Tradução das introduções aos poemas em The Complete Works of Shakespeare, Sixth Edition, David Bevington, 2009.
Introdução ao poema “A Queixa de um Amante” [A Lover’s Complaint] de Shakespeare:
Thomas Thorpe publicou “A Queixa de um Amante” [A Lover’s Complaint] no quarto de 1609 dos Sonetos de Shakespeare, atribuindo o poema a “William Shakespeare” em seu cabeçalho. À atribuição não se deve dar muito peso, porque Thorpe, evidentemente, não teve a autorização de Shakespeare para publicar os sonetos e pôde, possivelmente, ter adicionado os dois últimos sonetos de alguma outra fonte. Ademais, a atribuição de “A Queixa de um Amante” a Shakespeare é inteiramente plausível e não é refutada por nenhuma outra alegação. O poema nunca foi atribuído a qualquer outro autor durante a vida de Shakespeare, e nenhuma alternativa convincente veio à tona desde então. Embora alguns críticos, costumeiramente, questionem se o poema é merecedor do gênio de Shakespeare, sua densidade de metáforas e energia nos jogos de palavras são estilisticamente e intelectualmente muito parecidos com a obra madura de Shakespeare, por volta ou antes da data de publicação.
O poema toma como ponto de partida as convenções do gênero poético familiar elisabetano: a “queixa”. Frequentemente escolhido como cenário uma paisagem estilizada e habitada por pastores e pastoras rústicas, os poemas desse gênero geralmente descreviam à lamentação de amantes abandonados e não correspondidos. Tipicamente, o poeta podia catalogar os dispositivos instáveis dos amantes e lamentar em termos moralistas as perigosas consequências da paixão cega. Os elisabetanos esperavam, com frequência, essa forma de didatismo no gênero e podiam, de fato, ser tentados a ler o poema de Shakespeare como uma lição útil e objetiva para mulheres jovens sobre a língua doce de jovens cortejadores.
Ademais, o valor do poema de Shakespeare vai muito além das demandas convencionais do gênero, como também o fazem as contribuições de outros escritores excepcionais. Como muito em Como Gostais [As You Like It] o poema mostra-nos uma visão complexa e irônica da vida pastoril e explora o gênero da “queixa” pastoril com sutileza e grande escopo. Seus múltiplos pontos de vista são notórios. Iniciando com a voz solidária do poeta-narrador, “A Queixa de um Amante” nos introduz à uma dama desprezada e então ao pastor velho que se torna uma audiência para a história de infortúnio dela. Ele é um bom ouvinte, em parte porque ele semeou sua própria aveia selvagem em seus dias (11. 58-60). A história que ele ouve incorpora, também, a voz do jovem homem que seduziu à dama; a passagem na qual o jovem homem fala diretamente para ela, como relatado ao velho homem e assim para nós como leitores, toma muito do poema (11. 177-280).
Estruturado sucessivamente e concentricamente pelos pontos de vista da triste dama, o velho homem, o poeta e nós mesmos, é dado rédea livre à expressão do homem cortejador para suplicar por simpatia. O homem velho nos dá sua própria simpatia no lamento e no reconhecimento masculino de um tipo de cumplicidade, enquanto o poeta paira no pano de fundo, não simplesmente como narrador, mas também como alguém que compreende. O moralismo é evidente, mas ainda assim é menos importante para nós que à multiplicidade das vozes expressas em uma linguagem metaforicamente rica a tensa e, no final das contas, a amarga luta contra a sexualidade que é também a chave para os sonetos da “Dama Negra”. A inclusão de Thorpe do poema em seu volume dos Sonetos sugere a integridade daquela aventura de publicação.
Introdução ao poema “Vênus e Adônis” [Venus and Adonis] de Shakespeare:
Como a maioria de seus contemporâneos, Shakespeare aparentemente não considerava a escrita de peças como uma atividade literária elegante. Ele devia saber que era bom em fazê-las, e ele certamente se tornou famoso em seus dias como um dramaturgo, mas não fez grandes esforços para a publicação de suas peças. Nós não temos prefácios literários para as peças, nem indicação que Shakespeare as viu impressas. Escrever para o teatro era, antes, como escrever para filmes nos dias de hoje: um empreendimento lucrativo e mesmo glamoroso, mas subliterário. Quando Ben Jonson trouxe a tona suas Obras coletadas (a maioria peças) durante sua época, ele foi debochado por sua pretensão.
A escrita de sonetos e outras poesias “sérias”, pelo contrário, era convencionalmente uma aposta na verdadeira fama literária. A epístola introdutória de Shakespeare para seu Vênus e Adônis trai o entusiasmo por reconhecimento. Diferentemente, ele busca o patrocínio do Conde de Southampton, com esperança de prestígio literário, assim como de suporte financeiro. Ele fala de Vênus e Adônis como “o primeiro herdeiro da minha invenção”, pois, de fato, ele não havia escrito nenhuma peça anteriormente, e promete a Southampton um “trabalho de escultor” que apareceria em breve. Vênus e Adônis, em 1593, e O Rapto de Lucrécia em 1594 foram, de fato, as primeiras publicações de Shakespeare. Ambas foram cuidadosamente e corretamente impressas. Elas foram, provavelmente, compostas entre junho de 1592 e maio de 1594, um período em que os teatros estavam fechados por conta da peste. A crença de Shakespeare na importância dos poemas para sua carreira literária é confirmada por relatos de seus contemporâneos. Richard Barnfield seleciona-os como as obras que provavelmente mais asseguram um lugar para Shakespeare no “imortal livro da fama.” Francis Meres, em seu Palladis Tamia: Wit´s Treasury exclamou, em 1598, que “a doce alma arguciosa de Ovídio vive na doce língua de mel de Shakespeare: testemunha seu Vênus e Adônis, sua Lucrécia, seus sonetos açucarados entre seus amigos privados, etc.” Gabriel Harvey, apesar de preferir Lucrécia e Hamlet como mais prazerosos para “o tipo sábio”, concedeu que “o tipo mais jovem tira muito prazer do Vênus e Adônis de Shakespeare.” John Weever e ainda outros, adicionaram seus testemunhos à extraordinária reputação dos poemas não-dramáticos de Shakespeare.
Como o comentário puritano de Gabriel Harvey à Vênus e Adônis sugere, esse poema foi considerado amatório e até obsceno. Ele espelha uma corrente em voga na época, da poesia erótica ovidiana, como exemplificado por Thomas Lodge em Scilla Metamorphosis, de 1589 (na qual uma ninfa amorosa corteja um relutante jovem homem), e por Christopher Marlowe em Hero e Leander. Este último poema, inconcluso por causa da morte de Marlowe, em 1593, e publicado em 1598, com uma continuação por George Chapman, era, evidentemente, circulado em manuscrito, assim como muitos poemas sofisticados desse tipo, incluindo os sonetos de Shakespeare. Shakespeare pode ter sido influenciado pelo tom de ironia cômica, indiferença e graça sensual de Marlowe. Ele pode, também, ter lido Endymion and Phoebe de Michael Drayton (publicado em 1595, mas escrito anteriormente), no qual a tradição erótica é um tanto quanto idealizada em uma alegoria moral. Mais importante, entretanto, é que Shakespeare conhecia Ovídio, tanto no original quanto na tradução para o Inglês de Golding (1567). Ele parece ter combinado três fábulas místicas das Metamorfoses. O contorno narrativo é encontrado na busca de Vênus por Adônis (Livro 10), mas a tímida relutância do jovem homem relembra mais Hermaphroditus (Livro 4) e Narciso (Livro 3). Hermaphroditus expressa a juventude como sua razão por desejar escapar das garras da ninfa da água, Salmacis, e então é transformado, com ela, em um corpo único contendo ambos os sexos; Narciso evita a ninfa Eco pela paixão por si mesmo. Shakespeare desenhou, assim, um retrato composto do acanhamento masculino, um tema que ele iria explorar mais nos sonetos. Esse tema era adequado a um homem nobre com a juventude e as perspectivas de Southampton. Em tom, o poema era, também, apropriado à aristocracia e a intelectualidade, que lia esse tipo de poesia. Shakespeare, aqui, apontava para uma audiência mais refinada do que aquela das peças, apesar de que sua audiência teatral devia ser, geralmente, inteligente. As qualidades de ornamento de Vênus e Adônis devem ser julgadas no contexto elegante de uma audiência sofisticada.
O poema é, entre outras coisas, a realização de difíceis técnicas poéticas estilizadas. A história ela mesma, é relativamente sem eventos e os personagens são estáticos. Ao longo de dois terços do poema muito pouco ocorre além de uma série de envolvimentos amorosos, dos quais Adônis fracamente tenta se libertar. Mesmo sua luta subsequente com o javali e sua violenta morte são ocasiões para pathos retóricos em vez de uma vívida descrição narrativa. A história é essencialmente um quadro. Similarmente, nós não devemos profundidade psicológica ou autodescoberta significativa. As convenções dos versos amatórios não encorajam um sério interesse no personagem. Vênus e Adônis são porta-vozes de atitudes contrastantes diante do amor. Eles debatem um tópico cortês favorito, no estilo de John Lyly. Ambos apelam para a sabedoria convencional e falam em sentenças, ou pronunciamentos aforismáticos. Vênus, por exemplo, alerta Adônis da necessidade de precaução ao perseguir o javali, e opina que “O perigo planeja mudança; a argúcia espera com medo” (linha 690). Suplicando o seu despreparo para o amor, Adônis cita analogias triviais: “Nenhum pescador exceto o girino imaturo reprime / A suave ameixa cai; o verde crava rápido” (linhas 526-7). No âmago, seus argumentos são usualmente convencionais. Vênus encoraja a filosofia do carpe diem de se apegar ao momento do prazer. “Faça uso do tempo, não deixe a vantagem escorregar; / A beleza dentro de si não deve ser desperdiçada” (linhas 129-30). Ela reforça sua reivindicação com o apelo para a “lei da natureza”, de acordo com a obrigação de todas as coisas vivas serem obrigadas a reproduzirem-se; somente ao se reproduzirem os humanos podem conquistar o tempo e a morte. Ainda, por mais perto que essa posição possa estar do tema maior dos sonetos, ela não se dá sem ser disputada. Adônis acusa vigorosamente que Vênus está apenas racionalizando seu desejo: “Ó, desculpa estranha. / Quando a razão se prostitui para o abuso do desejo!” (linhas 791-2). Seu pleito por mais tempo para amadurecer e provar sua masculinidade é entendível, por mais que sorrimos em sua inabilidade de excitar-se pelas lisonjas de Vênus. Assim, nenhum competidor ganha o argumento. Vênus é provada correta em seu medo que Adônis seja morto pelo javali que ele caça, mas a rejeição de Adônis do desejo ocioso por atividades masculinas afirma a ideia convencional da masculinidade que requer a carne de alguma espada fálica. O debate é, em um sentido, um exercício literário engenhosamente elaborado, ainda que, também, permita à reflexão sobre pontos de vistas contrastantes do amor sensual e espiritual, absurdo e magnificente, engraçado e sério.
A pessoa do narrador é central para a ambivalência do debate. Ele, também, fala em sentenças, e seus aforismos parecem simpatizar com ambos os competidores. Em certos momentos, ele afirma a irresistível força do amor: “Que embora a rosa tenha espinhos, ainda assim ela é colhida” (linha 574). Em outros momentos, ele ri de Vênus por sua vacilação de humor: “Tua felicidade e desgosto são ambos extremos. / Desespero e esperança fazem de ti ridícula” (linhas 987-8). Como a pessoa usual de Ovídio, o falante aqui está, ao mesmo tempo, intrigado e entretido pelo amor, compelido a considerar seu poder e ainda ter consciência de suas absurdidades. O resultado é uma característica mistura ovidiana entre ironia e pathos. A ironia é especialmente evidente nos prazerosos toques cômicos que minam a potencial seriedade da ação: Vênus como uma amazona puxando Adônis para fora de sua montaria e prendendo-o debaixo de um braço, amuado e corado; o cavalo de Adônis perseguindo uma égua no cio, deixando Adônis para defender-se por si mesmo; Vênus desmaiando ao pensar no javali e puxando Adônis para cima dela, “na enumeração do amor / O campeão dela montado para o encontro quente” (linhas 595-6). Esses dispositivos distanciam-nos da ação e criam uma atmosfera de elegante, senão sensual entretenimento. O poema é, também, banhado de rico pathos da emoção sensual. A angústia de Vênus sobre a morte de Adônis é muito genuína. A sensualidade irá saciar-se sem o humor irônico, enquanto o humor parecerá frívolo sem o pathos.
O poema insinua uma alegoria moral, na maneira da mitologização ovidiana. Vênus representa a si mesma como deusa, não somente da paixão erótica, mas também do amor eterno, conquistando o tempo e a morte. Por que Adônis perversamente recusa esse ideal, Vênus conclui que a beleza humana deve perecer e que a felicidade humana deve ser sujeita ao infortúnio. Ainda essa leitura é somente uma parte do argumento e é contradita por uma sugestão oposta, que Adônis é o princípio racional tentando sem sucesso governar o desejo humano (o javali e o cavalo incontrolável de Adônis). Essas contradições, que derivam da estrutura do poema como um debate e também do Neoplatonismo do Renascimento, confirmam nossa impressão que a alegoria não é o verdadeiro “significado” do poema, mas é parte de uma visão ambígua do amor como ambos, exaltado e mundano, um mistério que nós nunca compreenderemos em termos simples. A alegoria eleva à seriedade, adicionando dignidade poética ao que pode, de outra forma, parecer ser um equilibrado poema erótico. Não devemos minimizar a provocação sexual ou falhamos em reconhecer nosso próprio prazer erótico nele. Os encontros repetitivos de Vênus com Adônis tomam a forma de posições ingenuamente variadas, terminando em um abraço de coito, apesar de que sem consumação. Os papeis passivos de Adônis convidam o leitor masculino a fantasiar a si mesmo no lugar de Adônis, sendo seduzido pela deusa da beleza. A famosa passagem comparando o corpo de Vênus a um parque de bichos com “fontes do prazer”, “doces traseiros de grama”, e “montes roliços elevados” (linhas 229-40) é gráfico através do uso da ambiguidade sem ser pornográfico. O poema é igualmente explícito em seu “banquete” dos cinco sentidos (linhas 433-50). Este é o “desobediente” Ovídio de Ars Amatoria.
O poema de Shakespeare é um bordado de floreios, de “conceitos” ou similares engenhosamente forjados, de digressões construídas habilmente, como as narrativas do cavalo de Adônis e de simbolismo colorido. As imagens geralmente são retiradas da natureza (águias, pássaros que caem em redes, lobos, bagas) ou conotam algo ardente, flamejante e brilhante (tochas, joias). As cores dominantes são o vermelho do sol nascente ou da face corada de Adônis ou a insígnia de Marte, o branco de uma mão de alabastro ou da roupa de cama fresca ou a angústia “cinzenta-pálida”. Ironicamente, também, a boca espumosa-branca do javali está manchada com vermelho e o sangue vermelho de Adônis mancha seu “habitual lírio branco”. A flor de Adônis, a anêmona, é vermelha-roxa e branca. Uma antítese similarmente equilibrada permeia às figuras retóricas do poema, como na repetição simétrica de palavras em frases gramaticalmente paralelas (parison), ou em frases de igual duração (isocolon), ou em ordem inversa (antimetabole), ou no começo e término de uma linha (eponalepsis), e assim por diante. Essas pirotecnias podem parecer, à primeira vista, mecânicas, mas elas também têm um lugar em uma obra de arte que celebra ambos, o exótico e o espiritual no amor. O floreio tem sua função própria e não serve apenas para o embelezamento por si só. Em todos os eventos, Shakespeare criou uma variação poética poderosa sobre um mito antigo que é, ao mesmo tempo, uma obra retoricamente gigantesca.
Introdução ao poema “O Estupro de Lucrécia” [The Rape of Lucrece] de Shakespeare:
O Estupro de Lucrécia está intimamente relacionado com Vênus e Adônis. Os dois foram publicados com cerca de um ano de diferença, em 1594 e 1593, respectivamente, e ambos foram impressos por Richard Field. Ambos foram dedicados ao jovem Conde de Southampton, Henry Wriothesley, cuja confiança e amizade Shakespeare parece ter ganho durante o intervalo entre os dois poemas; o prefácio dedicatório a O Estupro de Lucrécia expressa a certeza que o poema seria aceito. Estilisticamente, os dois poemas são de uma mesma classe: ambos dependem do ornamento petrarquiano e da representação retórica e são impregnados do pathos ovidiano. Ademais, eles são complementares em vez de similares em atitude e tema. O Estupro de Lucrécia parece ser o “trabalho de coveiro” prometido a Southampton na dedicação do poema anterior, uma sequência planejada na qual o amor será sujeito a um tratamento mais sombrio. Vênus e Adônis é, principalmente, sobre o prazer sensual, enquanto O Estupro de Lucrécia é sobre a castidade heroica. O primeiro poema é amatório, erótico e prazeroso, apesar do seu final triste; o segundo é moral, declamatório e lúgubre. Como Gabriel Harvey observou (cerca de 1598-1601), “O tipo jovem tira muito prazer do Vênus e Adônis de Shakespeare, mas sua Lucrécia e sua Tragédia de Hamlet, Príncipe de Dinamarca, há algo neles que agrada o tipo mais sábio.”
Harvey compara esse poema a Hamlet e sugere que, a ele pelo menos, Shakespeare aspira a efeitos sublimes em Lucrécia. Por seu padrão de verso, Shakespeare escolheu a estrofe real com rima de sete linhas, tradicionalmente usada para a expressão trágica, como no Troilus and Criseyde de Geoffrey Chaucer e várias partes do mais formal Contos de Cantuária, em The Fall of Princes (1430-1438) de John Lydgate e sua continuação em A Mirror for Magistrates (1559), no The Complaint of Rosamond de Samuel Daniel e outros. Embora Shakespeare volte-se para Ovídio, mais uma vez, como sua fonte principal, ele escolhe uma fábula de desonra, suicídio e vingança, em vez de uma excitante perseguição amorosa. A história de Lucrécia ganhou ampla vigência nos mundos antigos e medievais, como um exemplo de conduta casta da mulher. Shakespeare parece ter conhecido a History of Rome de Tito Lívio (Livro 1, 2.721-852). Entre as versões posteriores, ele pode ter conhecido The Legend of Good Woman de Chaucer e uma tradução de Lívio no The Palace of Pleasure de William Painter (1566-1575). Ele encontrou outras “queixas” em A Mirror for Magistrates e em The Complaint of Rosamond de Daniel, é a esse gênero bem estabelecido que Lucrécia pertence. O poema detém o efeito desejado de aumentar a reputação de Shakespeare na poesia elegante; ele foi reimpresso cinco vezes durante sua vida e frequentemente foi admirado por seus contemporâneos. Vênus e Adônis foi, de fato, mais popular ainda (chegou a ser reimpresso nove vezes durante a vida de Shakespeare), mas ninguém nos dias de Shakespeare parecia ter considerado Lucrécia como qualquer outra coisa do que uma obra nobre.
Para entender o poema em termos de seu próprio sentido genérico de forma, nós devemos reconhecer suas convenções e não esperar que ele seja outro para além do que aquilo que professa ser. Como em Vênus e Adônis, o enredo e o personagem são secundários. Embora a história delineada no “O Argumento” seja potencialmente sensacional e de movimento ligeiro, Shakespeare deliberadamente corta muito da ação. Não vemos Lucius Tarquinius assassinar seu padrasto e o confisco tirânico de Roma, ou a precipitada vanglória da virtude de sua esposa Lucrécia na presença do luxurioso filho do rei, Sextus Tarquinius, nem na conclusão da história aprendemos muito sobre o vingativo estupro de Lucrécia. O foco de Shakespeare é nas atitudes dos dois protagonistas imediatamente antes e depois do estupro. Mesmo aqui, apesar das oportunidades da sondagem psicológica, o real interesse de Shakespeare não é nos personagens em si mesmos, tanto quanto nas ramificações sociais de suas ações. Como Coppélia Kahn demonstrou (no Shakespeare Studies 9), o estupro serve como um meio para examinar a natureza do casamento em uma sociedade patriarcal na qual a competição pela propriedade e as lutas por poder caracterizam as atitudes dos homens na política e no sexo. Usando Roma como um espelho familiar para os costumes ingleses, Shakespeare apresenta Lucrécia como uma heroína agindo para defender a instituição do casamento. Entretanto, inocentemente, ela é a única que adquire uma mancha ao ser violada e que deve pagar o custo das obrigações da esposa no casamento. Seu marido aceita o decoro do suicídio dela como necessário para a preservação de sua honra, entretanto, não importando o quanto ele possa entristecer-se com o erro dela. Como várias das heroínas posteriores de Shakespeare, como Imogênia em Cimbelino, Lucrécia é retratada como bonita mas não sedutora, contida mesmo na cama de seu casamento. Ela arranja a própria morte para ter o máximo das implicações sociais.
Juntamente com o seu interesse em patriarquia e violência, Shakespeare moldura à história de O Estupro de Lucrécia em termos de eventos políticos que levam à fundação da república romana. A corrupção da dinastia de Tarquínio levanta os temas sobre os valores romanos em geral, e o poema termina com um forte repúdio da antiga ordem. O vilão do poema é, ao mesmo tempo, estuprador e tirano; a resolução é tanto a justificação das mulheres como vítimas quanto um movimento no sentido do republicanismo. De fato, a patriarquia que ditou as condições de vida e honra de Lucrécia permanecerá intacta na república; a esposa será ainda possessão de seu marido, e a maior obrigação dela perante o estado e a família deverá ser a de garantir que a honra de seu marido permaneça intocável. Entretanto, as suposições da hierarquia romana são submetidas a escrutínio.
Shakespeare lança sua narrativa na forma de uma série de disputas retóricas, cada parte apresentada como um debate ou como uma declamação formal. Os debates são construídos em torno de antíteses familiares: honra contra luxúria, vontade rude contra consciência, “afecção” contra razão, nobreza contra baixeza, e assim por diante. Muitas das imagens são similarmente arranjadas em pares contrastantes: a pomba e a coruja, luz do dia e escuridão, clima limpo e enublado, branco e preto. Tarquínio debate consigo mesmo as razões a favor e contra o estupro; Lucrécia tenta persuadi-lo da depravação do seu plano; Lucrécia pondera suicidar-se. Esses debates geram, por outro lado, numerosas apóstrofes retóricas para a fidelidade conjugal (linhas 22-8), ao ideal do reinado como um exemplo moral para os outros (linhas 610-37), à Noite (linhas 765-812), à Oportunidade (linhas 876-924), e ao Tempo (linhas 925-1022). Outra fórmula retórica, talvez a mais bem sucedida do poema, é o uso de digressão estrutural. A mais notável descreve uma pintura ou tapeçaria de Troia com óbvia relevância ao destino triste de Lucrécia: Troia é uma cidade destruída por um estupro, Paris alcança seu prazer egoísta às custas do bem público, e Sinon detém sua sinistra vitória através de uma aparição enganadora (linhas 1366-1568).
Ao longo de todo o poema o ornamento reluta em alcançar efeitos altivos e elaborados. As comparações, ou a “argúcia” [conceits], como os elisabetanos os chamavam, são intencionalmente planejados e confiantes em inventivos jogos de palavras. Shakespeare emprega um trocadilho com a palavra vontade [will], por exemplo, como ele faz nos sonetos, onde ele tira vantagem do seu próprio nome que começa com Will (veja o soneto 135), e em Vênus e Adônis (veja a linha 365). Em O Estupro de Lucrécia, a palavra é central para a representação que Shakespeare faz de Tarquínio, conforme vemos o estuprador manter uma controvérsia entre “a congelante consciência e a vontade quente-queimando” (linha 247), forçando as trancas “entre sua câmara e sua vontade” (linha 302), alimentando insaciavelmente “em sua vontade seus obstinados olhos” (linha 417), e assim por diante. Essas e outras passagens frequentemente estruturam as palavras em uma polaridade entre “vontade” e “coração”, e alcança vários significados que incluem inclinação, desejo, apetite, luxúria sexual, solicitação ou comando, volição, prazer, permissão, boa vontade e espontaneidade. O fato que as palavras rimam com “kill” ou “ill” adiciona à sua utilidade. Outra forma de “argúcia”, encontrada ao longo de O Estupro de Lucrécia – uma que se eleva inteiramente das preocupações mais profundas do poema – é uma abrangente metáfora militar de uma cidade sob cerco. O coração de Tarquínio soa um alarme, os seios de Lucrécia são “torres de tiro circulares” tornados pálidos pelo assalto (linhas 432-41), e, em sua morte subsequente, ela está como uma “ilha saqueada” cercada por rios de seu próprio sangue (linha 1740). Em outro lugar, ela é uma casa que sofreu pilhagem, “A mansão dela maltratada pelo inimigo” (linhas 1170-1). As alusões clássicas são, naturalmente, comuns, especialmente à história do estupro de Philomel ou Philomela (linhas 1079, 1128, etc.) Os dispositivos retóricos da antítese são mostrados com a mesma versatilidade ornamentada de Vênus e Adônis. Em um poema sobre um tema sério, esses dispositivos podem parecer excessivamente forçados para nós. Nós devemos, entretanto, reconhecê-los como convencionais no gênero do qual O Estupro de Lucrécia pertence. Nós encontramos uma combinação similar do sensual e do moral nos conceitos às vezes grotescos do poeta Católico Rober Southwell (morto em 1595) e nos subsequentes paradoxos barrocos de Richard Crashaw (morto em 1649). Entre os trabalhos dramáticos de Shakespeare, Titus Andronicus parece o mais próximo de O Estupro de Lucrécia em seu pathos, sensacionalismo refinado, e uso de alusão clássica, e especificamente, no personagem de Lavínia, das quais os infortúnios e a casta dignidade muito relembram àquela de Lucrécia.
Ao longo de O Estupro de Lucrécia encontramos uma consciência da vocação artística do próprio poema. Nos apuros trágicos de Lucrécia, Shakespeare explora a habilidade da arte em comunicar através de vários tipos de expressões. Especialmente na longa passagem da pintura da queda de Tróia (linhas 1366-1568), Lucrécia mostra uma ansiedade entendível sobre a habilidade da arte em enganar. A pintura é, em alguns sentidos, mais realista que a vida ela mesma; a figura na pintura parece mover-se e é tão astuciosamente reproduzida que ela “simula a mente” (linha 1414). A obra imaginária é “enganadora em seu conceito” (linha 1423), permitindo através da sinédoque (usando a parte para representar o todo) sugerir um série de verdades gerais por detrás das particulares que são mostradas. Esse poder da arte de enganar é mais preocupante no caso de Sinon, o traidor de Tróia – “Nele o pintor trabalhou com sua habilidade / De esconder o engano” (linhas 1506-7) – e teve sucesso com esse devastador efeito que o observador não pode dizer com a suave aparição de Sinon que ele é, de fato, capaz de um mal ilimitado. Em sua capacidade de enganar, Sinon é como Tarquínio, o príncipe que aparenta ser atraente que destruiu Lucrécia. A arte é, assim, capaz de representação errônea pelos propósitos do mal; seu poder persuasivo, sua visão imaginativa, podem ser pervertidas para fins errados. Vista através dessa arte, Roma, também, é ao mesmo tempo, a grande fonte da civilização e uma nação a qual os valores são colocados em séria dúvida. O Estupro de Lucrécia combate assim assuntos de sérias consequências – que também têm relações com Shakespeare em suas primeiras peças (como em Titus Andronicus) e, de fato, ao longo de toda a sua carreira como dramaturgo.
Introdução ao poema “A Fênix e a Pomba [The Phoenix and the Turtle] de Shakespeare:
“A Fênix e a Pomba (Tartaruga)” apareceu pela primeira vez em uma coleção de poemas chamada Love´s Martyr: Or, Rosalins Complaint de Robert Chester (1601). Esse volume em quarto apresentava vários exercícios poéticos sobre a fênix e a pomba “pelos melhores e principais de nossos escritores modernos”. O poema, atribuído a Shakespeare, tem sido universalmente aceito como dele e é uma das suas mais notáveis produções. Com uma ilusória dicção simples, com graciosos e puros quartetos e tercetos tetrâmeros, o poema facilmente invoca o ideal transcendental de um amor existindo eternamente além da morte. A ocasião é a de uma assembleia de pássaros para observar os ritos funerais da fênix (sempre encontrada sozinha) e a “pomba tartaruga” [Streptopelia turtur] (sempre encontrada em pares). A fênix, o pássaro lendário da ressurreição de suas próprias cinzas, mais uma vez encontra à vida através da morte na companhia da pomba, emblema da pura constância na afecção. A união espiritual deles torna-se uma unidade mística na qual na presença a Razão permanece quase muda. O discurso humano confuso deve recorrer ao paradoxo a fim de explicar como dois seres tornam-se uma essência. “Corações distantes ainda que não separados.” A matemática e a lógica são “confundidas” por essa união de dois espíritos em “um concordante”. Esse paradoxo da unidade ecoa à teologia escolástica e sua exposição da doutrina da Trindade, em termos de pessoas, substância, acidente, tri-unidade, e assim por diante, embora, um tanto da maneira da poesia de John Donne, essa alusão seja mais uma parte da argúcia séria do poema quanto de seu significado simbólico. A pungente brevidade dessa visão e o cenário da massa de pássaros são reproduzidos ainda mais misteriosamente pelo nosso desconhecimento de qual, se alguma, tragédia humana pode ter provocado essa afirmação metafísica.