O Soneto 58 de Shakespeare, reproduzido a seguir, é um verdadeiro hino contra o ciúme, por parte de um amante generoso, que confia no discernimento da amada:

“Que o deus que fez de mim seu escravo não permita,
Que eu em pensamento controle seu tempo de lazer,
Ou que eu implore que preste contas de suas horas,
Sendo seu vassalo, sujeito a ficar à sua disposição!

Oh, que eu sofra, estando às suas ordens,
Na prisão em que me sinto na sua ausência,
Paciente, resignado, enfrentando cada restrição,
Sem acusá-la de injúria.

Fique onde desejar, sua franquia é tão forte
Que você pode dar ao seu tempo o privilégio
Que quiser; ele pertence a você,
Que poderá perdoar sua própria falta.

Devo esperar, embora esperar assim seja infernal,
Sem censurar o seu lazer, seja bom ou seja mal.”

(That god forbid that made me first your slave,
I should in thought control your times of pleasure,
Or at your hand the account of hours to crave,
Being your vassal, bound to stay your leisure!

O, let me suffer, being at your beck,
The imprison’d absence of your liberty;
And patience, tame to sufferance, bide each cheque,
Without accusing you of injury.

Be where you list, your charter is so strong
That you yourself may privilege your time
To what you will; to you it doth belong
Yourself to pardon of self-doing crime.

I am to wait, though waiting so be hell;
Not blame your pleasure, be it ill or well.)

Na primeira quadra, o autor confessa-se escravo da amada e, como tal, indigno de controlar suas horas de lazer ou de pedir a ela que preste contas de suas ações. Ao contrário, sendo um vassalo, compete-lhe ficar à disposição dela.

Sendo assim, admite o autor na segunda quadra, que ele sofra e fique à disposição de um “aceno” (beck) dela. Literalmente, ele diz sofrer da “ausência aprisionada de sua liberdade” (The imprison’d absence of your liberty), mas o que ele quer dizer é que, na ausência dela, ele se sente como numa prisão. Assim, ele precisa ser paciente e resignado e enfrentar cada restrição que apareça, sem acusá-la de ser a culpada por suas aflições.

Na terceira quadra, ele a libera para que vá para onde bem desejar, pois ele concede-lhe uma “franquia” (charter, do latim chartula) tão generosa, que ela tem o privilégio de usar seu tempo como quiser. Cabe a ela perdoar a si mesma das eventuais faltas que cometa.

Finalmente, cabe a ele, como um vassalo fiel e obediente, esperar, embora a espera seja difícil, sem censurá-la por coisa alguma.

Este comportamento generoso pode ser observado em Otelo em diversas falas, até ser vencido pela insistência impertinente de Iago. Da mesma forma, o general dá muitas mostras de sua paixão por Desdêmona:

a) Otelo declara seu amor por Desdêmona na primeira fala em que se refere a ela: “Saiba, Iago,/ que se não fosse pelo amor que tenho à gentil Desdêmona/ à minha condição [de homem] livre e sem lar/ eu não imporia limites e restrições/ nem por todos os tesouros do mar” (for know, Iago,/ But that I love the gentle Desdemona,/ I would not my unhoused free condition/ Put into circumscription and confine/ For the sea’s worth) (1.2);

b) Quando Brabâncio se despede de Otelo dizendo que “ela enganou o pai e pode muito bem enganá-lo”, a resposta deste é categórica: “Aposto minha vida pela fidelidade dela!” (My life upon her faith!) (1.3);

c) A alegria de Otelo ao rever Desdêmona, após uma viagem tumultada, é reveladora: “Oh, alegria de minha alma!/ Se depois de cada tempestade vierem estas calmarias,/ que os ventos soprem até que despertem a morte!” (O my soul’s joy!/ If after every tempest come such calms,/ May the winds blow till they have waken’d death!) (2.1);

d) Na primeira vez que Desdêmona intercede por Cássio, Otelo, por duas vezes, diz a ela: “Não lhe negarei nada” (I will deny thee nothing) (3.3). Mais adiante, na mesma cena, em presença de Iago, Otelo admite: “Excelente pequena! Que a perdição se apodere de minha alma,/ se não a amo!” (Excellent wretch! Perdition catch my soul,/ But I do love thee!) (3.3);

e) Otelo confia em Desdêmona: “Não ficarei com ciúmes/ se disserem que minha mulher é bonita, alimenta-se bem, gosta de companhia,/ fala com desenvoltura, canta, toca e dança bem;/ onde estiver a virtude, estas coisas tornam-se mais virtuosas:/ nem dos meus próprios fracos méritos sairá/ o menor temor ou dúvida de sua fidelidade;/ pois ela tinha olhos e me escolheu” (’Tis not to make me jealous/ To say my wife is fair, feeds well, loves company,/ Is free of speech, sings, plays and dances well;/ Where virtue is, these are more virtuous:/ Nor from mine own weak merits will I draw/ The smallest fear or doubt of her revolt;/ For she had eyes, and chose me) (3.3).

Ludovico, na última cena da peça, resume a perplexidade de todos. Ele não compreende como o general, um homem tão ilustre, foi capaz de cair “na intriga de um maldito patife” (in the practice of a damned slave) (5.2).