desenvolveu mais seu suporte aos Sonetos em 1790 dentro da sua própria edição de Shakespeare, mas isso também estimulou uma ainda mais cáustica avaliação por Steevens (inclusa aqui) em 1793.

            Steevens reconheceu a divisão conscienciosa de Malone entre os destinatários, o Jovem Homem e a Dama Negra, mas ele não podia tolerar as implicações homossociais e homossexuais. O soneto 20, apresentando um “mestre-amante das minhas paixões” (master-mistress of my passions) deixava-o com um “igual mistura de desgosto e indignação,” a qual Malone ofereceu suas melhores justificações: Essa linguagem entre dois homens era costume no tempo de Shakespeare e não era “considerada indecorosa,” e talvez aquela frase angustiante do soneto 20 queria dizer meramente uma amante soberana. Malone às vezes reclama da natureza sobrecarregada dos sonetos mais densos, mas aqui, no seu esforço de apaziguar Steevens, ele consegue remover qualquer culpa de uma das frases mais provocativas da sequência. A ofensa podia parecer muito grande para Steevens e outros, porque a nova ênfase de Malone em associações biográficas entre o autor e seus poemas ameaçava desmantelar o pedestal sobre o qual Shakespeare era cada vez mais colocado. Naquele momento já considerado o grande poeta “nacional” da Inglaterra, e para muitos um árbitro moral também. Um ensaio anônimo de 1748 argumenta que quando ele escrevia “máximas de prudência, ou preceitos morais,” Shakespeare “parecia permanecer sem iguais.” Muito parecido com nossos próprios relacionamentos com celebridades, atletas ou candidatos políticos, os leitores de Shakespeare no século dezoito estavam curiosos em saber mais sobre seu herói literário mas, às vezes, ficavam apreensivos ou alarmados pelo que eles aparentemente encontravam.

            Cabe terminar com uma nota de elogio à honra de Malone. Verdadeiramente seu trabalho sobre os Sonetos, e sua importância duradoura para as próximas gerações de estudiosos e leitores comuns, não pode ser exagerada. Por um tempo Malone foi suspeito de ter emprestado, e falhado em atribuir, vários insights sobre Shakespeare e seus poemas de uma edição não publicada dos Sonetos por um contemporâneo, o estudioso de Shakespeare Edward Capell. Entretanto, entre outros, Samuel Butler, no final do século dezenove consultou com os editores da edição de Cambridge de Shakespeare, e o julgamento deles exonerou Malone e renovou a apreciação de sua realização. E vamos deixar claro que suas realizações foram reconhecidas quase imediatamente, e pelos seus adversários críticos. Por exemplo, Steevens elogia seu colega estudioso, não importando sua questionável admiração pelos Sonetos, pela sua “atenção, diligência e espírito de investigação,” que por “muito longe excedeu aquelas falanges unidas de predecessores.”

Os Sonetos no Século Dezenove

            As duas visões opostas de Nathan Drake sobre os Sonetos, refletindo uma significante alteração de sua opinião de 1800 a 1817, exemplifica bem o entusiasmo crítico geral em relação aos poemas de Shakespeare na era Romântica. Em seu primeiro ensaio, a profunda rejeição de Drake aos Sonetos continuava comum entre seus iguais, e ele especificamente elogiou George Steevens por excluir os Sonetos da sua coleção mais digna das peças de Shakespeare. Em 1817, entretanto, ele encontrava muito o que admirar nos esforços líricos de Shakespeare. Podemos localizar a semente da sua aprovação tão cedo quanto 1798, quando Drake dedicou uma seção de seu Horas Literárias para a forma do soneto, traçando seus usos em poetas como Dante, Spenser e Milton. George Steevens, pelo contrário, pensava que a forma ela mesma não merecia tamanha atenção. No mesmo ano, William Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge revolucionaram o verso Inglês com a publicação das Baladas Líricas; seu prefácio influente em pouco tempo levou o gosto poético Inglês para longe do neoclássico polido e das contaminações mitológicas do século dezoito. Em vez disso, Wordsworth elogiava a poesia por ser um “transbordamento espontâneo de sentimentos poderosos” originando em “emoção recolhida na tranquilidade,” e essa forte divergência estética garantiu uma renovada apreciação dos sonetos de Shakespeare orientados pessoalmente, emocionalmente intensos.

            A nova atração Romântica por vívida personalidade – de um homem falando com um homem, no vocabulário de Wordsworth – incluía tanto as vozes poéticas falando dentro do poema, quanto a biográfica, o sujeito histórico do poeta real. Com efeito, essas duas vozes eram mais admiradas quando pareciam apenas uma. Wordsworth elogia Shakespeare em 1815 em seu “Ensaio Suplementar” por capturar nos sonetos os sentimentos da “sua própria pessoa.” Para Wordsworth, esses poemas, inigualados por nenhuma outra obra de Shakespeare, contém “um maior número de sentimentos esquisitos expressados alegremente.” Wordsworth atribuiu a censura dos editores anteriores “a muito comum propensão da natureza humana em jubilar-se com a suposta queda em um atoleiro de um gênio.” Doze anos depois, no seu poema bem conhecido “Não despreze o Soneto,” ele mais ousadamente validou as complexidades formais da forma do soneto. Em uma nota marginal muito anterior, ele criticou os poemas de Shakespeare por serem “tediosos” e de “obscuridade elaborada,” uma censura característica do jovem Wordsworth, ou o Wordsworth do século dezoito, como Jonathan Bate o chama. Agora, no soneto posterior, Wordsworth declara que “com essa chave / Shakespeare destrancou seu coração.”

          Escrevendo quase meio século depois, como um poeta Vitoriano e não como Romântico, Robert Browning compôs uma refutação a Wordsworth que se provou memorável. “Devo eu cantar você em sonetos sobre mim? / Vivo em uma casa que você gostaria de ver?” seu poema “House” debochadamente inicia-se. “Destranco meu coração com a chave de um soneto?” Como seu tom torna claro, Browning não tinha intenção de o fazer, e, além disso – “O fez Shakespeare? Se sim, o menor Shakespeare ele!” Por que Browning estava tão determinado em sua discordância em relação as efusões de Wordsworth? Por que o deixava tão desconfortável a possibilidade que Shakespeare a pessoa pudesse ter sido tão transparente nos sonetos? Para Browning – que foi o grande poeta dos monólogos dramáticos, o grande ventriloquista do verso – Shakespeare seria menos pessoa, e poeta, se ele meramente derramasse seu coração nas 14 linhas de um soneto. Browning, em vez disso, valorizava a habilidade de Shakespeare criar, como se do nada, a personalidade real em termos dramáticos (O famoso elogio de Keats à habilidade de Shakespeare de “capacidade negativa” em criar personagens genuínos para o palco também vêm à mente.) Em outras palavras, Shakespeare era mais ele mesmo, ou melhor expressava a sua personalidade poética, quando Browning poderia imaginá-lo compondo por trás do véu do artista impessoal. Wordsworth, pelo contrário, dedicou seu grande poema autobiográfico O Prelúdio a mapear o “crescimento da mente do poeta.” A época de Browning não era a de Wordsworth, e foi a época de Wordsworth que enamorou-se com a “miscelânea” de poemas de Shakespeare e a pessoa que o escreveu.

            Deve ficar claro que, por consequência, Edmund Malone, com sua abordagem intensivamente biográfica a Shakespeare, não foi o único a conduzir a esse novo interesse nos Sonetos. Em uma direção diferente, mais acadêmica e atual, August Wilhelm Schlegel e Frederick Schlegel influenciaram os leitores românticos. Para August Wilhelm Schlegel, os Sonetos, “pintaram de forma inequívoca a situação atual e os sentimentos do poeta.” De maneira mais intrigante, eles são “confissões notáveis de seus erros de juventude,” e August Wilhelm castigou os estudiosos Ingleses por não fazerem uso do óbvio recurso biográfico. Frederick Schlegel mais geralmente elogiou a “extrema suavidade” do poeta, “tão esquisito e tão profundo,” registrado claramente nos sonetos e assim provando quão diferente era a sensibilidade de Shakespeare das criações para o palco, desenhadas do “mundo conforme estava claramente diante dele.”

            O momento era poeticamente maduro também. Poetas como Wordsworth e Keats puderam não apenas apreciar a voz pessoal de um gênio nos Sonetos, mas também eram ambiciosos e passionais o suficiente para identificarem-se de formas pessoais com o grande precursor. Assim Wordsworth imagina Shakespeare suspirando sobre o ato de conceber grandes pensamentos na solidão, que parece uma coisa muito mais provável para um poeta Romântico como Wordsworth. Similarmente, Keats escreve em uma carta quanto o excitaria olhar Shakespeare – para ver como ele se sentava! – ao compor o discurso do “Ser ou não ser” de Hamlet. Dito isso, a realização editorial prosaica de Malone certamente teve seu papel na reputação recém elevada dos Sonetos. Como Gary Taylor escreve em Reinventando Shakespeare,

          O reestabelecimento editorial dos sonetos por Malone foi instrumental em transformar Shakespeare do poeta público dramático da Restauração e século dezoito, em um poeta lírico privado que poderia ser aceito, celebrado e apropriado pelo Românticos….Shakespeare permaneceu, é claro, primeiramente um dramaturgo; mas os sonetos e os poemas narrativos – recém reestabelecidos ao cânon, até agora totalmente negligenciados pelo críticos – deu aos Românticos a oportunidade de desfrutar da novidade da sua própria perspectiva crítica, enquanto reivindicavam Shakespeare como precursor dos seus próprios gêneros favoritos.

          E clamar Shakespeare como um precursor, eles o fizeram. Wordsworth e Keats ambos engendraram homenagens fundamentais aos poetas; eles ecoaram e reutilizaram as linhas dos Sonetos de Shakespeare para dar à sua própria poesia mais autoridade e profundidade. Os sonetos de Shakespeare influenciaram o soneto “Dormir” de Wordsworth enquanto o seu “Prospecto” a O Recluso e partes de O Prelúdio emprestam frases dos sonetos 107, 116, e outros. Keats quota o soneto 12 com aprovação em uma carta de 1817, e a imagética desse poema aparece na grande ode de Keats “Ao Outono.” Também influencia o soneto de Keats “Quando tenho medo,” assim como o faz o soneto 64 de uma maneira mais estrutural. Como Jonathan Bate escreveu: “Com “Quando tenho medo que eu possa cessar de ser,” o soneto shakespeariano foi ativamente revivido, formalmente e tonalmente, por um grande poeta Inglês pela primeira vez em duzentos anos.”

          Essa intensa resposta em relação a Shakespeare e sua poesia pode ser também imprevisível e contraditória. Alguns breves comentários por dois outros Românticos, Samuel Taylor Coleridge e William Hazlitt, mostraram que a época não mudou completamente para além das fontes de elogios de seus predecessores e certas ocasiões de consternação. Comparativamente, Coleridge certamente desprezou a poesia em favor da grandeza das peças, e mesmo entre a poesia, ele mais frequentemente elogia a vividez e a compressão de Vênus e Adônis. Um registro de um discurso descreve como Coleridge falava brevemente sobre ambos os poemas narrativos, “mas ele passou completamente sobre os Sonetos e não fez nenhuma nota sobre a recepção que os poemas tiveram entre os críticos modernos.” Referências a certos sonetos recorrem nos livros de anotações de Coleridge, e ele ao certo admirava alguns poemas tremendamente e pensava muito pouco sobre outros. Em uma palestra ele desdenha um poema de John Donne ao notar, “Shakespeare não tem nada disso. Ele nunca é positivamente mau, mesmo em seus Sonetos.” Ainda em seu Biographia Literaria, sua maior obra crítica, ele isola linhas de três sonetos para demonstrar como na grande poesia, as imagens são “modificadas por uma paixão predominante.” Shakespeare, ele continua, “ainda dá uma dignidade e uma paixão aos objetos que ele apresenta…eles emergem sobre nós ao mesmo tempo em vida e poder.” A mais longa e memorável resposta de Coleridge ocorre quando ele encontra uma nota marginal de Wordsworth em uma antologia de poesia. Mencionados anteriormente, os comentários de Wordsworth referem-se aos sonetos finais de Shakespeare, endereçados à Dama Negra, como “abominavelmente duros, obscuros e imprestáveis.” Ele é mais generoso com os primeiros poemas, que considera “quentes de paixão.” Coleridge honra seu amigo ao dizer que mesmo essa pequena nota será, nos tempos futuros, uma “relíquia reverencial,” mas ele difere da opinião de Wordsworth, elogiando os Sonetos,pelo contrário, por ajudar a “explicar a mente de Shakespeare” e por serem “tão cheios de pensamento e a mais esquisita dicção.” (Como vimos, esse adjetivo rapidamente vem à mente de muitos, ao descreverem esses poemas e o poeta que eles pressupõem.) Coleridge, entretanto, tem grande embaraço ao justificar as dinâmicas sexual dos Sonetos. Sua pretendida audiência futura, seu filho Hartley, pode lançar alguma luz no tom peculiar aqui, onde ele enfatiza o “amor puro” que Shakespeare deve ter sentido, o que quer dizer que ele reconhecia que o Jovem Homem não era um “possível objeto de desejo” em um sentido físico.

          Essa tensão percebida leva Coleridge ao soneto 20, que fala da “master-mistress.” Para ele, a sua retidão deixa claro que Shakespeare nunca pensou seriamente em consumação física, nem temeu a recriminação de outros por tratar poeticamente o tema. “Meu doce Hartley!” Coleridge exclama, mostrando uma preocupação perante o bem-estar futuro de seu filho que não é diferente da preocupação do poeta pelo Tempo ameaçar o Jovem Homem nos Sonetos. É esse contexto fraternal, talvez, que faz Coleridge tão cauteloso na sua visão ideal de Shakespeare, o Grande Homem: “Eu peço ferventemente que tu possas conhecer no âmago, quão impossível foi para Shakespeare não ter sido em seu coração puro de coração.” Em seu influente ensaio sobre “edição como formação cultural,” Peter Stallybrass segue a análise de Coleridge sobre o soneto 20. Em 1833, Coleridge discutiu novamente (um registro que pode ser encontrado em seu Falas à Mesa) as defesas anteriores de Malone a um receptor masculino – os elisabetanos comumente falavam com amigos daquela forma, e os homens valorizavam relacionamentos platônico com outros homens, cheios de “afecções para além da amizade e totalmente distantes do apetite.” Entretanto, isso não é mais suficiente para justificar a bravata bissexual do soneto 20; em vez disso, Coleridge suporta a formulação curiosa que Shakespeare pretende parecer um pederasta, ou amante de garotos, com um “propósito cego” de esconder seu verdadeiro amor a uma certa mulher. (Um estudioso alemão estendeu o pensamento evasivo de Coleridge pensando no próprio quarto de 1609, sugerindo que Shakespeare intencionalmente desejava aparecer como se não tivesse envolvimento com a publicação do livro, com vistas a distanciar a si próprio dos seus conteúdos.) Nesses tempos tardios, é aparente para Coleridge que o sentimento genuíno da poesia de Shakespeare veio de “um homem profundamente apaixonado, e apaixonado por uma mulher.”

          Com ainda mais desdém, William Hazlitt também lutou com o espectro da personalidade entre as belezas dos Sonetos. Hazlitt pôde, às vezes, reconhecer à virtude dos poemas, dizendo que “muitos deles são altamente belos por si sós, e interessantes pois eles relacionam-se com o estado de sentimentos pessoais do autor.” Ele sentia mais reservas sobre efusões pessoais em verso, e então ele frequentemente soa desconfortável ao discutir a dimensão biográfica dos poemas. Coleridge em certos momentos chega a conclusões similares – “A poesia de Shakespeare é sem personagens,” ele diz – mas vimos quantas questões de biografia e personalidade o cativavam. Hazlitt, por outro lado, era menos simpático. Ele valorizava a impessoalidade mas também criticava o estilo de Shakespeare. Revertendo os esforços críticos anteriores de colocar os poemas de lado em relação às peças com vistas de justificar os primeiros, Hazlitt declarou francamente que a comparação somente prejudica o status da poesia. “Em uma palavra, não gostamos dos poemas de Shakespeare, porque gostamos das peças.” Comparado com os personagens de sangue quente dos palcos que Hazlitt tanto admirava, os poemas narrativos de Shakespeare eram “um par de casas de gelo…quase tão duras, brilhantes e tão frias.”

          Uma rápida pesquisa nas posteriores reações Românticas continuou a mostrar essas divergências de opiniões. Percy Bysshe Shelly elogiou a qualidade “patética” no soneto 111 de Shakespeare (ele empregou o termo positivamente), enquanto Walter Savage Landor levantou uma objeção que qualquer estudante que lutou para entender qualquer passagem densa, atada e multivalente dos Sonetos irá apreciar: “Eles são quentes e comoventes: há muita condensação, pouca delicadeza: como geleia de framboesa sem creme, sem crosta, sem pão, para quebrar sua viscosidade.” Dito isso, ele preferiria reler um dos poemas de Shakespeare do que a poesia “embolorada” da sua própria “estação tediosa”!

          Pesquisei esses poetas do começo do século dezenove e os críticos desse momento porque foi um momento crucial de reavaliação da reputação dos Sonetos. Muitas nuances que os leitores contemporâneos encontram nesses poemas foram primeiro identificadas durante o período Romântico ou ao menos apreendido ali. A erudição em torno dos Sonetos estava também avançando, apesar de, em retrospecto, nem sempre de forma desejável ou mesmo útil. Duas áreas de foco acadêmico que cresceram exponencialmente durante esse período foram a ordenação dos sonetos (especificamente se o quarto de 1609 ofereceu um arranjo válido, aprovado pelo autor) e as identificações da vida real de vários “personagens” dos poemas, de “Mr. W.H.” da dedicatória de Thorpe ao Poeta Rival e a Dama Negra. Nathan Drake, que já encontramos anteriormente, merece crédito por refutar a explicação da virada do século de George Chalmers – que os poemas aparentemente endereçados ao jovem homem foram todos, de fato, compostos para a Rainha Elizabeth I! – e por sugerir como substituto um candidato que ainda permanece um dos mais respeitáveis e permanente entre as escolhas. Ele sentia que o mais lógico Jovem Homem era Henry Wriothesley, conde de Southampton, a quem Shakespeare dedicou seus dois poemas narrativos e aquele que poderia ser resistente a um casamento na década de 1590 (daí o encargo dos sonetos de “Procriação” 1-17) e as quais as iniciais inversas, pelo menos, eram “W.H.” James Boaden em 1832 pela primeira vez ofereceu a outra mais confiável fonte para o jovem homem, William Herbert, conde de Pembroke. (Note suas iniciais)

          As escolhas dos estudiosos entre esses dois candidatos também presume outras interpretações, nomeadamente, das datas de composições dos sonetos e, relativamente, conjecturas sobre outros membros do “elenco” lírico da sequência. Por exemplo, os partidários de Southampton favorecem uma antiga composição, talvez do final da década de 1580, onde os partidários do mais jovem Pembroke acreditam que Shakespeare escreveu a maioria dos sonetos no meio ou final da década de 1590 e também no século dezessete. Ambos os grupos podem apontar o soneto 107 e apoiarem-se na linha – “A lua mortal manteve seu eclipse” – para dar suporte às suas datas propostas; a linha alude tanto para a destruição da Armada Espanhola em 1588 ou para a doença da Rainha Elizabeth ou sua morte em 1603, dependendo da sua predisposição. No final de 1800, convencido que o Jovem Homem era Pembroke, W. A. Harrison e Thomas Tyler ambos argumentaram que Mary Fitton, dama de honra da rainha, era a Dama Negra, apesar de que um retrato posterior – de uma Fitton de pele clara – tenha minado a teoria deles. Charles Armitage Brown, um amigo de John Keats, publicou o primeiro longo estudo sobre a dimensão autobiográfica dos Sonetos de Shakespeare em 1838, e a ensaísta Anna Brownell Jameson alcançou a obra de detetive de Brown por volta da mesma época.

            Contrariamente, D. L. Richardson, Charles Knight e John Halliwell-Phillipps foram todos shakespearianos do século dezenove que de formas diferentes prenunciaram a ênfase crítica do próximo século. Richardson já em 1835 tinha náusea perante a pressa em se identificar as figuras dos sonetos, e ele pensava que não era improvável que os poemas apontassem para vários indivíduos diferentes, alguns homens e outros mulheres, alguns reais outros totalmente imaginados. Suas reservas de julgamento mostraram uma real apreciação das complexidades fictícias do gênero lírico. Knight sentia que um rápido e estrito julgamento sobre as identificações subestimava a qualidade dramática dos Sonetos e a similaridade da poesia com as peças. Halliwell-Phillipps, pelo contrário, rejeitava identificações muito fáceis do Jovem Homem, não por compartilhar com as apreensões morais dos críticos anteriores, mas simplesmente porque ele pensava que Shakespeare publicar um relacionamento homoerótico e homossexual real tão dramaticamente não era sensível e, por isso, improvável.

            Retirando essas divergências de opiniões, bem no começo do século já estava claro para praticamente todos que os Sonetos de Shakespeare tiveram uma elevação crítica considerável, merecida ou não. Assim James Boswell, um editor das obras de Shakespeare em 1821 que apoiava-se grandemente nas descobertas de Malone, pôde declarar que a condenação de George Steevens dos Sonetos como “inúteis” 40 anos atrás “não converteu nenhum leitor que tem qualquer pretensão de gosto poético.” Os poemas podem não atingir as alturas das grandes tragédias de Shakespeare, ele admite, mas certamente eles se encontram ao lado das primeiras comédias. O historiador Henry Hallam faz um reconhecimento similar, embora ressentido. Apesar de Steevens ter mostrado seu “desdém extremo,” as belezas dos Sonetos são exageradas, “especialmente entre jovens homens com temperamentos poéticos.” Na verdade, Shakespeare empenhou-se mais completamente que qualquer um com “essa espécie de poesia,” que alguém rapidamente infere que é desagradável para Hallam. Ao dizer “é impossível não desejar que Shakespeare nunca os tivesse escrito,” ele serve como um condutor da condenação anterior de Steevens. Felizmente para Shakespeare, os críticos tardios têm sido mais condescendentes e simpáticos. Edward Downden encontra na sequência um jovem homem que luta contra a amargura; os poemas “dizem mais da sensibilidade de Shakespeare do que da força de Shakespeare.” Swinburne, cético sobre “a absurda pirâmide de comentários hipotéticos” que eivaram os Sonetos, aponta para o Peregrino Apaixonado em busca de pistas. Sidney Lanier simpatiza com Shakespeare e seu “drama conectado de seu amor infeliz” ao elevar a traição do Jovem Homem ao “crime mais imperdoável dos crimes.” Ele também faz comparações interessantes entre Shakespeare e a poesia de Philip Sidney e entre as realizações gerais de Shakespeare, Beethoven e Keats.

            Finalmente, Oscar Wilde e Samuel Butler fecham o século com aproximações e reimaginações criativas do mundo dos Sonetos que continuarão a ressoar no século seguinte. Butler insiste que os 29 sonetos finais estão colocados de maneira errônea e que a maioria também é endereçada ao Jovem Homem. Ele assim procura em sua edição “rearranjar”, restaurá-los, através de uma impressionante confiança na inferência, aos seus lugares legítimos dentro da sequência. Ele aplaude Malone, mas está muito mais livre em seus próprios procedimentos editoriais, buscando sobretudo uma história nos sonetos que, segundo ele, encara todo leitor nos olhos. Estudiosos posteriores como A. L. Rowse seguiram as pegadas solucionadoras de problemas do método de Butler. Oscar Wilde finalmente traz uma criatividade similar aos Sonetos, mas a convoca para compor o seu Retrato de Mr. W. H. com um gosto narrativo típico. Alegando resolver os mistérios da dedicatória dos Sonetos, Wilde de fato retorna a uma conjetura anterior de Tyrwhitt e Malone. Ele conta a história de William Hughes, um jovem ator do teatro de Shakespeare. Wilde sobrepuja seus predecessores ao meditar sobre os efeitos da arte e da atuação em um relacionamento entre homens. Através das lentes do “da crítica criativa” de Wilde, os talentos de atuação do jovem homem inspiram os ideais poéticos e de criação de ficção do falante. Apesar de as manobras delicadas de Eros serem minadas por uma camada externa de ceticismo: o narrador de Wilde está investigando uma teoria de um amigo, que não mais acredita na sua própria hipótese. O rascunho crítico foi ampliado em 1921 e tem sido frequentemente reimpresso, servindo como uma vanguarda para a ascensão da crítica do final do século vinte, recém conectado com questões de desejo e sexualidade, secretas ou explícitas.

Os Sonetos no Século Vinte

            Perto do começo do século vinte, no curto espaço de dois anos, dois sérios leitores dos Sonetos de Shakespeare usaram imagens impressionantemente nefastas – cavernas escuras, labirintos, esqueletos – para expressar sua frustração com o estado dos estudos sobre os sonetos e (para eles) as direções biográficas questionáveis das duas décadas precedentes. Ao revisar uma edição de 1904 dos Sonetos, o biógrafo e homem de letras Lytton Strachey fala sobre um homem corajoso que “que iniciará a jornada em busca da chave” que irá destrancar os mistérios dos sonetos de Shakespeare de uma vez por todas. O caminho é árduo, ele avisa, e sílabas de nomes de homens “seduz o viajante desavisado em cada esquina à caminhos já brancos com os ossos de inumeráveis comentadores.” A fascinação atrai, mas um “esquecimento mais profundo” espera o estudioso que busca explorar os sonetos dessa forma. O erudito Walter Raleigh avaliou seus esforços disciplinados ao entender os Sonetos com um irônico rechaço, e com uma similar imagética letal:

            Há várias pegadas em torno da caverna desse mistério, nenhum deles apontando para a saída. Ninguém tentou uma solução para o problema sem deixar um livro atrás de si; e o santuário de Shakespeare está espessamente fixado com essas oferendas dedicadas, todas murchas e empoeiradas.

            Livros sobre os Sonetos de Shakespeare proliferaram em uma taxa ainda maior ao longo do século vinte, mas conforme essas citações mostram, houve esforços regulares em elevar o academicismo para além do trabalho de detecção literária, para reinos mais interessantes, estruturalmente, psicologicamente e historicamente. Uma série de diferentes métodos críticos e interesses tópicos tornaram-se brevemente em voga e então recuaram para o pano de fundo literário, mas em quase todos os casos os sonetos como literatura, e como texto escrito, nunca foram tão obscurecidos como foram no século anterior (dezenove), que preferia identificar os personagens dos poemas e contemplar o gênio nativo de Shakespeare o poeta. Como Hallett Smith memoravelmente nota em homenagem a George Wyndham e sua edição de 1898 dos sonetos, pela primeira vez alguém estava lendo os sonetos como poesia ou, “Melodia Verbal,” para usar a própria frase de Wyndham.

            Sidney Lee mostrou uma possível direção para fora do pântano que a crítica biográfica se tornou. Ele escolheu ler os Sonetos em um tipo de conversação com outras poesias líricas – clássica, a poesia Continental e da Idade Média e Renascença, e com a escrita em Inglês contemporânea a Shakespeare. Ele finalmente descobriu que a “história” contada nos poemas era menos original, pois muitos dos incidentes e expressões da sequência podem ser encontradas em fontes influentes ou na obra dos colegas de Shakespeare, Ingleses, Italianos ou Franceses. Essas analogias fizeram Lee insistir que Shakespeare foi dificilmente pessoal e longe de revelador nos Sonetos mas foi de fato convencional, variando e reformulando um grande número de tópicos familiares da poesia lírica Europeia. Por exemplo, as Metamorfoses de Ovídio, influenciaram o pensamento filosófico dos Sonetos. Lee argumenta, e no ensaio incluído aqui, ele trata as muitas correspondências entre Shakespeare e Ovídio, o poeta Romano a quem nosso homem Inglês pode ter lido na escola de gramática de Stratford. Lee não se silenciou, entretanto, sobre as questões biográficas em torno dos Sonetos, apesar da sua constante mudança de pontos de vista lembrar a reviravolta de Nathan Drake com respeito à poesia de Shakespeare exatamente um século atrás. Em 1889, a obra de Lee no Dicionário da Biografia Nacional deixou claro que ele pensava que o conde de Pembroke era o Jovem Homem dos sonetos. Oito anos depois, e sem explicação, ele completou uma entrada no dicionário sobre Shakespeare que argumentou que o conde de Southampton era a pessoa a qual Shakespeare endereçava-se. No mesmo ano, para as edições Americanas do DNB, Lee alterou sua visão mais uma vez, nesse momento rejeitando que qualquer identificação importasse, pois os Sonetos não eram definitivamente autobiográficos.

            Entretanto seria um erro pensar que o foco de Lee nas convenções poéticas e o lugar de Shakespeare dentro da tradição lírica não exerceram relevância na recepção biográfica do poeta. Lee enfatizou que os gestos de desejo de Shakespeare pareciam, como resultados, serem mais um produto de estudo do que assuntos do coração, e de fato sua aproximação tornou-se o último recurso pelo qual os leitores Ingleses nauseados puderam digerir o conteúdo explicitamente homoerótico dos Sonetos. Quase um século depois, o editor James Boswell exonerou o poeta que ele admirava ao falar da imaginação extravagante visível em qualquer ponto dos poemas. Como Lee posteriormente, Boswell também ofereceu paralelos clássicos convenientes, particularmente alguns (como na Écloga 2 de Virgílio) que fazem a estranha relação homem-homem parecer mais como um exercício literário e menos uma confissão erótica. A estratégia de muitos críticos na segunda metade do século dezenove foi a de reconhecer o relacionamento entre o falante e o Jovem Homem, mas então idealizá-la com termos etéreos, Platônicos, que somente um “semideus” ou “super-humano” ou uma “presença espiritual impressionante” como a de Shakespeare poderia sustentar. O crítico Francês Hippolyte Taine julgava o criador dos Sonetos “umas dessas almas delicadas que, como um instrumento perfeito na música, vibra a si mesmo com o mais leve toque.” Menos delicado, um crítico Alemão pensava que era sua “responsabilidade moral” proteger a reputação de Shakespeare e convencer os leitores que os Sonetos refletiam essa forma de Platonismo Renascentista, essa celebração da verdade e do belo. Da mesma maneira, Lee fez justificações que apontava aos leitores para as convenções poéticas e o discurso social estranho para contemporâneos, mas perfeitamente apropriado em outras épocas. Consequentemente, “nosso” Shakespeare pôde permanecer um rapaz. Leituras mais esotéricas e alegóricas seriam propagadas, nas quais o Jovem Homem era o Messias e a Dama Negra sua igreja, ou no qual o “master-mistress” era o vinho e os Sonetosum registro da luta de Shakespeare contra o alcoolismo. E no final do século, críticos como Leslie Hotson e A. L. Rowse continuariam a realizar mais diretamente o trabalho de detetives biográficos.

            Alguns comentários do início do século vinte serviram como precursores, para aqueles de nós com o benefício do olhar em retrospecto, da reviravolta para a crítica formal que começou a florescer na atmosfera da Nova Crítica dos anos 1930. Raymond M. Alden anunciou na sua edição Variorum de 1916 dos Sonetos que novas evidências externas eram necessárias antes de críticos adicionarem qualquer coisa de útil na discussão biográfica, e a edição de T.G. Tucker, oito anos depois mostrou o interesse considerável nos elementos formais dos poemas. E, na próxima década, ainda outro editor, George Kittredge, aponta para a forma como uma explicação de todas as especulações biográficas anteriores – “um bom soneto aparece como uma confissão,” ele afirma, mas aquela impressão é meramente suportada por um forte apelo à forma ela própria. O influente dramaturgo George Bernard Shaw menosprezou os caçadores de biografias da sua própria forma inestimável. Ele escreveu uma peça, A Dama Negra dos Sonetos, que apresenta como a amante de Shakespeare Mary Fitton, que, como vimos, foi uma popular candidata do final do século dezenove para a mulher misteriosa. Em seu prefácio, entretanto, Shaw censura o principal proponente do nome dela, sugere outra candidata e geralmente deixa claro que a questão inteira da identidade dela interessa-o bem pouco.

            L. C. Knights e William Empson merecem crédito por inaugurarem uma nova forma de crítica dos Sonetos, uma aproximação mais atenta às qualidades formais dos poemas e os efeitos técnicos (como as formações de grupos retóricos e imagéticos) e mostrando um novo interesse nas tendências estilísticas de Shakespeare e em suas questões temáticas maiores. Em 1934 em um ensaio no jornal Escrutínio, Knight declarou que mesmo detalhes biográficos corretos nada fariam para ajudar os leitores em melhor apreciarem os sonetos e os poemas de Shakespeare, e ele direciona os leitores para a experiência criada pela poesia e a linguagem que a articula, pela qual a história pessoal de Shakespeare foi somente uma fonte possível. Novamente, esse foco na prosódia, ou no uso sutil da métrica poética, diferiu enormemente dos antigos interesses nas intrigas dos amantes elisabetanos. Os Sonetos tiveram um papel em dois livros influentes de William Empson, que permanece um dos grandes leitores “próximo ao texto” do século vinte. Na abertura de seu Sete Tipos de Ambiguidade (1930) considerando linhas do soneto 73 de Shakespeare, mas suas investigações mais amplas e mais famosas ocorrem em Algumas Versões do Pastoral, onde ele propõe “4096 possíveis movimentos de pensamento” entre a “grave ironia” do soneto 94, “Aqueles que têm poder para magoar, e não o farão.” Ao escrutinizar as várias conotações das palavras e frase do poema, assim como vários tons diferentes nas falas encontradas nas linhas, Empson como ninguém antes explicou a avaliação profundamente dividida do Jovem Homem e como isso elogia e acusa seu sujeito ao mesmo tempo. Para Empson, a imagética florida enfatizada na conclusão do soneto torna essa união de atitudes extremas possível.

            O poeta Americano e crítico John Crowe Ransom publicou um ensaio controverso três anos depois, e ele permanece uma das avaliações mais negativas do século sobre os Sonetos de Shakespeare. Motivado pelos princípios da Nova Crítica, Ransom criticou Shakespeare por sua escrita “negligente” e seu método de composição imprecisamente “associacionista”, pelo qual a imagética e as metáforas dos sonetos eram “belas” e cheias de sentimento porém com carência de pensamentos sérios e, por conseguinte, vagos. O ataque de Ransom à lógica previsível de Shakespeare e a monotonia da imagem trai as próprias preferências mais fortes dessa crítica – pelo contemporâneo de Shakespeare John Donne e a escola Metafísica de poesia que ele representava, ambos dos quais, nos dias de Ransom, em ascendência crítica. Na luz da crítica de Ransom, Arthur Mizener produziu, em 1940, a mais direta defesa do método de Shakespeare. Mizener afirmava que a demanda de Ransom que Shakespeare escrevesse como um Metafísico era patentemente injusta, pois o poeta dos Sonetos não fazia parte daquela escola, a qual os efeitos artísticos dependiam de valores estéticos diferentes e às vezes até opostos. Shakespeare, Mizener argumentou, valorizava várias camadas de figuração, e então a imprecisão criticada por Ransom, ou “foco difuso” nas palavras de Mizener, era necessária para manter esses significados múltiplos em jogo para os leitores e sobretudo para manter o sentido de satisfação através da complexidade dos poemas. Mizener provou seu ponto com um escrutínio do soneto 124, enquanto outro par de críticos, Roman Jakobsen e L. G. Jones, responderam explicitamente a Ransom e sua negação de o soneto 129 ser chamado de soneto em termos mais estritos.

            O soneto 129 inspirou vários exames críticos bons no século vinte. Esse poema, único em ferocidade e repulsão, trata o tópico do desejo com maestria retórica e intensidade que talvez nunca foi alcançada em qualquer tipo de poema lírico. Ele recebeu larga atenção crítica em um ensaio de 1926 pelos famosos poetas Robert Graves e Laura Riding, um ensaio que foi depois revisado pelos autores e frequentemente reimpresso. O ensaio demonstra quão séria a edição da pontuação e a tipografia no quarto de Thorpe de 1609 pode afetar os diversos sentidos de um poema tão complexo. Thomas M. Greene leu o mesmo soneto com reivindicações hermenêuticas e impasses na mente. A sofisticação de Greene, é um belo produto do modo crítico dos anos 1980 que atribui um novo valor ao colocar textos tradicionais dentro de novos sistemas teóricos.

            As batalhas polêmicas incitadas por Ransom abriram caminho para diferentes abordagens críticas na década de 1950 que puderam aceitar o valor literário dos Sonetos. Em A Chama Mútua, G. Wilson Knight transferiu sua ênfase crítica única geralmente reservada para as peças de Shakespeare para os poemas narrativos e sonetos do escritor. O foco de Knight era o “simbolismo poético”, ao isolar associações universais nos Sonetos, incluindo flores, o sol, joias, ouro e reinado. M. M. Mahood acentuou que os jogos de palavras em Shakespeare e seu papel em criar ironia dramática e regular o pensamento demanda a forma de soneto. Uma abordagem que teve recorrente influência sobre as posteriores gerações de estudiosos foi a de G. K. Hunter. Em “A Técnica Dramática dos Sonetos de Shakespeare” reimpressa aqui, Hunter buscou não desacreditar as várias tentativas anteriores de coletar as verdades biográfica dos poemas, mas entender melhor como os materiais da poesia podem produzir nos leitores “uma reação biográfica irresistível.” Hunter assim argumenta que os críticos frequentemente perdem-se no selvagem quando pretendem avaliar o poeta lírico Shakespeare, ou o contador de histórias, ou o metafísico, ou a progênie do Italiano Petrarca. De fato, os Sonetos são mais ricos poeticamente quando os leitores tratam-os como escritos, de maneira previsível, por um dramaturgo. Edward Hubler mostrou um interesse similar em uma conexão de importância que Hubler sugere fortemente – aquela entre as peças de Shakespeare e os poemas. Por exemplo, em uma útil argumentação pela evolução do personagem do falante ao longo da sequência de Shakespeare, Hubler compara seu desenvolvimento com o “progresso espiritual de Lear.” Ele continua: “Os sonetos de maior repulsão apresentam uma agonia….Uma percepção que precisa ser alterada pois ela não pode sustentar a si própria.” Aqui Hubler iguala a dor do auto-escrutínio, a qual os Sonetos tão frequentemente expressam e dramatizam, com a claridade violenta tornada possível através do sofrimento dos heróis trágicos de Shakespeare. Esse tipo de interconexões entre as realizações dramáticas e líricas continua nos nossos dias, de comparações com a linguagem dos Sonetos com as primeiras comédias até elementos percebidos que sugerem uma composição simultânea, como entre os poemas e Hamlet, Bem Está o que Bem Acaba ou Cimbelino. Permanece uma profunda fonte na qual os críticos vão continuar a beber no presente século.

            Hubler também produziu uma edição das Canções e Poemas de Shakespeare, e, em 1962, publicou uma influente coleção de novos ensaios intitulados O Enigma dos Sonetos (The Riddle of the Sonnets). Convenientemente reimprimindo “O Retrato de Mr. W.H.,” essa coleção também apresentou ensaios de críticos proeminentes e poetas como R. P. Blackmur, Stephen Spender e Northrop Frye, cuja prática da crítica arquetípica proveu um caminho de pensamento fresco sobre a longa divisão entre a crítica formal e a biográfica. Ler Os Sonetos como “transcritos da experiência” foi, de forma contra-intuitiva, não lê-los de forma totalmente realística, mas de forma alegórica, como “charadas” que eles não pretendiam ser originalmente. Quando alguém olha para a real pessoa na poesia incomparável de Shakespeare, quer dizer, ao poeta que excedeu alguns dos “maiores sonetos da língua com uma tolice tão indiferente como uma maçaneta e tão egoísta como uma doninha.” O que produz esses sonetos, Frye resume, “não é uma experiência como a nossa, mas uma imaginação criativa muito diferente da nossa.” Se Frye busca um caminho para tornar estranho os poemas de Shakespeare ao leitor que os tomam de forma ordinária e não-literária, outros desenvolvimentos nos anos 1960 e 70 de fato fizeram muito para ajudar os leitores, ambos, gerais e estudiosos. Gerald Willen e Victor B. Reed em Diário sobre os Sonetos de Shakespeare (1964) outra importante coleção de ensaios, tornando amplamente disponível o trabalho já mencionado de Graves e Riding, L. C. Knights, Ransom, Mizener, Hubler e G. Wilson Knight. A próxima década traria uma coleção cumulativa similar, com Shakespeare: The Sonnets de Peter Jones, um volume da série dos Diários Macmillan.

            Duas edições dos Sonetos que definiram geraçõestambém apareceram durante esse período, apesar de ser necessário fazer menção, primeiramente, a edição talvez mais importante na história da publicação dos elusivos poemas de Shakespeare. Em 1944, Hyder Edward Rollins publicou o sólido, em dois volumes Os Sonetos: Um Nova Edição Variorum, que substituía o volume Variorum de Alden de 1916 e tornou acessível pela primeira vez um tesouro de ensaios e comentários sobre poemas individuais por autores famosos e obscuros, eruditos e lunáticos. A edição de W. G. Ingram e Theodore Redpath dos Sonetos, publicado em 1964, logo se tornou a edição essencial para a atual geração de estudiosos. Ela beneficiou-se da abrangência de Rollins mas também alcançou um texto mais completo e manejável. (Edições mais fáceis aos usuários, de Martin Seymour-Smith e Barbara Herrnstein Smith também apareceram durante essa década.) A influência dessa edição duraria mais, e ela seria mais utilizada hoje em dia, se não aparecesse em pouco menos de uma década depois a grande edição de Stephen Booth dos Sonetos, apresentando 400 páginas de “comentários analíticos” compilados no espírito semanticamente exaustivo de William Empson. A resistência de Booth à típica paráfrase editorial dos temas, antecipa as mais recentes sutilezas na leitura de Helen Vendler, e ele, em vez disso, valorizou uma acumulação escrupulosa de significados possíveis e justapostos para quase todas as palavras de cada soneto. Ao mesmo tempo esclarecedor e um pouco cansativa, a edição de Booth permanece essencial para qualquer consulta às possibilidades de significado nos sonetos, mesmo que uma série de edições eruditas tenham aparecido desde sua primeira publicação há mais de 30 anos.  O ensaio do tamanho de um livro de Booth Um Ensaio sobre os Sonetos de Shakespeare (1969) está cheio de ótimas observações feitas por um leitor, que desde então, trabalha duro em sua edição para o magistério, mesmo que seja mais conhecido pelos leitores por “Fatos e Teorias Sobre os Sonetos de Shakespeare,” um dos mais sucintos ensaios que suportaram uma densa edição crítica. Não buscando esconder sua falta de interesse em outras curiosidades biográficas, Booth gracejou, “William Shakespeare foi quase certamente homossexual, bissexual ou heterossexual. Os sonetos não provêm evidência sobre o assunto.”

            A inegável ascensão e múltiplas aplicações da teoria literária, dos tratamentos pós-estruturalistas nos anos 1980 ao crescente interesse na década de 1990 em leituras mais historicamente e culturalmente orientadas, garantiu que vozes frescas, produzindo novas e provocativas leituras, levassem a uma nova fase a recepção crítica dos Sonetos. Primeiro, certos críticos revisitaram áreas antigas de estudo com um novo rigor crítico. Por exemplo, “Shakespeare e Sidney” de Anne Ferry segue os estudos anteriores de Joan Grundy e M. C. Bradbook sobre a influência de Philip Sidney e outros escritores de sonetos elisabetanos perante a escrita dos sonetos de Shakespeare. O que resulta é um longo estudo comparativo que está próximo à palavra final sobre as afinidades entre esses dois gigantes da poesia da Renascença Inglesa. O método de Ferry é tão rigoroso quanto seu gosto como leitora e escritora é primoroso. “O Olho Perjuro de Shakespeare” de Joel Fineman fez à sequência de Shakespeare, em termos de teoria, o que a edição de Booth alcançou editorialmente na década anterior; ele conduziu esses poemas a um novo mundo de discursos acadêmicos complexos, ao mostrar quão capaz era o pensamento e a escrita de Shakespeare ao sustentar as mais sofisticadas das aplicações críticas-teoréticas. Aplicando métodos de desconstrução e as teorias de Jacques Lacan baseadas na psicanálise, Fineman buscou desvelar os esforços de Shakespeare ao construir a “subjetividade poética,” como ela ocorre em vários níveis ao longo dos Sonetos. Fineman tomou seu título do dístico conclusivo do soneto 152 – “Pois Eu te jurei justo: olho perjuro, / Ao jurar contra a verdade uma mentira tão suja.” e o trocadilho do poema com “olho”/”Eu” (“eye”/”I”) ressoa ao longo do estudo intelectualmente denso de Fineman, conforme ele altera das lutas narcisistas do falante (um tópico já tratado com bons resultados por Janette Dillon em 1980), como différance heterossexual, e uma subjetividade angustiada ou “interioridade,” todas forjadas na bigorna do conflito psicológico e sexual. Na versão em forma de ensaio do seu argumento, apresentado aqui, Fineman conclui ao considerar como Shakespeare lutou em seus sonetos com o problema do “atraso” (belatedness). Isto é, Shakespeare estava escrevendo sonetos no final de uma longa tradição, e, como consequência, a linguagem dos sonetos estava quase esgotada. O poeta tinha intensa percepção dessa posição problemática, e seu esforço em resolver esse problema levou, como aponta Fineman, a uma excepcional descoberta: “A resposta de Shakespeare ao atraso introduz, sugeri, uma totalmente nova subjetividade na história da lírica” O ensaio de Fineman é provavelmente o mais citado trabalho acadêmico sobre os Sonetos de Shakespeare hoje em dia. Um único desenvolvimento editorial durante a década de 1980 também merece menção: a edição Penguin de John Kerrigan dos Sonetos, em si mesma nova por causa da insistência de seu editor em ler os Sonetos de Shakespeare juntamente com o poema mais longo A Queixa de um Amante. A edição de Kerrigan provê a obra mais próxima possível que os leitores do século dezessete encontraram ao ler o quarto de 1609 de Thorpe.

            Em 1990, as melhores leituras dos Sonetos de Shakespeare continuaram a evoluir. O trabalho influente de Bruce R. Smith e Margreta de Grazia, por mais diferentes as áreas de interesse, exibiu a emergência do materialismo cultural e do Novo Historicismo como os modos dominantes da crítica literária nos anos 1990. Esses novos modos reagem contra as aproximações com “vácuo selado” dos estruturalistas e pós-estruturalistas anteriores, que ignoravam as questões autorais e culturais com vistas de favorecer os sistemas verbais auto-referenciais dentro das obras literárias. Os materialistas culturais argumentaram que essas obras não podiam ser verdadeiramente compreendidas como artificialmente separadas, isoladas, das matrizes complexas da formação cultural que fortemente influenciou ambos, autores e textos. De Grazia mostra um novo interesse no papel da cultura na criação da literatura ao apontar nos Sonetos o produto das decisões bibliográficas dos impressores e o gosto da recepção das subsequentes gerações. Arthur Sherbo dedicou muito do seu estudo às apropriações do século dezoito dos textos de Shakespeare e Arthur Marotti fez algo similar ao nível da pré-impressão, do círculo fechado da escrita e da circulação do manuscrito. Marotti está interessado em como as práticas literárias socialmente situadas, sem mencionar as redes de patronagem, ajudaram a criar os sonetos que temos, assim como o significado que atribuímos a eles. “Meu real interesse não é nos erros de fato,” explica de Grazia, depois de considerar rapidamente as questionáveis táticas do impressor John Benson, “mas nos tipos de imperativos culturais que motivaram esses erros.” Em outras palavras, o objeto de estudo de Grazia é mais a “crítica de Shakespeare” que propriamente Shakespeare.

            Por outro lado, o foco de Smith em seu livro Desejo Homossexual na Inglaterra de Shakespeare representa um modo de crítica comprometida em explorar como os textos da Renascença refletem o desenvolvimento da identidade social da época. Note como o foco no título do livro não é sobre os poemas de Shakespeare, mas antes no país no qual esses poemas foram concebidos e compostos; um de seus predecessores foi Assim É Meu Amor (1985) de Joseph Pequigney, um corajoso estudo que pressupõe um relacionamento homossexual entre o falante e o Jovem Homem. Pequigney foi acusado de retornar entusiasticamente às terras sombrias da crítica biográfica, mas seu estudo já reflete um esboço mais sensível desses últimos críticos da identidade social. Pequigney não buscava responder aquelas questões duradouras sobre o homem Shakespeare ou o alter ego do falante dos sonetos. Pelo contrário, ele estava interessado nos relacionamentos entre os personagens nos Sonetos, e como as influências na representação literária, assim como nos mundos sociais dos autores, tornou-os possíveis e estruturaram o entendimento dos primeiros leitores. Por essa razão, Smith intitula seu estudo como “poética cultural”, e ele é um entre vários críticos fazendo um produtivo trabalho sobre os Sonetos de uma perspectiva de gênero. Outros incluem Eve Kosofsky Sedgwick, a qual o ensaio “Swan apaixonado: O Exemplo dos Sonetos de Shakespeare”, permanece um influente e exploratório trabalho nesse campo crítico, assim como os estudos de Marjorie Garber e Valerie Traub sobre as expressões bissexuais e o desejo homossexual nos poemas de Shakespeare.

          Os dois ensaios finais dessa sessão a concluem de uma maneira satisfatoriamente ampla. A Arte dos Sonetos de Shakespeare (1997) de Helen Vendler tem sido considerado um dos melhores comentários a uma obra clássica de literatura durante o século passado. As sensibilidades retóricas, estruturais e linguísticas evidentes de Vendler nunca permitem que a encantadora admiração pela poesia lírica atinja a periferia, assim como as pessoas habilidosas que emprestam suas vozes em toda sua complexidade dramática. A crítica de Vendler encontra a genialidade de Shakespeare em todo o lugar, como se cada linha de cada soneto fosse uma colmeia esperando pela colheita do mel lírico. O poeta W. H. Auden, por outro lado, pensava que somente uma parcela dos sonetos eram grandes obras, enquanto muitos outros eram esforços prosaicos na melhor das hipóteses. Mas novamente, os Sonetos de Shakespeare são chamados “melífluos” quando pela primeira vez é visto impresso, em 1598, e seu autor foi referido como “língua de mel.” Essa é uma crítica que Vendler, com sua sensível e expansiva estima pela sequência como um todo, facilmente sustentaria. O capítulo sobre os Sonetos no aclamado livro de Jonathan Bate, O Gênio de Shakespeare, reflete sobre as várias virtudes dessa crítica. Ele é escrito de uma forma vivaz, movendo-se rapidamente mas sempre claro, e traz uma considerável erudição dos seus estudos passados – sobre a influência de Ovídio em Shakespeare, sobre o relacionamento de Shakespeare com seu contemporâneo Christopher Marlowe e sua posterior influência nos Românticos – para nutrir esse útil panorama dos dramas iniciais e realizações poéticas dos Sonetos,e as muitas visões e revisões desses poemas nos quatro séculos desde sua primeira circulação e publicação.