Dedicatória
AO MUI VENERÁVEL HENRY WRIOTHESLY
Conde de Southampton, e Barão de Titchfield.
O amor que a vossa senhoria dedico é sem fim; do qual este panfleto, sem início, não é mais que um quinhão supérfluo. O lastro que tenho de vossa disposição honrosa, não o valor de minhas linhas desgovernadas, torna-o certo de aceitação. O que fiz é vosso; o que estou por fazer é vosso; sendo parte daquilo que é meu, devotamente vosso. Fosse maior meu valor, meu dever maior se mostraria; entrementes, como é, a vossa senhoria está atado, a quem desejo longa vida, ainda mais longa pois plena de felicidade.
Aquele cujo dever é todo vosso,
WILLIAM SHAKESPEARE.
O Argumento
Lucius Tarquinius, por seu excessivo orgulho alcunhado Superbus, após ter causado o cruel assassínio de seu próprio sogro Servius Tullius, e, contrário a lei e costume romanos, sem demandar ou esperar o sufrágio do povo, tomado a si a posse do reino, saiu, acompanhado de seus filhos e outros nobres de Roma, a lançar o cerco a Ardea. Durante esse cerco, os homens mais graduados do exército se encontrando uma noite na tenda de Sextus Tarquinius, o filho do rei, em suas charlas após a ceia cada um enalteceu as virtudes de sua própria esposa: dentre os quais Colatino exaltou a incomparável castidade de sua esposa, Lucrécia. Nesse jocundo humor cavalgaram até Roma; e com o intento, pela aparição secreta e súbita, de pôr à prova aquilo que cada um antes havia afiançado, apenas Colatino encontra a sua esposa, embora fosse tarde da noite, fiando junto a suas criadas; as outras damas foram todas encontradas dançando e festejando, ou em passatempos diversos. Com isso os nobres concederam a Colatino a vitória, e a sua esposa a fama. Nesse momento, Sextus Tarquinius, que se consumia em chamas com a beleza de Lucrécia, mas abafava suas paixões naquele instante, partiu com os restantes de volta ao acampamento; de onde ele em breve se retirou em privado, e foi, de acordo com sua posição, regalmente recebido e alojado por Lucrécia em Collatium. Na mesma noite ele traiçoeiramente se esgueirou até seu quarto, desonrou-a violentamente, e de manhã cedo pôs-se a correr. Lucrécia, nesse dissabor lamentável, se apressa em enviar mensageiros, um a Roma atrás de seu pai, outro ao acampamento atrás de Colatino. Eles chegaram, um acompanhado de Junius Brutus, o outro de Publius Valerius; e encontrando Lucrécia trajada em hábito de luto, questionaram a causa de sua mágoa. Ela, antes obtendo deles um juramento de fazer-lhe vingança, revelou o autor, e toda sorte de pormenor, e logo então, de súbito, esfaqueou-se. Feito isso, em uno consenso todos fizeram o voto de desenraizar toda a família dos Tarquinos; e transportando o corpo a Roma, Brutus familiarizou o povo com executor e detalhes do feito vil, com uma amarga invectiva contra a tirania do rei. Com isso, tanto é movido o povo que em uno consenso e aclamação geral os Tarquinos foram todos exilados, e o governo do Estado alterado de reis para cônsules.
A Violação de Lucrécia
De Ardea sitiada, com pressa insana,
Tendo o falso desejo por asas implumes,
Tarquino lascivo deixa a hoste romana,
E a Collatium leva um fogo sem lume
Que, oculto em alvas cinzas, crescer presume
E cingir pelas ancas, com a flama vasta,
Ao amor de Colatino, Lucrécia casta.
Por ventura tal “casta”, ó desventura, deu
Um gume franco ao apetite afiado;
Quando Colatino, sem siso, se rendeu
A alabar o sem par alvo e encarnado
Que regia naquele céu do seu agrado,
Onde mortais estrelas, como que celestes,
Com puro aspecto a ele serviam, prestes.
Pois ao ter com Tarquino, na noite passada,
Expôs o tesouro de sua boa sorte;
Que riqueza infinda era a ele emprestada
Pelos céus, na posse de tão bela consorte;
Vê em sua fortuna um tão alto porte,
Que mesmo reis podiam esposar mais fama
Mas rei ou par algum a tão singular dama.
Ó júbilo que é tão pouco compartido!
E, tido, em breve decaído e desfeito
Como orvalho argênteo matinal derretido
Quando ao esplendor d’oiro do sol é sujeito!
Um termo que expira, morto ainda no leito:
‘Stão honra e beleza, nos braços de seu dono,
Debilmente guardadas dum mundo de dano.
Beleza em si de si mesma é persuasão
Aos olhos dos homens sem orador louvar;
Que apologia é necessária, então,
P’ra fazer brilhar o que é tão singular?
Ou por que é Colatino a divulgar
A rica joia que bem agia escondendo
De ouvidos gatunos, sua mesmo sendo?
Talvez seu jactar de Lucrécia soberana
Atiçou este soberbo real varão;
Pelos ouvidos o coração se profana:
Talvez inveja de coisa tão rica, então,
Que não se compara, desdenhoso aguilhão
Em sua ambição: homem baixo se gabar
Da sorte d’oiro que seu maior vê faltar.
Mas um mau pensamento instigou, premente,
Sua pressa tempestuosa, se não esse:
Honra, afazeres, amigos, e patente,
Negligencia, vai com ligeiro interesse
Aplacar a brasa que ao fígado aquece.
Ó falso fogo, envolto em frio pesar,
Broto audaz, sempre ceifado sem vicejar!
Quando a Collatium chegou este lorde rude,
Bem recebido foi pela romana dama,
Cuja face disputam Beleza e Virtude
Qual delas lhe é maior esteio da fama:
Beleza enrubesce se Virtude se afama;
Jacta-se do rubor Beleza, em censura
Virtude asperge-lhe argêntea alvura.
Mas Beleza tem o titulo desse alvor
Das pombas de Vênus e vai reivindicar;
Virtude pleiteia à Beleza seu rubor,
Que Virtude deu à era d’oiro a doirar
As argênteas faces, dele se armar;
Ensinando-as a assim a manter-se a salvo,
Se ataca o opróbrio, o rubro defende o alvo.
Tal heráldica à face Lucrécia exibia,
Lutando Beleza rubra e Virtude alva
Sobre a cor de cada uma a outra regia,
Mostrando o direito desde a era primeva:
Mas a ambição delas sempre se subleva;
A soberania em cada tão grande sendo,
Que no trono uma à outra vai sucedendo.
De lírios e rosas sua silente guerra,
Tarquino viu no belo rosto disputado,
Suas puras tropas seu falso olho encerra;
Onde, para não ser por elas derribado,
O covarde cativo cede, derrotado,
A esses dois exércitos que o livrariam:
De tão vil inimigo não triunfariam.
E, pensa ele, a língua rasa do marido,
Pródiga avara que a ela tanto elogia,
Nesse mister faz da beleza um desmentido,
Que tanto excede a mostra da aptidão fria.
E os elogios que Colatino rendia,
Tarquino encantado os vê como incertos,
Em silente pasmo de olhos sempre abertos.
Tal santo terrenal, a quem louva um demônio,
Pouco suspeita de seu falso adorador:
Mente sem mácula não vê mal nem em sonho;
Ave nunca enredada pousa sem temor.
Cândida, a prover víveres vai-se por,
E cortês acolhida à visitante alteza,
Cujo exterior não lhe expressava a baixeza.
Pois isso dissimula com alta patente,
A majestade o vil pecado a ocultar,
Que nada havia nele que à visão atente,
Exceto em demasia pasmo no olhar,
Que, tudo tendo, tudo não pode bastar,
Mas, pobre e rico, seu estoque se desfaz
E, pleno em fausto, anseia ainda por mais.
Mas ela com olho estranho nunca lidou,
Não lhe pôde interpretar um olhar feroz,
Nem sutis límpidos segredos decifrou
Nas margens desse livro, claras como sóis.
Não viu a isca oculta, nem temeu anzóis,
Nem duma visão malsã a moral deduz
Mais que seus olhos se abriam para a luz.
Ele a fama do marido a ela fabula,
Conquistada nos campos duma Itália fértil,
De elogios a Colatino cumula:
Glorificado foi, cavaleiro viril,
Com armas batidas, laureado se viu.
Seu júbilo com mão erguida é expresso
E, muda, assim louva ao céu pelo sucesso.
Bem longe das intenções de sua chegada,
Pretexta sua presença com um enredo.
Nuvem alguma ou tempestuosa rafada
Em seu limpo céu aparece, ainda é cedo,
Até negra Noite, mãe de Pavor e Medo,
Sobre tudo turva escuridão espalhar
E na prisão de sua gruta o Dia guardar.
É quando Tarquino à cama é conduzido,
Fingindo fadiga e espírito pesado,
Após a ceia tendo muito debatido
Com composta Lucrécia, e a noite adentrado.
Viço já por plúmbeo sono disputado,
Todos então a seu repouso se entregam
Menos ladrões e mentes aflitas, que velam.
Como um deles Tarquino fica revolvendo
Os mil perigos do desejo à obtenção,
Mas sempre a obter seu desejo resolvendo,
Bem que parca esperança peça abstenção.
Ânsia pode passar por gratificação:
Se grande tesouro é a paga proposta,
Morte mesmo vendo, morte não é suposta.
Quem muito cobiça do ganho é tão cioso,
Daquilo que não tem, que a coisa possuída
Dissipa e aliena de seu próprio gozo;
E assim, mais buscando, menos tem na vida,
Ou, mais ganhando, proveito da desmedida
É só indigestão, e tais perdas sustém
Que vai à bancarrota por um só vintém.
A meta de tudo é a vida acalentar
Com honra, recursos e paz, em seu poente;
E nessa meta há tanto que se batalhar
Que um por todos, todos por um dá a gente:
Tal vida por honra na luta veemente,
Honra por recursos; e o preço que eles pedem
É morte de todos, todos juntos se perdem.
Tal que em tentar tal má empreita se evade
A coisa que somos pela suposição;
E esta torpe ambiciosa enfermidade,
Muito tendo, tormenta com a cessação
Daquilo que temos. Descuramos então
A coisa que temos, e só por mal julgar,
Tornamos algo nulo ao tentar aumentar.
Um tal lance o tolo Tarquino vai fazer,
Empenhando a honra para obter a lascívia:
Por si próprio ele próprio deixar de ser.
Onde há verdade se nem em si se confia?
Como julgar justo ao estranho sonharia,
Se ele mesmo a si mesmo desfaz e entrega
À calúnia das línguas, su’alma à refrega?
Avança sobre as horas morta madrugada,
D’olho mortal, férreo sono é fechadura.
Nenhuma estrela auspiciosa alumiada;
Ruído de coruja e lobo, que agoura,
Serve à estação em que se dá a captura
Das pobres ovelhas. Pureza a repousar,
Velam ardor e morte a manchar e ceifar.
Salta agora do leito o lascivo senhor,
A manta por sobre o braço tendo jogado;
Disputado em fúria entre Desejo e Pavor;
Um adula doce, outro teme mau fado,
Mas bom Medo, por Lascívia enfeitiçado,
Tão tão comum é que ele fuja e não enfrente,
Enxotado por Desejo rude e demente.
Sua espada à pederneira de leve fere,
Tal que à fria pedra um brilho é arrancado,
À tocha besuntada fogo assim confere,
A ser estrela-guia d’olho obcecado,
E à flama assim se dirige, ponderado:
“Se à fria pedra inflamar tenho eu ensejo,
Assim a Lucrécia forçará meu desejo.”
Já pálido de medo ele premedita
Os perigos de sua odiosa empreitada,
Tal que no íntimo da mente ele reflita
Que mágoa advinda pode lhe ser somada,
Assim com escárnio é dele desprezada
A cota nua, lascívia de eterno alento,
E justo assim controla injusto pensamento:
“Bela tocha, cessa esta luz, não a empreste
A ofuscar quem luz emana muito mais.
Morra toda ideia impura, antes que empeste
Com sua sujidade a coisas divinais.
Dum puro incenso a puro templo oferta faz.
Que a boa natura humana abomine o ato
Que suja ao amor o níveo traje cordato.
“Ó opróbrio às armas e à cavalaria!
Ó desonra que ao nosso mausoléu cultivo!
Ó ímpio ato, que todo mal conteria!
Um marcial homem de caprichos cativo!
Vero valor de vero respeito é motivo.
Então minha falta é tão vil, tão desonesta,
Que seguirá viva talhada em minha testa.
“Sim, mesmo morto, a desonra frutifica
Como uma nódoa em meu áureo brasão;
Certa ignóbil marca na heráldica fica
A denotar-me autor dum disparate vão.
Minha posteridade, sob humilhação,
Maldirá meus ossos, e não verá pecado
Em desejar que não os houvera gerado.
“Que ganho eu, ganhando aquilo que intento?
Sonho, alento, uma fugaz alegria.
Vale bom minuto semana de tormento,
A eternidade não mais que ninharia?
Por uma uva às vinhas se destruiria?
Que mendigo, só para a coroa tocar,
Com o cetro se sentiria fustigar?
“Se Colatino sonha com o que estou a urdir,
Não acordará e, numa fúria exaltada,
Aqui virá a tal vilania impedir –
Tal cerco a sua núpcia, destarte circundada,
Labéu à juventude, idade ultrajada,
Tal morta virtude, tal mancha duradoura,
Cujo crime portará culpa imorredoura?
“Oh, que escusa criará minha invenção
Quando me acusares deste tão negro feito?
Língua calará, débeis juntas tremerão,
Olho escusará luz, sangrará falso peito.
Grande a culpa, maior é do medo o efeito,
E medo extremo, nem fugindo nem lutando,
Morre, tal covarde, em terror tiritando.
“Tivera-me Colatino filho ou pai morto,
Ou deitado emboscada contra minha vida,
Ou não fora ele amigo meu, este torto
Escusar-se-ia, sendo a esposa atingida
Como vingança ou paga na luta renhida;
Mas sendo meu parente, e amigo enfim,
Opróbrio e falta não têm escusa nem fim.
“Vergonhoso é; sim, se à tona o fato vem,
Odioso é; não é ódio adoração.
Pleitearei seu amor; mas ela é de outrem.
O pior é só recusa e repreensão;
Forte é meu ímpeto, vence a débil razão.
Quem teme sentenças ou frases repisadas
Será intimidado por cenas pintadas.”
Ei-lo, desgraçado, a manter discussão
De gélida consciência e ígnea vontade,
E aos bons pensamentos dispensa então,
Urdindo o pior juízo à prioridade,
Que num só momento tira de atividade
Todo intento puro, e consegue de fato
Que o que é vil passe por virtuoso ato.
Diz ele, “Ela me tomou a mão, angélica,
Em meus ávidos olhos indícios buscou,
Temendo ouvir más notícias da frente bélica
Onde seu amado Colatino ficou.
Oh, como o medo a suas cores avivou!
Já rubra como rosas em lençóis lançadas,
Já alva como os lençóis, rosas retiradas.
“E sua mão, pela minha estando constrita
Fê-la tremer, com seu receio de parceira;
E entristecida, mais rápido se agita
Até que do bem estar dele ela se inteira;
Com o que sorriu ela tão doce e faceira,
Que a tivera Narciso ali mesmo avistado,
E o amor próprio nunca o teria afogado.
“Por que pretexto ou escusa caçar então?
Cala o orador razão que Beleza aduz.
Pobre coitado lamente pobre infração;
Amor em coração medroso não produz.
O sentimento é capitão, e me conduz;
E com seu vistoso estandarte por cima,
O covarde luta, e nunca desanima.
“Fora, medo infantil, então! Debate, morra!
Respeito e razão com velhas rugas vão bem.
Contra o olho meu coração nunca concorra.
Discrição e sensatez ao sábio convêm;
Cabe-me a mocidade, que as manda ao além.
Desejo é meu piloto, meu prêmio, Beleza;
Por tal tesouro quem temeria a empresa?”
Tal trigo que o mato toma, medo devido
É quase morto por desabrido fervor.
Põe-se ele em marcha com bem aberto ouvido,
Pleno de esperança e de um tolo temor,
Ambos os quais, tal do injusto um servidor,
Molestam tanto em oposta persuasão
Que ora jura ele paz, ora invasão.
Na mente assenta-se a celestial visão,
E no mesmo banco se posta Colatino.
O olho que a mira confunde sua razão;
O olho que a ele enquadra, por mais divino,
Não se inclina a um julgamento tão malino,
Com pureza faz ao coração seu pedido,
Que uma vez corrupto toma o pior partido;
Suas forças vitais insufla ele agora,
Que, pelo porte de seu líder ufanadas,
Servem à lascívia, tal minutos à hora;
E como o capitão, ficam assoberbadas,
A mais baixo tributo que devido dadas.
Por réprobo desejo conduzido, insano,
Marcha ao leito de Lucrécia o lorde romano.
As trancas entre o quarto dela e a vontade,
Cada uma forçada, o posto desertam;
Mas no que abrem, denunciam-lhe a maldade,
O sorrateiro ladrão a pensar despertam.
Soleira e porta rangem e a ele entregam;
Doninhas noturnas põem-se então a gritar;
Ele se alarma, mas o medo vai buscar.
E, cada portal contra a vontade cedendo,
Ao pequenas gretas e fissuras passar,
Vento luta com tocha, a ele contendo,
E seus fumos em sua face vai lançar,
Extinguindo aquilo que estava a lhe guiar;
Mas quente coração tolo desejo inflama:
Bafeja um vento e dá à tocha nova flama.
E acesa estando, à luz vai observar
A luva de Lucrécia, d’agulha cravada.
Das palhas onde ela está ele a vai tomar,
E ao apertá-la, sente uma agulhada,
Como se a dizer “Esta luva a coisa errada
Não está afeita; volta neste momento.
Vês como dela é casto até o ornamento.”
Mas tais pobres entraves não o detiveram;
No pior sentido entende o impedimento.
Portas, vento, e luva, que o contiveram,
Toma por inconsequente constrangimento,
Traves que sustam do ponteiro o movimento,
Com duradouro estorvo seu avanço baldam
Até que o devido à hora os minutos saldam.
“Pois bem,” diz ele, “revezes são de esperar,
Tal à primavera ameaça a geada,
Para o gáudio, vinda a bonança, incrementar
E mais razão dar ao canto da passarada.
Com dor a coisa preciosa é conquistada:
Rochedos, vendavais, piratas e corais
Teme o mercador, até voltar rico ao cais.”
Agora chega ele à porta da alcova
Que o priva do paraíso imaginado,
E só uma tramela basta que remova,
A barrar o bento objeto buscado.
Pela impiedade de si tão apartado
Que à caça de sua caça então se lança,
Como foram os céus do pecado fiança.
Mas lá em meio a sua infrutífera prece,
Estando o poder eterno a solicitar
Que seu mal ao bom e belo sobrepujasse,
Que a ocasião pudesse auspiciar,
Aí mesmo estanca. Diz, “Devo deflorar.
As forças que invoco abominam o fato;
Como podem então me assistir no ato?
“Sejam Amor e Fortuna deuses e guias!
Apoia-me a vontade e a resolução.
Pensamentos não testados são fantasias.
Limpa o negro pecado a absolvição.
Vence o gelo do medo o fogo da paixão.
Celeste olho cerrado, noite brumosa
Cobre ao doce deleite a face vergonhosa.”
Dito isso, pinça a tramela a mão culpada,
E seu joelho a porta vai escancarar.
Dorme a pomba a ser pela coruja apanhada.
Traição sói agir, traidor escapar.
Aparta-se quem vê serpente se esgueirar,
Mas não teme quem, do sono nas profundezas,
Fica à inteira mercê de suas mortais presas.
Ei-lo malévolo o quarto a adentrar,
Fitando o leito ainda não conspurcado.
Fechado o dossel, põe-se ele a circundar;
Sedento par de olhos não fica parado.
Por sua traição, coração é logrado,
O qual sem demora dá à mão o comando:
Afastar a nuvem à lua ocultando.
Tal como o sol de ígneas pontas limpa o céu,
Enxota uma nuvem, e nos tira a visão,
Seus olhos começam, afastado o dossel,
A piscar, com luz maior cegados que estão.
Se porque dela tão fulgurante é o clarão
Que os ofusca, ou se desdouro é temido,
Cegos estão eles, e cerrados mantidos.
Oh, deviam nessa escura prisão morrer,
Teriam visto sua maldade cessar!
E Colatino Lucrécia voltara a ter,
Em impoluto leito sempre a repousar.
Mas devem se abrir, e o bento laço ceifar,
E pia Lucrécia a tal olhar vai render
Alegria, vida e seu mundano prazer.
Um lírio de mão sob rósea face escondido,
Furtando ao travesseiro o beijo a que jus faz,
O qual, porquanto irado, parece fendido,
Inchado em cada lado, a fugir da paz;
Entre cujos montes sua cabeça jaz.
Tal virtuoso monumento está deitada,
De lascivos olhos profanos admirada.
Fora da coberta estava a outra mão alva,
Sobre o lençol verde, seu branco imaculado
Era tal margarida de abril sobre a relva,
Com noturno orvalho de suor perolado.
Seus olhos, cravos, tendo a luz embainhado,
Docemente na escuridão a repousar
Até que se abram para o dia adornar.
Cabelos, fios d’oiro, com alento a brincar –
Ó pios devassos! Devassa piedade! –
Eis no mapa da morte a vida a triunfar,
Sombra da morte na viva mortalidade.
Em seu sono, uma à outra aumenta a beldade,
Como não fora entre elas luta renhida:
Vida vivesse na morte, morte na vida.
Seus seios, marfíneos globos venulados,
Dois mundos virgens que inconquistados restavam,
A jugo algum, salvo de seu lorde, atrelados,
E a ele por vero juramento honravam.
Tais mundos em Tarquino ambição renovam,
O qual, como torpe usurpador, vai-se pôr
A deste belo trono apear seu senhor.
Que via ele sem vivamente notar?
E, notando, fortemente não desejava?
Contemplando, se punha todo a idolatrar,
E no seu desejo o tenaz olho folgava.
Com mais do que admiração admirava
Alabastrina pele, veios azulados,
Lábios de coral, níveo queixo furado.
Tal feroz leão festeja a presa abatida,
Na conquista satisfeita a fome aguçada,
Paira Tarquino sobre a alma adormecida,
Fúria carnal na contemplação mitigada –
Minguada, não supressa; pois, nessa mirada,
Seu olho, que por ora a tal motim põe peias,
A um maior tumulto tenta suas veias.
E elas, soldados pro saque amontoados,
Vassalos tenazes vilezas desempenham,
Em sangrenta morte e estupro refestelados,
Choro infantil e gemido de mãe desdenham,
Arvoram-se d’orgulho, o ataque esperam.
Logo seu coração pulsa, alarme dando,
A prosseguir em sua vontade mandando.
Coração rufa, exorta o olho que arde;
Olho que transmite o comando a sua mão;
Mão, como que orgulhosa em tal dignidade,
Fúmea d’orgulho, marcha a fincar seu pendão
No seio nu, de toda a terra o coração,
Cujas filas de veias, pela mão galgadas,
Deixam torres roliças destroçadas, pálidas.
Elas, ao calmo gabinete recolhidas
Onde está a cara senhora do reinado,
Dizem-lhe que é temivelmente acometida,
E assustam-na com confusão de seus brados.
Ela, assombrada, rompe os olhos selados,
Que, espreitando a tal tumulto contemplar,
São ofuscados pela tocha a flamejar.
Imaginai alguém na noite sepulcral
Do sono inerte em pesadelo despertar,
Que pensa ter visto aparição abismal,
Cujo lúgubre aspecto faz tiritar.
Que terror! Mas dela é um maior pesar:
No seu sono perturbada, enxerga alerta
A visão que corrobora ameaça incerta.
De mil temores envolta e desarranjada,
Jaz ela a tremer tal pássaro abatido.
Não ousa olhar; mas surgem na vista cerrada
Figuras cambiantes, seu olhar ferido.
Tais sombras forja um cérebro enfraquecido,
Que, raivoso por da luz o olho fugir,
Na escuridão tristes visões sói infligir.
Pousa ainda no seio dela sua mão,
Rude aríete, marfíneo muro a bater;
Sente o coração tenso, pobre cidadão,
Vitimando a si mesmo, subir e descer,
Vibrar-lhe o torso, sua mão junto mover.
Dá-lhe isso mais fúria, menos piedade,
Pr’abrir a fenda e invadir doce cidade.
Primeiro soa sua língua, tal trombeta,
Ao débil inimigo uma negociação,
Que do alvo lençol alvo queixo projeta
A saber de tal abrupto alarme a razão,
O que ele mostra por sua muda ação.
Mas ela se põe veemente a insistir:
Cor alguma tal negrume vai recobrir.
Responde ele: “Das tuas faces a cor,
Que mesmo por ira faz lírio desbotar,
Faz corar a rubra rosa de dissabor,
Vai me defender e meu amor relatar.
Com tal cor no estandarte vim escalar
Teu forte nunca conquistado; culpa tua,
Pois este teu olhar ao meu te atraiçoa.
“Assim te previno, se queres censurar:
A esta noite te apresou tua beleza;
Deves, paciente, meu desejo abrigar,
Desejo a te marcar da natura a riqueza,
Que busquei conquistar com toda fortaleza.
Se reproche e razão o podem abater,
Tal luzente beleza fá-lo reerguer.
“Vejo que estorvos à empresa surgirão;
Sei quanto espinho à rosa que cresce defende;
Penso ser o mel guardado com um ferrão;
Isso já de antemão o senso compreende.
Mas desejo é surdo, conselho não entende;
Tem apenas um olho pra beleza ver
E adora o que vê, contra lei ou dever.
“Eu debati, dentro de minh’alma a sondar,
Quanto mal, opróbrio e sofrimento suscito,
Mas nada pode ao curso da atração guiar
Ou deter de seu passo o furor inaudito.
Sei que ao ato segue sempre o pranto contrito,
Reprovação, desdém, mortal inimizade,
Ainda assim luto em buscar a indignidade.”
Dito isso, sabre romano vai erguer,
Que, tal falcão pairando no céu portentoso,
Sombra que aves abaixo faz recolher,
Cujo bico a morte ameaça, tortuoso,
Assim jaz sob seu gládio insultuoso
Pobre Lucrécia, ao que diz a escutar,
Tal ave a guizos de falcão, a tiritar.
“Lucrécia,” diz, “devo esta noite possuir-te.
Se negares, a força há de desbravar,
Pois em teu leito intento eu destruir-te.
Feito isso, abato um escravo vulgar,
Pra honra matar-te com da vida o cessar,
E penso pô-lo em teus braços falecidos,
Jurando tê-lo abatido ao ver-vos unidos.
“Tal que teu marido vivo será, porém,
O alvo do escárnio de todo olho aberto;
Parentes, cabisbaixos ante tal desdém;
Prole suja na bastardia, nome incerto.
E tu, autora de seus oblóquios decerto,
Terás tua transgressão em rimas citada,
Nos tempos vindouros por crianças cantada.
“Mas se cederes, sigo teu secreto amigo.
A falta ignota é tal como a ideia abortada;
Pequeno mal feito com um grande e bom fito
Segue uma prática válida e adotada.
A essência venenosa sói ser mesclada
Num composto puro; sendo assim aplicado,
Seu veneno em seu efeito é purificado.
“Então, pelo bem de crianças e marido,
Atende a meu pleito, não lhes dê em herança
O opróbrio que não lhes será removido,
Mancha nunca equecida, eterna presença,
Pior que marca de escravidão ou nascença,
Pois sinais que na natividade se ganha
São faltas da natura, e não própria infâmia.”
Aqui, um basilisco de fatal olhar,
Ergue-se ele numa pausa viperina;
Ela, pura piedade a representar,
Corça branca presa da ave de rapina,
Clama, numa selva onde lei não se ensina,
À bruta besta que direito desconhece
E nada além do vil apetite obedece.
Mas ao ameaçar o mundo turva nuvem,
Em sua bruma altos montes escondendo,
Do negro ventre da terra a lufada vem,
Que sopra tais píceos vapores lá crescendo,
Sua súbita precipitação contendo;
À pressa ímpia a fala dela vai frear:
Plutão irado dorme se Orfeu tocar.
Mas o vil gato noturno brinquedo faz,
Débil rato arfa a sua pata sujeito.
Seus modos tristes nutrem a ânsia voraz,
Um vórtice crescente nunca satisfeito.
Ouvidos recebem as preces, mas o peito
Não permite que penetre clamor ou reza;
Chuva erode pedra, pranto lascívia entesa.
Mirada penosa é tristemente fixada
Na enrugada face dele, impiedosa.
Simples eloquência de suspiro mesclada,
O que faz a oratória mais graciosa:
Ponto muita vez interrompe sua prosa,
E tanto em meio à frase a voz se desarruma
Que duas vezes tenta para falar uma.
Ela roga por Jove todo-poderoso,
Por cavalaria, berço, doce amizade,
Por pranto descabido, amor do esposo,
Por sacra lei humana, comunal verdade,
Por céu e terra, sua dupla autoridade,
Que se retire ele a seu leito emprestado
Tendo à honra, não ao vil desejo curvado.
Diz ela, “Não retribuas a acolhida
Com tão negra moeda quanto planejada;
Não turves a fonte que a ti deu bebida.
Não estragues coisa que não é consertada.
Cessa a mira maligna antes da flechada;
Não é caçador aquele que o arco entesa
A fazer a gama imatura sua presa.
“Meu esposo teu amigo é, poupa-me.
Tu mesmo és forte; por ti mesmo larga-me.
Eu mesma sou fraca; livre pois deixa-me;
Não semelhas engano; mas enganas-me.
Furacão de suspiros tenta levar-te.
Se homem, rogando mulher, já foi movido,
Sê por tais lágrimas, suspiros e gemidos,
“Os quais juntos, tal o oceano em tormento,
Batem na perigosa rocha do teu peito,
Para abrandá-lo com contínuo movimento,
Pois pedra se dissolve em água com efeito.
Oh, se mais duro que pedra não foste feito,
Derrete com tais lágrimas, tem compaixão!
Tenra clemência abre férreo portão.
“Como foras Tarquino te dei tratamento.
Tomaste sua forma a lhe fazer vileza?
A toda legião dos céus faço lamento:
Fazes-lhe mal à honra, dano a sua alteza.
Não és tal pareces; se de igual natureza,
Não pareces então tal és, um deus, um rei;
Pois tudo devem governar deuses e reis.
“Como teu opróbrio dará depois sementes,
Brotando teus vícios antes da primavera!
Caso predestinado um tal ultraje tentes,
Que não ousarás quando fores rei à vera?
Coisa ultrajante alguma, disso te inteira,
Vinda de vassalos pode ser removida;
Malfeitos de reis, pois, restam além da vida.
“Serás amado só por medo com tal ato,
Mas temido por amor é feliz monarca.
Vis infratores deves tolerar de fato
Quando da infração virem em ti a marca.
Que seja por medo disto, desejo aplaca,
Pois príncipes são espelho, livro, escola,
Onde olho súdito aprende, lê, olha.
“Serás escola em que Lascívia aprenderá?
Deve-se em ti ler tal vergonha ensinada?
Serás espelho no qual ela encontrará
Pecado autorizado, culpa sancionada,
Para escolher desonra por ti mostrada?
Pioras o reproche à velha exaltação,
E tornas o bom nome reles cafetão.
“Comandas? Por Ele que dá autoridade,
Comanda o desejo quando se rebelar.
Não saques sabre a guardar iniquidade,
Conferido a ti para tal prole matar.
Teu papel real como vais realizar,
Se, pela tua falta, disser vil pecado
Que aprendeu a pecar por ti ensinado?
“Pensa então que seria espetáculo vil
Enxergar noutro tua infração presente.
O homem sua falta quase nunca viu;
Suas transgressões abafa parcialmente.
Tal culpa num irmão verias mortalmente.
Oh, quão enredados em infâmias estão
Quem de seus malfeitos afastam a visão!
“A ti, a ti apelam tais mãos levantadas,
Não à luxúria sedutora em teu encalço.
Pleiteio a volta da majestade exilada;
Que venha, más ideias mande ao cadafalso.
Vero respeito capture desejo falso,
Remova a turva bruma do fraco olho teu:
Vê teu estado, compadece-te do meu.”
“Basta”, diz ele: “minha maré, desmesura,
Não vira, só se enche mais com este empate.
À flâmula se assopra, fogaréu perdura,
E com vento em maior fúria se debate.
O curso que dívida diária abate
Com seu salgado soberano, apressado,
Soma-lhe bojo, gosto segue inalterado.”
“Tu és”, diz ela, “um mar, um rei soberano,
E vê em teu pélago infindo caírem,
Turvos, luxúria, desonra e desgoverno,
Ao oceano de teu sangue a conspurcarem.
Se tais mesquinhos males mudarão teu bem,
Teu mar no ventre duma poça está imerso,
Não é a poça que em teu mar está dispersa.
“Tais escravos serão reis, tu escravo deles;
Tu de nobre a vil, eles com vileza alçados;
Tu lhes dá vida, tua tumba sujam eles;
Tu por eles, eles por te armar odiados.
Maior do menor não sói ser obliterado;
Cedro ao pé de reles moita não se inclina,
Mas moita baixa à raiz do cedro definha.
“Que teus pensamentos pois, teus vassalos chãos…”
“Basta”, diz ele. “Céus, não quero te escutar.
Cede a meu amor. Ou ódio forçado, então,
E não toque d’amor, vai te dilacerar;
E depois, por despeito te penso levar
Ao leito ordinário de algum reles criado,
Para ser teu par neste vergonhoso fado.”
Dito isso, dá ele com o pé no lume:
São luz e lascívia inimigos de morte.
Opróbrio se esconde em noturno negrume;
Quanto menos visto, um tirano mais forte.
Lobo pega a presa; grita a ovelha sem sorte,
Até que, com sua lã a voz controlada,
Sepulta os gritos na doce boca fechada.
Pois com o linho noturno que lhe vestia
Ele lhe acurrala os clamores lamentosos,
Refresca seu rosto nas lágrimas mais pias
Que olhos puros já verteram lastimosos.
Oh, que a lascívia suje leitos virtuosos!
Cujas manchas, se as purificasse o pranto,
Choraria para sempre no mesmo canto.
Mas ela perde coisa mais cara que a vida,
E ele ganha o que sabia fugidio.
Tal laço forçado força mágoa seguida;
Tal gozo breve traz dor por meses a fio;
Tal quente desejo se torna desdém frio.
Pura Castidade dos bens é desprovida,
E Lascívia, ladra, sai mais empobrecida.
Tal como o falcão ou o cão alimentados,
Inaptos ao olfato ou ágil ação,
Seguem sem pressa, ou deixam mesmo de lado
A presa por natura de apreciação;
Tal de farto Tarquino é a condição.
Paladar deleitado, a sentir azia,
Preda o desejo, que de predar vivia.
Oh, pecado mais fundo do que senso infindo
Pode apreender na muda imaginação!
Ébrio Desejo vomita tudo ingerido,
E só assim vê a própria abominação.
Se firme a Lascívia, nenhuma exclamação
Pode-lhe fogo deter, desejo encilhar,
Até pertinácia tal mula se cansar.
Então com o rosto encovado e descorado,
Olho baço, cenho fechado, marcha lenta,
Débil Desejo, covarde, e bem comportado,
Tal como um pedinte falido se lamenta.
A carne tesa, Desejo à Graça enfrenta,
De carne se serve; decaída ela então,
O culpado rebelde clama remissão.
Assim se passa ao culposo lorde de Roma,
Tendo tal façanha ardentemente buscado,
Pois agora contra si sentença proclama,
Que estará através dos tempos desgraçado.
Mais, belo templo de su’alma avariado,
A cujas ruínas tropas de aflições vêm
Saber se a princesa maculada está bem.
Diz ela, súditos em torpe insurreição
Derrubaram sua muralha consagrada,
Por sua mortal culpa pondo em sujeição
Sua imortalidade, encarcerada
Na morte em vida e na dor perpetuada,
O que em presciência sempre dominou,
Mas previsão a vontade não lhes obstou.
Assim cogita noite adentro a escapar,
Vencedor cativo que perde tendo mais,
Levando a chaga que nada pode curar,
Cicatriz que, malgrado melhora, não sai,
Deixando a presa mais flagelada em seus ais.
Ela sustém carga de lascívia deixada,
E ele fardo de uma mente culpada.
Ele tal cão ladrão se esgueira abatido;
Ela tal ovelha lassa põe-se a arfar.
Ele se maldiz pelo crime cometido;
Ela, aflita, unhas na carne a cravar.
Ele foge lerdo, medo e culpa a levar;
Ela fica, à fatal noite queixas faz;
Ele corre, condena seu gozo fugaz.
Ele de lá se afasta um sóbrio convertido;
Ela lá queda, réproba sem remissão.
Ele com pressa espera o dia amanhecido;
Ela roga do dia não ter mais visão.
“Dia”, diz, “delata a noturna má ação;
Meus olhos francos nunca haviam praticado
Acobertar faltas com cenho calculado.
“Todo olho vê, não escapam de pensar,
O mesmo infortúnio por eles contemplado,
E assim optariam no escuro estar,
Sem ter o pecado oculto seu divulgado.
Pois eles culpa exporão no pranto chorado,
E me gravarão, como a água ao aço rói,
Na face a dor impotente que me corrói.”
Ei-la contra repouso e sossego bradando
Comandando aos olhos fechar eternamente.
Acorda o coração o peito golpeando
E o manda saltar, achar possivelmente
Algum peito mais puro p’ra tão pura mente.
Assim expressa o rancor, louca em seu pesar,
Por negra noite tudo poder abafar.
“Ó Noite algoz da paz, inferno contrafeito,
D’opróbrio triste notário e escrivão,
Negro palco a tragédias e assassínio abjeto,
Da culpa ama, caos que é do pecado irmão,
Cega cafetina, porto à difamação,
Caverna mortal, astuto conspirador
Com traição calada e com violador!
“Ó odiosa Noite de bruma espectral,
Culpada em meu crime impossível de curar,
Perfila névoas contra a luz oriental,
Combate do tempo seu curso salutar;
Ou se permitires que o sol possa galgar
Altura habitual, sem que tenha deitado,
Cinge de nuvens venenosas seu doirado.
“Com podres fumos viola o ar matinal;
Que adoeçam seus nauseantes alentos
À vida da pureza, belo supernal,
Antes de atingir lasso meridional tento;
Tão densos marchem teus vapores nevoentos
Qu’em fúmeas tropas sua luz sufocada
Deite ao meio-dia, noite eterna implantada.
“Fosse Tarquino a Noite, não cria sua,
A rainha d’argêntea luz mancharia;
Suas luzentes aias, que ele enodoa,
Do seio da Noite não mais espreitariam.
Assim parceiras em minha dor eu teria,
E par na aflição aflição alivia,
Do romeiro a charla a romaria abrevia.
“Já eu ninguém tenho p’ra comigo corar,
Com braços cruzados e cabeça a pender,
Tapar a fronte pra infâmia ocultar,
E só eu devo, só, cá sentar a sofrer,
A terra temperar com salmoura a chover,
Mesclar fala a pranto, pesar a lamento,
Pobre fugaz marco de perene tormento.
“Ó Noite, fornalha de fétido vapor,
Que o Dia cioso não contemple o rosto
Que sob teu negro manto acobertador
Imodesto jaz martirizado em desgosto!
Mantém sempre posse de teu soturno posto,
Tal que faltas em teu reinado cometidas
Tenham sepulcro comum em ti escondidas.
“Ao Dia linguarudo não me apresentes.
A luz mostrará no cenho meu estampado
O conto duma castidade decadente,
Ímpia quebra do voto na boda firmado.
Sim, mesmo os que não saberiam, iletrados,
Decifrar aquilo em doutos livros escrito,
Citarão só me vendo o abjeto delito.
“A ama a ninar contará a minha história,
Assustando o bebê ao Tarquino citar.
O orador, para adornar sua oratória,
Minha desgraça à de Tarquino há de somar.
Menestréis de festim, minha queda a cantar,
Mostrarão aos ouvintes com verso ferino
Que Tarquino mal me fez, eu a Colatino.
“Mantém meu nome, de boa reputação,
Por amor de Colatino, imaculado.
Isto tornado tema de disputação,
Definham ramos alhures enraizados;
É labéu imerecido a ele imputado,
Tão inocente que é do próprio destino
Quanto eu, até aqui, pura a Colatino.
“Ó vergonha oculta, invisível desgraça!
Ó chaga insensível, cicatriz no brasão!
Colatino traz na face gravada a tacha,
E Tarquino lerá de longe a inscrição,
Como teve em paz, não em guerra, o aleijão.
Ai, quantos têm tal vergonhoso ferimento,
Que quem fere, não eles, tem conhecimento!
“Se, Colatino, tua honra me foi dada,
De mim ma tirou forçosamente um ladrão.
Sem honra, em abelha-zangão transformada,
Nada resta da perfeição do meu verão,
Roubada e saqueada em vil usurpação.
Na colmeia frágil a vespa penetrou
E o mel da tua abelha tão casta chupou.
“Mas tua honra naufragar é culpa minha;
Mas por tua honra eu o devia abrigar.
Rechaçá-lo não podia, se de ti vinha,
Pois teria sido desonra o desdenhar.
Mais, de fadiga estava ele a se queixar,
Virtude a citar. Ó mágoa inesperada,
Virtude ser por tal demônio profanada!
“Por que lagarta invade o virginal botão?
Ou cuco nasce o ninho do pardal tomando?
Ou sapo infecta fontes com charco malsão?
Ou tirana loucura espreita em peito brando?
Ou reis desobedecem seu próprio comando?
Mas não há perfeição de tamanha inteireza
Que não se polua com alguma impureza.
“O homem idoso que amealha seu ouro
Sofre de cãibras, gotas e padecimento,
E mal tem olhos p’ra contemplar seu tesouro,
Tal Tântalo jaz em eterno sofrimento,
E em vão estoca a safra de seu talento;
Outro prazer não tem do que pôde ganhar
Que não tormento por isso a dor não curar.
“Então ele o tem quando não o pode usar
E deixa-o ser pela sucessão tomado,
Que orgulhosa não tarda a dele abusar.
O pai fraco, eles fortes demasiado
Para manter bento ouro amaldiçoado.
Doces desejados ao azedume passam
No preciso momento em que nossos se façam.
“Ventos cruéis a primavera tenra atacam;
Más ervas se enraízam junto à flor que apraz;
A serpente chia onde pássaros cantam;
Se Virtude faz Iniquidade desfaz.
Nada de bom seguro nas nossas mãos jaz
Sem que a mal acompanhada Oportunidade
Mate-lhe ou vida ou então qualidade.
“Ó Oportunidade, tens culpa imensa!
Tu operas do traidor a traição;
Tu pões o lobo onde pegue ovelha infensa;
Planeje-se pecado, mostras estação.
És tu que atacas direito, lei e razão,
E em tua cela escura, sem visto ser,
Fica Pecado, alma que passa a deter.
“Tu fazes a vestal romper a castidade;
Tu sopras fogo e temperança é derretida;
Tu sufocas retidão, tu matas verdade.
Tu, incitadora, cafetina sabida,
Tu plantas escândalo e arrasas vidas.
Tu, raptora, traidora, tu, ladra espúria,
Teu mel vira fel, e teu júbilo lamúria.
“Teu prazer secreto vira aberto enxovalho,
Teu banquete privado, público jejum,
Teus títulos lisonjeiros, nome em frangalhos,
Tua língua doce, amaro gosto ruim.
Teu fogo de palha vai a lugar nenhum.
Como pode, vil Oportunidade, então,
Tão má sendo, procurar-te tal multidão?
“Quando amiga do simples queixoso serás
E levá-lo-ás aonde obtenha graça?
Quando a encerrar brigas tempo empregarás?
Ou livrarás a alma presa na desgraça,
Trarás cura ao enfermo, cuja dor não passa?
Pobres, coxos, cegos chamam-te e se prostram,
Mas Oportunidade nunca se lhes mostra.
“Paciente morre, médico repousando;
Órfão passa fome, opressor bem comendo;
Justiça em banquetes, viúva chorando;
Assistência brinca, infecção se estendendo.
Não dás um minuto a ato reverendo.
Ira, traição, estupro, fúria d’algozes,
São-lhes escudeiras tuas horas atrozes.
“Quando Verdade e Virtude contigo têm,
Mil percalços mantêm teu auxílio afastado.
Elas te pagam, Pecado não dá vintém;
Ele vem gratis e tu vais, de mui bom grado,
Tanto ouvir quanto atender o que for falado.
Se não, meu Colatino teria acorrido
Em vez de Tarquino, mas foi por ti contido.
“Culpada és de assassínio e de roubo,
Culpada de perjúrio e de corrupção,
Culpada de traição, fraude, e engodo,
Culpada d’incesto, tal abominação –
Uma cúmplice pela própria inclinação
Em todo pecado passado e por passar,
Da criação a do juízo o estalar.
“Disforme Tempo, comparsa de feia Noite,
Pérfido correio, portador da dor vil,
Da mocidade algoz, servo do mau deleite,
Do mal guarda, d’erro mula, do bom ardil!
Tu nutres e matas tudo que já existiu.
Ó, escuta-me, mutável Tempo abusado!
Sê de minha morte, se do crime, culpado.
“Por que Oportunidade, tua criada,
Traiu as horas que me deste a repousar,
Sustou-me as fortunas, deixou-me atada
A termo eterno de mágoas nunca a cessar?
Ofício do Tempo é aos ódios findar,
Roer o erro pela opinião criado,
Não gastar o dote dum leito sancionado.
“Glória do Tempo é apaziguar reis em briga,
Revelar falsidade e dar ao vero lume,
Conferir o selo do tempo à coisa antiga,
Despertar a manhã e guardar o negrume,
Tratar mal ao mau até que ao bem ele rume,
Arruinar aos edifícios insolentes,
E poeirar suas torres d’oiro luzentes,
“Esburacar a imponentes monumentos,
Cevar o oblívio com decomposição,
Manchar velhos livros e mudar seus contentos,
Tirar penas das asas do corvo ancião,
Secar velhos carvalhos, nutrir broto chão,
Estragar antiguidades d’aço forjado,
E dar à roda da Fortuna giro apressado,
“Mostrar à avó crias de sua criança,
Tornar menino homem, e homem menino,
Matar o tigre que vive pela matança,
Domar o unicórnio e o leão ferino,
Rir do que engana a si mesmo de tão ladino,
Alegrar lavrador com safras abundantes,
E gastar com gotículas rocas gigantes.
“Por que em tua romaria causas danos,
A menos que voltasses para recompor?
Um parco minuto p’ra trás em muitos anos
Põe mil milhares d’amigos a teu dispor,
Dando siso a quem empresta a mau pagador.
Oh, uma hora que voltasses teu relógio,
Tal tormenta evitaria, e meu naufrágio!
“Tu, perene lacaio da Eternidade,
Detém a Tarquino com alguma desdita.
Inventa extremos além da extremidade
E fá-lo maldizer esta noite maldita.
Que feios vultos firam sua torpe vista,
E do mal cometido a dura lembrança
Cada arbusto um demônio disforme faça.
“Perturba seu sono com insone temor,
Aflige seu leito com planger acamado.
Que lhe ocorra tudo que de contrário for
Tal que se queixe, sem ser por ti lamentado.
Lapida-o com duros corações pedrados,
E que mulheres doces percam a doçura,
Mais bravas com ele que tigres na bravura.
“Tempo tenha de os cabelos arrancar-se,
Tempo tenha de contra si gritar irado,
Tempo tenha de do Tempo desesperar-se,
Tempo tenha de ser escravo detestado,
Tempo tenha de ver mendigo invejado,
E tempo de ver quem vive de esmolar
Desdenhar de desdenhados restos lhe dar.
“Tempo tenha de ver amigos oponentes,
E pândegos caçoarem, rirem aos surtos.
Tempo tenha de ver que o tempo é indolente
Em tempo de dor, e quão célere e curto
Seu tempo de folguedo, tempo de desporto;
E que sempre seu indelével ato escuso
Tempo tenha de chorar do tempo seu abuso.
“Ó Tempo, tutor de bem e mal igualmente,
Ensina a xingar quem tão mal foste ensinar.
Que a própria sombra enlouqueça o insolente,
Ele mesmo a si mesmo busque matar.
Tais vis mãos tal vil sangue deve derramar,
Pois quantos tal chão ofício escolherão,
Execrado verdugo de escravo tão chão?
“Tão mais chão é ele, de um rei sendo filho,
Sujar seu porvir com atos degenerados.
Mais poder no homem, mais poder há naquilo
Que lhe traz honra, ou lhe faz ser odiado;
Grande escândalo a grande posto é ligado.
Lua encoberta logo se faz perceber,
Mas estrelinhas se ocultam ao bel prazer.
“Corvo pode asas negras enlamear
E sair voando sujo, ninguém veria,
Mas se o mesmo níveo cisne desejar,
Mancha n’argêntea penugem ficaria.
Lacaios são trevas, reis glorioso dia.
Mosca voa a toda parte sem ser notada,
Mas águia é de todo olho contemplada.
“P’ra longe, vãs palavras, servas dos estultos.
Sons sem proveito algum, débeis arbitradoras!
Ocupai-vos nas lições dos jurisconsultos;
Debatei onde ao debatedor sobrem horas;
De trêmulas partes sede mediadoras.
Já eu, não movo palha pelo argumento,
Meu caso estando além de legal provimento.
“Em vão censuro eu a Oportunidade,
Ou Tempo, Tarquino e Noite malfadada.
Em vão busco chicana contra a indignidade.
Em vão luto ante desdita confirmada.
Tal inútil bruma palavrosa é baldada.
O remédio mesmo que bem pode fazer
É meu sangue conspurcado fazer verter.
“Pobre mão, por que o decreto te faz tremer?
Honra a ti mesma ao me livrar desta infâmia,
Pois se morro, minha honra em ti vai viver ,
Mas se vivo, vives tu em minha má fama;
Se não pudeste defender à leal dama,
E receaste o vil agressor arranhar,
Mata a ti e a ela por capitular.”
Dito isso, do leito devassado salta,
A exaltado recurso mortal achar,
Mas não é cá matadouro, e meio falta
De outra passagem ao alento cavar,
Que força os lábios, e vai-se obliterar
Como vapor do Etna, no ar dissipado,
Ou aquele que exala canhão disparado.
“Em vão,” diz, “vivo eu, e em vão tento obter
Bom meio de ao infortúnio dar final.
Temi pelo sabre de Tarquino morrer,
Contudo busco faca para fim igual.
Mas quando temi era uma esposa leal;
Sigo sendo. – Oh, não, não pode ser assim;
Este título Tarquino tirou de mim.
“Oh, foi-se aquilo que a buscar viver me instou,
E portanto não temo se a morte me chama.
Ao limpar tacha com morte, ao menos dou
À farda da calúnia emblema de fama,
Uma vida mortal à imortal infâmia.
Pobre inútil amparo, tesouro roubado,
Queimar a arca inculpe onde vem guardado!
“Bem, bem, meu Colatino, tu não provarás
O sabor acre da verdade violada;
Não arruinarei tua afeição veraz
Lisonjeando-te com jura já quebrada.
Este enxerto bastardo jamais dará nada;
Não jactar-se-á quem faz teu tronco corrupto
De seres pai embevecido de seu fruto.
“Tampouco a ti sorrirá com senso escondido,
Nem rirá com companheiros de teu estado.
Saberás que teu cabedal não foi vendido
Por ouro vil, mas portão afora roubado.
Quanto a mim, eu sou a senhora do meu fado
E minha transgressão não será superada
Até na morte remida a falta forçada.
“Não vou te envenenar com meu labéu retinto,
Nem cobrir meu lapso de escusas forjadas;
Minha heráldica negra em pecado não pinto,
Ocultando abusos da falsa madrugada.
Minha voz tudo dirá; vistas, represadas,
Tal a fonte montês que é do vale a fartura,
Jorrarão puros rios a purgar sina impura.”
Com isso, Filomel plangente terminou
Afinado chilro de noturno pesar,
E solene noite lenta e triste baixou
Ao feio inferno; vede, a alba a corar
Empresta luz ao olho que a queira tomar.
Mas se envergonha de ver Lucrécia nublada
E seguiria assim na noite clausurada.
Dia revelador sonda todos recessos
E parece indicar onde jaz a chorar,
Ao qual diz a soluçar: “Ó olho dos olhos,
Rondas minha janela? Deixa de espiar.
Frustra com teus raios os olhos a sonhar.
Não marques meu cenho com tal luz penetrante:
Ao dia não cabe o feito noite reinante.”
Assim implica com toda coisa mirada.
Tristeza é criança temperamental,
E emburrada estando, nada lhe agrada.
Velha dor bem se porta, não infante mal:
Duração doma uma; o outro, feral,
Como o mau nadador que afunda sempre mais,
Com grande esforço se afoga por incapaz.
Ela, então, imersa num mar de aflição,
Alterca-se com cada coisa contemplada,
Consigo compara toda tribulação;
Qualquer objeto reforça a dor extremada:
Cada um que passa, com outro é confrontada.
Às vezes a dor é muda, silenciosa;
Às vezes é louca e muito palavrosa.
Pássaros que entoam o gáudio matinal
Agravam seus ais com a doce melodia,
Pois júbilo abre a chaga de todo mal;
Tristes almas morrem n’alegre companhia.
Agonia busca trato com agonia;
Mágoa verdadeira é bem remunerada
Se de sua semelhante simpatizada.
“É morte dupla afogar praia atingida;
Dez vezes fome é fome vendo alimento;
Ver o unguento faz doer mais a ferida;
Mais sofre na ajuda o grande sofrimento.
Profundos males são um rio opulento,
Que se retido, a margem é inundada;
É sem lei ou limite dor menosprezada.
“Aves trocistas,” diz, “sepultai tal canção
No oco do túrgido peito emplumado,
Sede mudos silentes à minha audição;
Nega fecho ou pausa meu dissonante estado.
Triste anfitriã nega alegre convidado.
Trinai lestas notas a ouvido que ria;
Lágrimas por compasso, dor quer elegia.
“Vem, Filomel, que cantas de violação,
Faz meu cabelo desfeito um triste recanto.
Tal a terra fria chora tua aflição,
Eu a cada triste verso verto meu pranto,
Profundos suspiros por acompanhamento;
Pois tal bordão zumbirei eu sobre Tarquino,
Sobre Tereu mostra da arte teu domínio.
“E se contra o espinho teces a canção
Para teus males avivar, pobre de mim,
Para bem te imitar, contra meu coração
Porei a faca, assustando o olho assim;
Se um piscar, o outro cai e tem seu fim.
Tais técnicas, como os trastes dum instrumento,
Afinarão nossas cordas com sofrimento.
“E se, pobre pássaro, não cantas de dia,
Acanhado talvez do olho a contemplar,
Um escuro deserto, distante da via,
Que não arda em calor nem possa congelar,
Descobriremos; e lá hemos de cantar
Às feras lamentos, mudar-lhes a natura.
Homens sendo bestas, que seja a besta pura.”
Tal pobre cervo em pânico, paralisado,
Decidindo tenso p’ra que lado fugir,
Ou alguém envolto em labirinto intrincado,
Que facilmente não vê modo de sair,
Assim está um motim a lhe consumir,
Viver ou morrer, qual dos dois é preferível:
Vida é opróbrio e morte é repreensível.
“Matar a mim mesma,” diz, “ora que seria
Senão corpo e também alma em poluição?
Quem perde metade mostra maior porfia
Do que quem tudo lhe leva a destruição.
Uma mãe faz cruel experimentação
Se, dois bebês tendo, levando a morte um,
Assassina o outro e cuida de nenhum.
“Meu corpo ou minh’alma, a qual mais eu prezava
Quando puro um, outra de aspecto divino?
O amor de qual a mim mesma mais tocava
Quando reservados ao céu e a Colatino?
Ai de mim, tire-se a casca do alto pino,
As folhas morrem e a seiva é ressequida;
Assim passa a minh’alma, casca removida.
“Sua casa roubada, sono interrompido,
Sua quinta pelo inimigo atacada,
Seu sacro templo sujo, roto, corrompido,
De ousada infâmia totalmente cercada.
Então de impiedade não seja acusada,
Se neste forte conspurcado um furo faço
Pelo qual esta alma aflita tenha passo.
“Mas não morrerei até que meu Colatino
Tenha ouvido a causa do fim precipitado,
Tal que possa jurar, com meu triste destino,
Vingança àquele que me fez ceifar meu fado.
Meu sangue sujo a Tarquino será legado,
Por quem o corrompeu será ele vertido,
Tal fora a ele em meu testamento devido.
“Minha honra lego à lâmina afiada
Que fere esta tão desonrada carcaça.
É honra abreviar a vida desonrada;
Uma viverá, se a outra ao além passa.
Das cinzas da vergonha minha fama nasça,
Pois mata a censura meu fatal desenlace;
Morto meu opróbrio, minha honra renasce.
“Caro senhor da cara joia que perdi,
Que legado poderei eu te oferecer?
Minha resolução, amor, compete a ti,
Por cujo exemplo tu vingado possas ser.
Como tratar Tarquino, em mim podes ler;
Eu, tua amiga, mato a mim, tua rival,
E por mim a falso Tarquino usa igual.
“Breve resumo de meu testamento segue:
Minha alma e meu corpo aos céus e ao chão;
Minha resolução, esposo, a ti eu legue;
Minha honra caiba à faca da incisão;
A quem fama danou, minha humilhação;
Reparte toda minha fama que viver
Com quem viver, e mal de mim não conceber.
“A ti, Colatino, meu espólio cometo;
Que lapso cometi eu para que o vejas!
Meu sangue lava a infâmia de meu feito;
Do torpe ato em vida, graça o fim enseja.
Não fraquejes, fraco coração, diz ‘Que seja’.
Cede a minha mão; mão sobre ti dominante.
Morto tu, morrem ambos, ambos triunfantes.”
Tal mortal plano tendo feito desolada,
Secando perlas salobres d’olho luzente,
Voz desafinada chama rouca a criada,
Cuja obediência acode prontamente,
Pois dever voa tão ligeiro quanto a mente.
O rosto de Lucrécia a moça remete
A prados invernais se a neve ao sol derrete.
À senhora dá um bom-dia recatado
Com língua mansa, vera marca decorosa,
E ajusta à dor da patroa ar contristado,
Pois seu rosto vestia libré lamentosa,
Mas não ousava perguntar audaciosa
Por que seus dois sóis tão encobertos estavam,
Nem por que as faces em pesar se banhavam.
Mas tal chora a terra, o sol a se deitar,
Cada flor úmida olhos que se derramam,
Assim a moça em fartas gotas vai molhar
Seus olhos rubros, pois simpatia reclamam
Aqueles claros sóis postos no céu da ama,
Que a luz extinguem no mar de ondas salgadas,
Fazendo a moça chorar tal noite orvalhada.
Um bom tempo tais boas criaturas restam,
Fontes de marfim cubas de coral enchendo.
Uma em justo pranto; à outra não molestam
Causas que não companhia, gotas vertendo.
Seu gentil sexo ao pranto sempre tendendo,
A si vexam por alheia tribulação,
Olhos afogam ou se parte o coração.
Pois no homem mente é rocha, na mulher, cera,
E toma forma tal como a rocha por isso.
O débil opresso, a estampa estrangeira
Se lhes forma por força, fraude ou artifício.
Não as chames pois autoras de seu suplício,
Não mais que a cera sofreria menoscabo
Estando impressa na figura dum diabo.
Sua lhaneza, tal um belo prado aberto,
Expõe todos os bichinhos a rastejar;
Nos homens, tal denso bosque, quedam decerto
Males entocados na treva a repousar.
Pelo cristal um cisco se pode enxergar:
Se homens ocultam crimes com grave porte,
Têm na face as faltas as mulheres sem sorte.
Homem algum acuse a flor que deteriora,
Mas censura o duro inverno que mata a flor.
Não quem é devorado, e sim quem devora,
Merece culpa. Oh, que não se tome por
Falta às pobres mulheres, aquela que for
Por abuso de homem: tais lordes, culpados,
Têm-nas, frágeis, inquilinas de seus pecados.
O precedente do qual em Lucrécia vede,
Presa noturna do argumento premido
De pronta morte, e infâmia que sucede,
Ao com a morte sua danar ao marido.
Tal perigo na resistência presumido,
Um medo mortal todo o corpo percorreu,
E fácil é abusar corpo que morreu.
Temperança, pois, insta Lucrécia a falar
À pobre cópia de sua lamentação:
“Minha jovem,” diz, “por que estão a rolar
Tais lágrimas, que te banham em profusão?
Se choras mágoa de minha suportação,
Sabe, boa moça, pouca ajuda trariam.
Ajudassem lágrimas, estas o fariam.
“Mas diz, jovem, quando foi” – aí fez parada
Para gemer doído – “Tarquino embora?”
“Dona, eu nem acordara,” diz a criada,
“Tanto pior minha negligente demora.
Mas a falta em tal medida se minora:
Eu me levantei antes do raiar do dia,
E antes disso Traquino longe já ia.
“Mas, senhora, podendo ousar tua criada,
Pediria saber-te a desolação.”
“Ó, quieta!” diz Lucrécia: “Sendo relatada,
Em nada lhe diminui a repetição,
Para expressá-la falta-me aptidão,
A tal tortura inferno podes chamar,
Quando mais se sente do que pode narrar.
“Vai, traz aqui pena, tinta e papel pristino.
No entanto, cá estão, podes te poupar. –
Que devo dizer? – Um homem de Colatino
Faz se aprontar, para logo logo levar
Uma missiva a meu lorde, amor, e par.
Manda estar a postos para que a leve;
A causa urge, e ela logo se escreve.”
A criada vai, e ela escrever tenta,
Com a pena sobre o papel em suspensão.
Invento e mágoa travam luta violenta;
O que cabeça anota risca o coração;
Isto é seco demais, isto, afetação.
Tal como uma turba uma porta forçando,
Avultam invenções, primazia buscando.
Enfim assim empeça: “Ó, digno senhor
Daquela indigna esposa a escrever,
Saúde a ti. Mais, emprega por favor,
Se queres, amor, tua Lucrécia rever,
Pronta celeridade em vir aqui ter.
Assim, reporto de nossa casa em pesar.
Dura a dor, palavras devo abreviar.”
Ela dobra então o teor do que padece,
A mágoa certa incertamente a registrar.
Pelo curto escrito Colatino conhece
Seu pesar, mas não a natura do pesar.
Ela disso nada lhe ousa revelar
Temendo ser por ele da falta acusada
Antes que sangue tache escusa tachada.
Para além, vida e sentimento da aflição
Ela guarda, p’ra ele poder escutá-la,
Quando lamúria e pranto ornem a feição
De sua desgraça, para melhor livrá-la
Da suspeição que poderiam inculpá-la.
Para evitar mancha, não manchou a missiva
Com palavras; ação que lhes seja expressiva.
Ver cenas tristes move mais que ouvir contar,
Pois aí olho ao ouvido é narrador
Da tétrica ação de fato a contemplar
Em que cada papel só representa dor.
É mágoa de papel se escutada for.
O vau mais que as profundezas é barulhento,
Vaza a maré da dor ao palavroso vento.
Sua missiva selada, grafado ia:
“Em Ardea, a meu lorde, e sem demora.”
O estafeta lesto, ela lha confia,
Mandando o criado rude correr tal fora
Galinha perdida quando o tempo piora.
P’ra ela é lenta a mais veloz velocidade;
Tais extremos sói urgir a extremidade.
O simples lacaio se curva até o chão
E, ruborizado, fixando o olhar,
Recebe a carta sem dizer nem sim nem não;
Em tímido candor põe-se a dali marchar.
Mas quem tem a culpa seu seio a ocupar
Pensa que todo olho vê a falta nua:
Lucrécia o crê corar pela desonra sua,
Quando ele, bom moço! sabe Deus, carece
De espírito, vida, e audácia impudente.
Tais seres sem maldade o dever exercem
Ao falar com atos; já outros, insolentes,
Prometem ligeireza, agem lentamente.
Pois assim tal exemplo do tempo de outrora
Empenha justo olhar, palavras não penhora.
Seu vivo empenho suspeita nela avivou,
Tal que duplo fogo a ambas faces esquenta.
Que via a sanha de Tarquino ela pensou
E, corando junto, fitava-o atenta.
O olhar sério espanto nele alimenta.
Mais via o sangue sua face preencher,
Mais o cria mácula nela perceber.
Ela já pensa que ele demora a voltar,
Quando mal se fora o fiel servidor.
O tempo molesto mal pode suportar,
Pois já é baldo suspiro, pranto ou clamor;
Tanto ai fatiga ai, dor enfada dor,
Que ela as lamúrias cessa um minuto,
Pausando a achar nova forma de luto.
Enfim recorda-se onde pende dum prego
De Príamo Troia com engenho pintada
Ante a qual se estende o poderio grego,
Pelo rapto de Helena têm-na sitiada,
Aterrando Ílion ao céu elevada,
A qual o destro pintor tão soberba fez
Que parece o céu beijar as torres cortês.
A mil lamentáveis objetos que se viam,
Repto à natura, arte dava morta vida.
Gotas secas lágrimas vivas pareciam,
Ceifado o esposo, pela esposa vertidas.
Rubro sangue fuma, mestria exibida,
E olhos extintos lançam luzes cinzentas,
Tal brasas se extinguem em noites modorrentas.
Lá se figura o vanguardeiro a laborar
Coberto de terra e de suor lambuzado,
E nas torres de Troia se pode avistar
Até os olhos pelas seteiras lançados,
A contemplar aos gregos, desacorçoados.
Nesta obra se expressa tal doce justeza
Que se vê nos olhos distantes a tristeza.
Em grandes comandantes graça e majestade
Podereis ver, triunfando nos seus semblantes;
No jovem, ágil conduta e habilidade;
E cá e acolá o pintor nos põe diante
Pálidos covardes, com passo balouçante,
Os quais lacaios lassos tão bem parecendo,
Crer-se-ia vê-los se debater tremendo.
Em ambos Ájax e Ulisses, ó, que arte
De fisionomia se pode contemplar!
Cada face traçava o cor de cada parte,
A face ao porte claramente a revelar.
N’olho de Ájax, rija fúria a brilhar,
Mas a mirada que o astuto Ulisses lança
Mostra respeito e serena governança.
Lá vereis grave Nestor em exortação,
Tal fora a encorajar os gregos a lutar,
Exercendo tal sóbria ação com a mão
Que retinha atenção, seduzia o olhar.
A barba argêntea parecia, ao falar,
Vibrar alto abaixo, e dos lábios partia
O alento a se estender, que aos céus erguia.
Ao seu redor, uma multidão boquiaberta,
Que parece sorver seu conselho instruído,
Todos juntos ouvindo, em pose diversa,
Tal encantasse uma sereia seus ouvidos;
Uns altos, uns baixos, tal cuidado foi tido.
Várias cabeças, ao fundo quase escondidas,
Parecem se elevar, pondo a mente aturdida.
Cá a mão dum por sobre a cabeça de outro,
Nariz d’orelha do vizinho sombreado;
Cá um, pisado, reage, inchado e rubro;
Outro parece gritar blasfêmias, prensado;
Em seu furor tal furor é manifestado
Que, não foram de Nestor palavras doiradas,
Vê-se que debateriam com as espadas.
Pois à imaginação lá se apelava,
Acerto enganoso, tão denso, tão veraz,
Que a Aquiles sua lança figurava,
Tesa na mão armada; já ele, atrás,
Invisível: no olho da mente e não mais.
Uma mão, ou pé, ou perna, cabeça ou rosto,
Representavam um todo a ser suposto.
Fora dos muros de Troia tão sitiada,
Vindo à luta audaz Héctor, seu campeão,
Havia muitas mães troianas encantadas
Por brandir belas armas seu jovem varão,
Mas à esperança ligam tal rara ação,
Que atrás do júbilo surgia um segredo,
Tal mancha em rútilo metal: pesado medo.
Da costa do Dardanelos, onde lutavam,
Às margens do Simóis há sangue em profusão,
Cujas ondas imitar a luta buscavam,
Encrespando-se; e se punha o batalhão
A quebrar na margem gasta, e logo então
Vazava de volta, maior hoste encontrando:
Unem-se, a margem do Simóis espumando.
Chega Lucrécia a bem pintada seção
E vê a face que toda dor retratava.
Muitas vê que marcou pouco a aflição,
Mas nenhuma em que todo o pesar morava,
Até notar Hécuba, que desesperava
Fitando alarmada de Príamo os lanhos,
O qual sangra sob o pé de Pirro, ufano.
Nela esse pintor havia dissecado
Beleza que a aflição arruinava.
Seu rosto, com vincos e rugas disfarçado;
Do que ela era, nem vestígio restava.
Seu sangue azul em cada veia pretejava,
Faltando a fonte que os tubos murchos nutria,
Vida aprisionada em corpo morto exibia.
Lucrécia, olhos na triste sombra fixados,
Ao pesar d’anciã conforma seu sofrer,
A quem só faltam, para responder, seus brados,
Palavras de fel para algozes maldizer.
O pintor não era um deus p’ra lhos conceder:
Faz que Lucrécia maldade nele presuma
Ao dar-lhe tanto desgosto, e língua alguma.
“Pobre instrumento,” diz ela, “inaudível,
Cantar-te-ei o pesar com língua plangente,
E darei à chaga de Príamo alívio,
E censurarei Pirro, que agiu torpemente.
E com lágrimas apagarei Tróia ardente,
E riscará os olhos torvos minha faca,
De todo inimigo grego que ora ataca.
“Mostra a rameira que a refrega suscitou,
P’ra com as unhas a beleza eu lhe rasgar.
Teu ardor lascivo, tolo Páris, ditou
Tal carga de ódio que faz Troia queimar;
Teu olho o fogo a arder fez alumiar;
E cá em Troia, só por teu olho ofender,
Pai, filho, senhora e filha devem morrer.
“Por que deve o prazer privado de um só
Tornar-se a praga pública de quantos for?
Que falta cometida só recaia só
Na cabeça daquele que foi transgressor;
Que almas inculpes fiquem livres da dor;
Pela ofensa de um devem tantos pagar,
Pecado privado todos contagiar?
“Eis: cá chora Hécuba, cá Príamo morre,
Cá hirto Hector, cá Troilus, a fenecer,
Cá amigo com amigo jaz, sangue corre,
E amigo a amigo fere sem ver,
E lascívia dum tanta vida faz perder.
Sustara tardo Príamo do filho a chama,
Troia brilharia não com fogo e sim fama.”
Ela aqui pranteia a Troia o mal pintado,
Pois mágoa, como um maciço sino pendente,
Posto a tocar, de si segue por ser pesado;
Pouca força faz soar o dobre dolente.
Faz Lucrécia um triste relato, diligente,
Aos traços da dor e às tintas d’aflição;
Confere-lhes voz, e toma-lhes a feição.
Lança ela os olhos por toda a pintura,
E de quem encontra mofino faz lamento.
Por fim vê, presa, uma tétrica figura;
Os pastores frígios mostram condoimento.
Seu rosto, mesmo aflito, traz contentamento;
A rota de Troia com os rústicos desce,
Tão calmo que a paciência troçar parece.
Nele o pintor laborou com toques ciosos
A velar o logro, dar à mansa ilusão
Passo humilde, ar calmo, olhos lacrimosos,
Cenho rijo: aceita a atribulação,
Sem rubor ou palor, mas tal combinação
Que o rubor rúbeo não era da culpa efeito,
Nem o palor alvo medo num falso peito.
Mas, tal demônio contumaz e habitual,
Mantinha fronte que tão justa parecia,
E sob ela tão bem entrincheirava o mal,
Que nem a própria suspeição não suporia
Que falso dolo ou perjúrio mancharia
Tão belo dia com tais píceas tormentas,
Nem com infernal pecado tais formas bentas.
Compôs doce imagem o pintor com mestria
De Sinon perjuro, cuja astuta história
Do crédulo Príamo a morte seria;
Cujo verbo tal pólvora abrasa a glória
Da sólida Ílion, pela qual o céu chora;
E estrelinhas do sítio fixo saltavam
Caído o espelho onde as faces miravam.
Esta figura ela esmiuçou, dedicada,
Censurando ao pintor o esmero sem par,
Crendo outra efígie em Sinon abusada;
Forma assaz bela não sói má mente abrigar.
E o seguia fitando; e sempre a fitar,
Tal verdade em seu rosto simples notava
Que concluiu que a imagem falsificava.
“Não creio,” diz ela, “que tamanha mentira” —
“Possa espreitar em tal aparência,” pensou, —
Mas de Tarquino o vulto na mente ela vira
E sua língua em “pode” o “possa” mudou.
“Não creio” ela em tal sentido abandonou,
E formulou assim, “Não creio, claro está,
Que tal face traga outra mente que não má.
“Pois tal como sutil Sinon cá retratado,
Tão solene, tão abatido e tão composto,
Como se de mágoa ou labor fatigado,
A mim veio Tarquino sitiar, envolto
Em um manto honesto, no entanto roto
Com vício imo. Príamo o admitiu,
Eu a Tarquino; e minha Troia ruiu.
“Vede, como Príamo ouve e lacrimeja,
Vendo as lágrimas falsas por Sinon vertidas!
Príamo, ancião és sem que sábio sejas?
Cada lágrima custa a um troiano a vida.
Seu pranto é fogo, água alguma é produzida;
Tais rotundas perlas de que tens piedade
São fogo ardente a queimar tua cidade.
“Tais demônios tomam logro ao negro inferno,
Pois Sinon em seu fogo se treme de frio,
E esse frio abriga ao fogo eterno.
Tais contrários só se unem em compadrio
Para adular tolos e enchê-los de brio.
Fé de Príamo falso pranto a adular
Permite a Sinon Troia com água queimar.”
Eis que, furibunda, tal paixão nela impera,
Que a paciência do peito é levada.
Sinon inerte com as unhas dilacera,
Comparando-o à visita malfadada
Cujo ato a fez de si mesma detestada.
Ao fim sorrindo assim à empresa larga:
“Tola, tola!” diz, “nem lhe doem suas chagas.”
Assim monta e vaza o curso do pesar:
Queixa-se ela, e o tempo é um enfado.
Ora a noite, ora a aurora a desejar,
A ambos crê se quedarem demasiado.
Curto tempo longo é, pesar suportado;
Embora canse, nunca dorme a dor nefasta,
E quem vela vê como o tempo se arrasta;
A qual todo esse tempo lhe escapou à mente
Com imagens pintadas por ela empregado,
Da vivência da própria aflição insciente
Pelo alheio detrimento conjeturado,
Purgando os males no tormento figurado.
Alivia alguns, mas curar nunca se deu,
Pensar que coube a outrem o suplício seu.
Mas eis que o cioso estafeta, retornando,
Traz a casa seu lorde, vindo acompanhado,
O qual vê Lucrécia negro luto trajando,
Em torno dos olhos pelo pranto marcados,
Tais arco-íris no céu, aros azulados.
Tais cores em seu firmamento escurecido
Predizem temporal pr’além do já chovido;
Seu marido circunspecto, a isso vendo,
Pasmo fita seu triste rosto sempre mais.
Olhos rubros e crus, mesmo em pranto fervendo,
A cor vivaz abatida em penas mortais.
Falta-lhe força p’ra perguntar “como vais”;
Quedam ambos, como amigos que, separados,
Veem-se alhures, um ao outro mede os fados.
Ele enfim, uma mão exangue lhe tomando,
Assim empeça: “Que desdita desmedida
A ti recaiu, que te quedas tiritando?
Meu bem, que revés faz tua boa cor lívida?
Por que estás em tal descontento vestida?
Expõe, querida, essa triste prostração,
E conta teu mal, p’ra termos reparação.”
Três suspiros à mágoa ligam o pavio
Até que dispare palavra de pesar.
Pronta enfim a responder o que se inquiriu,
Prepara-se cândida a lhes revelar
Que a honra cativa lograram tomar,
Enquanto Colatino e os lordes que o guardam
Com séria atenção sua fala aguardam.
Pois este pálido cisne em águas brandas
Chama a canção triste de seu certeiro fim:
“Breves palavras,” diz, “a transgressão demanda,
Quando escusa não repara a falta, enfim.
Mais ais que palavras prevalecem em mim,
E meus lamentos de toda medida passam,
A contar todos uma pobre língua lassa.
“Então seja seu único mister dizer:
Caro esposo, sendo tua cama almejada,
Estranho logrou no travesseiro jazer
Em que pousavas tua cabeça cansada;
E que maldade a mais seja imaginada,
Que me fosse feita em coação odienta,
Disso, oh, tua Lucrécia não ‘stá isenta.
“Pois no temível breu da madrugada morta
Com sabre luzente minha alcova profana
Sorrateira criatura que flama porta,
E grita, calmo, ‘Acorda, dama romana,
E acolhe meu amor; ou nódoa tirana
Imporei sobre ti e teus familiares,
Se a força de meu amor contraditares.
“‘Pois algum repulsivo criado teu,’ diz,
‘Se não vais teu gosto a meu fito atrelar,
Mato na hora, e logo a ti, infeliz,
E juro tê-la visto a realizar
Torpe ato lúbrico, cabendo ceifar
Os devassos no ato. Será tal ação
Fama minha, tua perpétua abjeção.’
“Nisso, lancei-me a reagir e gritar;
Então contra meu peito pôs ele a espada,
Jurando: não aquiescesse a suportar,
Seria eu para sempre silenciada;
E minha infâmia ficaria registrada:
Nunca na nobre Roma seria olvidado
O fim adúltero de Lucrécia e criado.
“Inimigo forte, pobre fraca que sou,
E tanto mais fraca com tamanho pavor.
Meu sangrento juiz a língua me obstou;
Pleito justo algum lá se podia interpor.
Sua lascívia escarlate dá seu penhor
Que a vista furtou-lhe minha graça faceira,
E roubado o juiz, é morte à prisioneira.
“Ensina-me a ser meu próprio advogado,
Ou ao menos este refúgio me consente:
Mesmo o sangue rude de abuso tachado,
Imaculada e pristina é minha mente;
Isso não se forçou, nem nunca foi tendente
A renúncias acessórias, e sempre pura
Dentro do abrigo envenenado perdura.”
Cá o mercador da perda desesperado,
Cabeça pensa, voz barrada por pesar,
Com tristes olhos fixos, e braços trançados,
Dos lábios ora pálidos põe-se a soprar
P’ra longe a mágoa que lhe impede replicar.
Mas, infeliz que é, vão é desvelamento;
O que expele reabsorve seu alento.
Tal por um arco uma maré agitada
Ultrapassa o olho que a acompanhou,
Mas no remoinho sua força é domada
De volta ao estreito que veloz a lançou —
Fúria lança, fúria retoma, se passou —
Assim suspiros e penas a serra fazem:
Mágoa pulsam adiante e de volta trazem,
Padecimento mudo o qual ela nota,
E seu transe intempestivo desperta assim:
“Caro lorde, tua dor à minha dor dota
Dupla força; cheia por chuva não tem fim.
Teu padecer faz esta chaga aberta em mim
Mais viva e dolorida. Baste-lhe portanto
Afogar um pesar, um par d’olhos em pranto.
“E por mim, se encantar-te assim posso eu,
Que fui tua Lucrécia, rogo atender:
Vinga-te sem tardar do inimigo meu,
Teu, meu, dele mesmo. Supõe me defender
Do que já foi. O auxílio que vais trazer
Vem muito tarde, mas que morra o traidor,
Pois nutre iniquidade pena não dispor.
“Mas antes que o nomeie, vós bons lordes,” diz,
Aos que seguiram Colatino com nobreza,
“Empenhareis vossas palavras, tal condiz,
De em pronta acossa vingar esta vileza,
Pois é uma justa e meritória empresa
Com vingança armada a injustiça caçar.
Cavaleiros votam ao dano reparar.”
Ante rogos tais, com nobre disposição,
Cada lorde põe-se a amparo prometer,
Por cavalaria atado à imposição,
Querendo o torpe inimigo conhecer.
Mas ela, grave mister inda por dizer,
Cessa-lhes os protestos. “Oh, revelai,” diz,
“Como será limpa a tacha que nunca quis?
“Qual será de minha ofensa a real natura,
Com terrível circunstância a me forçar?
Pode exculpar ao vil ato a mente pura,
Minha honra caída fazendo avançar?
Pode argumento absolver-me do azar?
Volta a se limpar uma fonte envenenada,
Por que não eu a tal mácula sujeitada?
Nisso, põem-se todos a emitir juízo:
Mente impoluta exime corpo maculado,
Enquanto ela afasta, com um triste sorriso,
A face, mapa que traz impresso o traçado
Do duro infortúnio, com lágrimas gravado.
“Não, não,” diz ela, “dama alguma doravante
Em meu pretexto buscará atenuante.”
Suspirando então, tal se o coração partisse,
“Tarquino!” expele; “Ele,” dá seguimento,
Mas mais que “ele” a pobre língua não disse,
Até que após soluços e retardamentos,
Ofegos, débeis e breves experimentos,
Sai-lhe: “É ele, ele, bons lordes, enfim,
Quem guia esta mão a tal chaga abrir em mim.
Pois aqui ela embainha no peito, cega,
Faca aguda que su’alma desembainha.
Tal golpe rende-a da profunda refrega
Daquela prisão poluta que a continha.
Seus ais contritos legam às nuvens acima
Alado espírito; voa pela ferida
Do destino danado a imortal vida.
Petrificados ante o ato estupendo
Ficam Colatino e lordes que chamou,
Até que o pai de Lucrécia, seu sangue vendo,
Sobre o corpo auto-exterminado pulou,
E da fonte purpúrea Brutus sacou
A faca homicida, e, no curso que faz,
Seu sangue, pífia vingança, sai-lhe atrás;
E borbulhando de seu peito se reparte
Em dois lentos rios, o sangue encarnado
Circunscreve o corpo dela por toda parte,
Que tal ilhéu saqueado jaz desolado,
Deserto e vazio neste mar desgraçado.
Parte do sangue rubro e puro restava,
A outra Tarquino sujou, e pretejava.
Cingindo a face em luto coagulada
Do sangue negro faz-se um aro aquoso,
Pranteando talvez a parte conspurcada;
E desde então, tal se por Lucrécia choroso,
Um sinal d’água traz o sangue vicioso,
E sangue impoluto vermelho permanece,
Ruborizando por aquele que apodrece.
“Filha querida,” Lucrécio idoso brada,
“Essa vida era minha que ora tu privas.
Se nos filhos nossa efígie é retratada,
Onde viverei se Lucrécia é desviva?
Para um tal desfecho de mim não derivas.
Caso prefalecer genitores se possa,
Somos nós sua prole, não eles a nossa.
“Pobre espelho roto, tanto tinha mirado
Em teus doces traços minha renovação,
Mas agora o belo espelho, embaciado,
Mostra uma caveira em decomposição.
Oh, rasgaste das faces a minha feição,
Estilhaçaste a meu espelho a beldade,
Já nem vejo minha prévia identidade!
“Ó tempo, cessa teu curso e mais não dobres,
Se sobrestás quem sobreviver deveria!
Conquistará a podre morte às mais nobres
Mantendo vivas débeis almas sem valia?
Morta abelha velha, às novas a colmeia.
Pois vive, doce Lucrécia, revive a ver
Teu pai morto, e não eu a ti ver perder.”
Nisso acorda Colatino do desvario
E pede a Lucrécio lhe dar à dor lugar,
E então sobre Lucrécia sangrando um rio
Se lança, seu pálido medo a banhar,
E finge por um termo morrer com seu par,
Até que pudor viril manda-o domar-se
E viver para da morte dela vingar-se.
De sua ima alma o fundo desgosto
Com mudo mandado à língua interpela.
A qual, feroz por mágoa ter se lhe imposto
Ou negado palavras que a dor debelam,
Começa a falar; mas nos lábios se atropelam
Débeis sons, ao cor tão baralhada valia
Que não podiam distinguir o que dizia.
“Tarquino,” entanto, bem claro se emite,
Mas entredentes, tal se o nome a morder.
Uma tal borrasca, até que precipite,
Susta a maré do pesar, que só faz crescer.
Vem a chuva enfim, a ventania deter.
Eis genro e sogro disputa a travar:
Quem mais, por esposa ou filha, deve chorar.
Um a diz ser sua, o outro igualmente,
Sem que nenhum dos pleitos tenha triunfado.
O pai diz “Ela é minha.” “Oh, minha somente,”
Torna o esposo. “Não me seja tomado
O título da dor. Não diga enlutado
Que a pranteia: pertencia-me em vida,
E só deve por Colatino ser carpida.”
“Oh,” diz Lucrécio, “mas esta vida eu dera
Que ela cedo e tarde demais entornou.”
“Ai, ai,” diz Colatino, “minha mulher era.
Posse minha, e meu o que ela matou.”
Tal clamor de “filha” ou “mulher” ocupou
O ar disperso, que, a Lucrécia contendo,
“Minha filha” ou “mulher” ia respondendo.
Brutus, que a faca de Lucrécia colheu,
Vendo-lhes no lamento tal emulação,
Veste em digna altivez o siso seu,
Enterra na chaga a alienação.
Pois com romanos tinha tal estimação
Como têm dos reis tolos espirituosos,
Pelos ditos atoleimados e jocosos.
Mas o hábito raso agora desmente
No qual funda astúcia tinha-lhe disfarçado,
E empunha oculto siso, sabiamente,
A sustar pranto por Collatinus chorado:
“Levanta,” diz, “lorde de Roma ultrajado!
Que meu ser indetectado, por tolo tido,
Mande à escola teu juízo sabido.
“Ora, Colatino, pode dor dor curar?
Chaga chaga ajudar, queixa à calamidade?
Será vingança a si mesmo golpear
Pela vileza que sangrou tua beldade?
Tais modos pueris mostram debilidade.
Tua miserável dama julgou errado
Em matar-se, em vez de algoz ter ceifado.
“Teu coração não banhes, romano audaz,
No suave orvalho das lamentações!
Ajoelha-te cá e tua parte faz
Aos deuses romanos fazendo invocações,
Tal que presidam ver tais abominações —
Já que a própria Roma nelas é desgraçada —
Por nossas armas destas ruas extirpadas.
“Então, por nosso Capitólio se conjura,
E por este casto sangue que se manchou,
Pelo sol no céu que traz terrena fartura,
Por todos direitos que Roma nos legou,
Por de casta Lucrécia a alma, que contou
Seus males, e por esta faca ensanguentada,
Vingaremos esta boa esposa finada.”
Dito isso, pousa sobre seu peito a mão,
E beija a faca fatal, voto a encerrar,
E convoca o restante à protestação,
Que suas palavras aceitam, a pasmar.
Todos juntos, então, joelhos vão dobrar,
E o profundo voto, que fizera Brutus,
Volta a repetir, e a isso votam juntos.
Tendo feito esse sensato juramento,
Eles dali Lucrécia morta vão levar
Para exibir por Roma seu corpo sangrento,
O torpe crime de Tarquino a publicar;
O que, feito com diligência, sem tardar,
Deram os romanos geral consentimento:
Punir Tarquino com eterno banimento.