A notável combinação, em Cimbelino, de uma narrativa romântica com uma história quase real, nos encoraja à pensarmos na peça como uma fantasia genealógica sobre as origens britânicas. Ao escolher como cenário uma Bretanha antiga, a peça busca por uma identidade nacional através de uma redescoberta da história nacional. Para ser verdadeiramente bretã, a Bretanha deve ter uma história, uma história sobre suas origens. Os cronistas, desde Geoffrey de Monmouth (cerca de 1136) intentaram prover à Inglaterra com um passado mítico, do suposto assentamento nas Ilhas Britânicas pelo bisneto de Eneias até os dias da ocupação Romana, por volta do início da Era Cristã. Os relatos eram, em geral, fabulosos, e estavam sob uma pressão crescente de ceticismo nos dias de Shakespeare. Talvez por tais razões, eles ofereciam ricos materiais para exploração poética e dramática. Como esses mitos de origem entraram no mundo dramático de Cimbelino?
Uma possível linha de investigação é a de perguntar como a peça dramatiza às ansiedades sobre a identidade nacional em relação às identidades de gênero. Como Coppélia Kahn, Janet Adelman e outros argumentaram, os sofrimentos de Imogênia, do quase estupro e subsequente difamação por um Italiano maquinador (Iachimo) podem sugerir o medo da nação ilhada em relação à invasão e à desconfiança da Católica Itália. Por outro lado, a saga de Póstumo Leonato, ao perder a fé em sua esposa, tentar arranjar seu assassinato e, finalmente, arrepender-se do que fez, sugere um teste e uma definição da masculinidade Britânica através da qual a emergência final de Póstumo como um defensor marcial da Inglaterra é emblemático da emergência desta como uma nação especificamente masculina. (as perspectivas de Imogênia herdar o reino de seu pai, Cimbelino, são colocadas de lado pela redescoberta de seus dois irmãos desaparecidos.) O exaltado relacionamento da Inglaterra com Roma aponta para um sentimento ambivalente em relação ao período de ocupação Romana, e, mais geralmente, ao débito da Inglaterra ao legado cultural da Roma antiga, como oposto ao seu próprio nacionalismo literário nascente. A presença Romana pode também ter provocado à plateia de Shakespeare a pensar em seu próprio monarca, James I, e suas aspirações por um tipo de império novo-Augustano na forma de uma Inglaterra unida e uma paz pan-Europeia. Em um período de difícil transição, temos alguns vislumbres de uma emergente Inglaterra que é capaz de apropriar-se das virtudes de Roma para sua própria identidade nacional.
O gênero de Cimbelino pode ser sugerido por alguns termos críticos como romance, tragicomédia e comédia de perdão. Como em Péricles, O Conto do Inverno, e outras peças tardias, Shakespeare utiliza-se das improváveis ficções do romance: uma rainha madrasta hábil no uso de venenos e enciumada de sua bela e virtuosa enteada (como em A Branca de Neve), filhos desaparecidos reconhecidos pela marca de nascença indelével, a reunião de muitas pessoas há muito separadas pelo exílio e perambulações, e a intervenção dos deuses através de charadas e profecias vazias. Essas são as características distintivas do romance Inglês de 1580, uma moda excitante explorada por Robert Greene e outros escritores profissionais do período. À partir de duas peças românticas dos anos 1580 – Sir Clyomon e Sir Clamydes e Os Raros Triunfos do Amor e do Destino – Shakespeare pôde, de fato, ter retirado algumas fontes materiais. Por que ele se volta à tais modelos antiquados em 1608-1610? A escolha intrigou muito críticos e os instigou a falarem de maneira condescendente da decrepitude de Shakespeare ou a atribuírem algumas partes da peça (especialmente à descida de Júpiter) a algum outro dramaturgo.
Shakespeare provocou às improbabilidades, entretanto, mesmo as absurdidades deliberadas do romance, com um propósito artístico sério. Em parte, ele estava respondendo à nova moda literária, evidente especialmente nos teatros privados, por uma tragicomédia de refinada sensibilidade – uma moda literária que produziu o Philaster de Francis Beaumont e John Fletcher. Essa peça de cerca de 1609 apresenta, como Cimbelino, um roteiro ágil e engenhosamente tecido de separação e reunião, a filha de um rei que a torna noiva de uma pessoa miserável e, então, é acusada injustamente de infidelidade, uma jovem dama disfarçada de homem, e outros detalhes comparáveis. Se Cimbelino precedeu ou sucedeu Philaster é uma questão difícil de determinar, pois Cimbelino pode ser datada apenas aproximadamente como sendo de 1608-1610, com base no estilo; de qualquer forma, a fascinação de Shakespeare com o romance remonta a, pelo menos, Bem Está o que Bem Acaba, (cerca de 1601-1604) e Péricles (cerca de 1606-1608). Os seus experimentos no gênero devem ser vistos como inovadores e únicos. Apesar das afinidades com a tragicomédia Fletcheriana, Shakespeare nunca cede ao sensacionalismo nauseante, à exagerada elevação da emoção exótica, e (exceto em O Conto do Inverno) ao ardil de esconder informação essencial da plateia, tal como encontramos nas obras de Beaumont e Fletcher. O interesse de Shakespeare na improbabilidade romântica está relacionado com o motivo sério da redenção, de uma inesperada e imerecida segunda chance para a falível humanidade.
As possibilidades trágicas são múltiplas. Cimbelino, como Lear (outro rei da história lendária da Inglaterra nas Crônicas, de Raphael Holinshed, 1578), tiranicamente rejeita uma filha virtuosa e recompensa os membros viciosos de sua família, com consequências previsivelmente infelizes. Póstumo Leonato, como Otelo, ordena à morte de sua amada companheira porque acredita em uma acusação de infidelidade da parte dela, astuciosamente apresentada, porém sem fundamento; finalmente, concluindo que destruiu a única pessoa capaz de dar ordem à sua vida, ele desesperadamente deseja a morte. Ao passo que, em uma situação familiar, Lear e Otelo sofrem às consequências trágicas de suas escolhas, Cimbelino e Póstumo são poupados. Alguma força benigna, integral para o mundo dessa peça, previne os mortais falíveis de perseguirem suas intenções enganosas ao ponto de uma injúria irreversível. Póstumo depende, para a sua vingança, do virtuoso Pisânio, que não pode assassinar Imogênia. A caixa de “veneno” da Rainha, dada por fim pelo bem-intencionado mas ingênuo Pisânio, é somente uma poção sonífera preparada pelo gentil manipulador por detrás das cenas, Doutor Cornélio. Esses venturosos escapes do desastre relembram outras escapadas por pouco em Muito Barulho por Nada, Bem Está o que Bem Acaba e Medida por Medida. Eles também antecipam eventos similares em O Conto do Inverno.
Porque Cimbelino inicia-se com dilemas como os de Rei Lear e Otelo, o tom que prevalece é, em primeiro lugar, sério. (Os editores do Fólio de 1623 imprimiram à peça entre as tragédias.) O comportamento do Rei em relação à Imogênia e seu marido virtuoso, mas não aristocrático, Póstumo, é tirânico. Observadores desinteressados condenam à dominância da maligna Rainha sobre Cimbelino e riem privadamente do filho covarde e ridículo da Rainha, Cloten. Um bom homem como Belário sofre um banimento por toda a vida da corte invejosa e gasta o seu exílio morando em cavernas. Muitos dispositivos convencionais da narrativa romântica – perambulação e retorno, perda e redescoberta, morte aparente e renascimento – são movimentados pela necessidade de se escapar de uma corte dominada pela maligna Rainha. Uma por uma, as pessoas honestas da peça – Póstumo, Imogênia, Pisânio – deixam à sociedade em desaprovação, para serem reunidos na paisagem selvagem de Belário e seus filhos adotivos. A Itália não é um lugar melhor do que à corte Inglesa. Seu gênio maligno é Iachimo, apóstolo do apetite animal, duplicidade e indiferença cínica com os valores humanos.
Apesar do humor predominantemente trágico do início, há promessas de perspectivas mais animadas. Certas circunstâncias maravilhosas acompanham o nascimento de Póstumo, e o distinguem para uma carreira extraordinária. Na primeira cena, ademais, aprendemos que os únicos dois filhos do Rei foram roubados de suas creches na infância – uma dica óbvia que eles reaparecerão mais cedo ou mais tarde. Cloten, também, nos surpreende como um ridículo pretendente de Imogênia, o tipo de rival cômico apropriado a uma comédia romântica. Porque ele é imbecil, superficial e preocupado com as roupas, ele merece ser exposto e ridicularizado. Mesmo sua morte é grotescamente cômica. Ele age como um antagonista ou caricatura a Póstumo, cujas vestes Imogênia, erroneamente, acredita serem de seu marido morto; a semelhança externa dos dois homens sugere a nós que Póstumo não foi diferente de Cloten quando suspeitou que Imogênia o traiu e jurou vingança. A morte de Cloten sinaliza o fim da disposição de Póstumo em ser enganado pelas aparências.
O humor sombrio inicial, com sua ameaça de desfecho trágico, é mais iluminado pela justaposição da angústia e da esperança. Quando Arvirago e Guidério lamentam à “morte” de Imogênia, com uma música esquisita sobre a vaidade do esforço humano, respondemos à apropriação do sentimento e atenuamos nossas angústias com nosso conhecimento consolador que ela tomou, de fato, uma poção sonífera. Similarmente, quando Póstumo zomba eloquentemente da morte com seu carcereiro e prepara-se para encontrar sua única liberdade última, não podemos ignorar à garantia de uma retificação final por Júpiter. Como em Medida por Medida, o sofrimento e o remorso são estruturados em um contexto benigno de desígnio providencial que somente a plateia pode apreciar totalmente.
A tragicomédia ameaça e consola ao mesmo tempo. A principal fonte de ansiedade é a renúncia de Póstumo à Imogênia. O sensacionalismo do enredo deriva, em parte, do uso do tema da “aposta”, encontrado em várias novelas Italianas, tais como o nono conto do segundo dia do Decameron de Giovanni Boccaccio. O retrato psicológico da hesitação e derrocada de Póstumo, como aquele de Otelo e Leontes, é intenso e feio, preenchido com imagens grotescas de relação sexual. Assim como Otelo e Leontes, Póstumo é ameaçado pela sexualidade de sua esposa e é incapaz de responder firmemente ao amor oferecido por ela, que é apropriadamente sensual e espiritual. Ele está confortável apenas quando pensa nela como sexualmente contida, mesmo em sua cama de casamento, implorando contenção a seu marido com “Um recato tão róseo em sua doce visão / Que poderia esquentar o velho Saturno” (2.5.11-12). Ele está excitado pela casta indiferença mas repelido por uma sensibilidade tão grande. Tais expectativas desequilibradas deixam-no propenso às insinuações que as mulheres praticam à trapaça. Uma vez que Imogênia aparece a ele como carnal, ela tornar-se monstruosa e insaciável na imaginação dele. Ele conjura o imaginado triunfo sexual de Iachimo em termos animalistas: “Nem chegou a falar, mas como um gordo / javali da Alemanha gritou: “Oh!” e montou” (linhas 15-17). Como Otelo, ele insiste em ser um chifrudo consumado; depois de experienciar o ciúme, ele pode esperar apenas uma conclusão. Ele deseja “cortá-la em pedaços,” e, como Lear, ele violentamente destruiria “A parte mulher de mim” (2.4.150; 2.5.20).
Póstumo sofre de fantasias sombrias em relação às mulheres, tais como encontramos em outro lugar em Shakespeare. Porque considera a mulher como propriedade do homem, e está preparado para iniciar uma competição com outros homens para “elogiarem às mulheres de seus respectivos países” e de gabar-se que Imogênia é (nos termos da disputa) “mais bela, virtuosa, sábia, casta, constante, qualificada e menos fácil de conquistar” do que qualquer outra dama viva (1.4.57-61). Os resultados são previsivelmente desastrosos, como foram, anteriormente, no Estupro de Lucrécia de Shakespeare. Ao insinuar à objetificação da mulher, Póstumo revela sua afinidade emocional com Iachimo, que tira vantagem de seu esconderijo no quarto de Imogênia para catalogar, com detalhes clínicos, os charmes físicos dela, juntamente com a mobília do próprio quarto (2.2). A explosão misógina de Póstumo contra as mulheres como “meia-trabalhadoras” no ato da concepção (2.5.1 Primeiro Fólio) revela o seu medo de ser traído por todas as mulheres (incluindo sua própria mãe) e, por isso, sua própria vulnerabilidade impotente ao que ele supõe ser as mentiras das mulheres, a lisonja, a enganação, “Lascivos e fétidos pensamentos,” vinganças, “O agradável anseio, calúnias, mutabilidade, / Todas as faltas que têm um nome, não, que o inferno conhece” (linhas 22-7). Essa fobia masculina está profundamente esculpida no mundo masculino de Cimbelino, porque o vemos também no distorcido desejo de Cloten em possuir Imogênia e nas relações problemáticas de Cimbelino com sua filha e sua esposa dominadora. Em Póstumo, essa perversidade tipicamente masculina prognostica o desastre e demanda ou um final trágico ou o final feliz contrafeito da tragicomédia. Sua falha coloca uma responsabilidade especial em Imogênia, para que suporte à fragilidade dele e que a redima; somente através dela Póstumo pode receber uma segunda chance. Enquanto isso, a sua falha levanta uma questão familiarmente Shakespeariana, sobre a responsabilidade dele sobre sua própria queda. Como ele poderia ter evitado acusar Imogênia falsamente?
Forças poderosas militam contra Póstumo. Iachimo é um vilão plausível, no estilo de Don John (Muito Barulho por Nada), Iago (Otelo) e Edmundo (Rei Lear). Como eles, ele trama despertar à inveja e à divergência nos outros, por meio de aparências falsamente apresentadas aos sentidos. Podemos facilmente entendê-lo em termos humanos como um homem briguento e lascivo, e seu deleite sinistro pela perversidade também sugere um mal que abrange a tudo. Sua alegação é que toda mulher tem seu preço (e todo homem também). Quando descobre em Imogênia uma integridade tal que não cederia às suas insinuações, ele busca destruí-la como uma refutação perigosa de sua premissa baixa sobre a natureza humana. Ele declara o confronto entre ambos em termos cósmicos: “Apesar desse anjo celeste, o inferno é aqui” (2.2.50) Ele não se gaba felizmente com a plateia, é verdade, ou domina a peça como Iago o faz; ademais, ele próprio experimenta à mudança beneficente trazida pela final feliz da peça e fala em homenagem à virtude de Imogênia. Como convém a uma tragicomédia, ele é mais sinistro do que potente, quase, às vezes, uma caricatura de um vilão trágico. Entretanto, em suas cenas de vileza, sua função é a de um tentador diabólico trabalhando através dos sentidos frágeis da humanidade. Seu uso do anel como evidência relembra do lenço em Otelo. Iachimo cria uma inferência minuciosamente circunstancial da transgressão de Imogênia e deixa a inclinação de Póstumo acreditar o pior do restante.
Como Otelo, então, Póstumo deve assumir a culpa por sua perda de fé. O tentador pode prevalecer sobre os sentidos dele, mas, também o vacilante coração da humanidade escolhe o mal. Observadores confiáveis percebem a falácia de Póstumo e indicam à resposta correta; como Filário diz, “Isso não é forte o bastante para ser crível / Para quem tem certeza” (2.4.134-5). A fé verdadeira encoraja que, sendo o que é, Imogênia não poderia fazer o que foi alegado. Ela é, como Helena e Desdêmona antes de si, uma mulher virtuosa que responde a seus sofrimentos imerecidos com paciência (apesar de mesmo a sua paciência ter limites, e ela, também, é capaz de exceder-se e julgar mal). Ela desequilibra a falta de fé masculina, com seu perdão. Sua perseverança na virtude confunde a tese de Iachimo e resgata Póstumo de sua pior individualidade. Iachimo e ela são competidores espirituais pela lealdade da fé de Póstumo. Ela triunfa, não através da escolha de Póstumo (que é pelo mal), mas através de sua bondade incontestável. Tardiamente, também, Póstumo faz suas retificações, que são necessárias para o aceitarmos como o herói restaurado. Ele perdoa Imogênia mesmo antes de saber da inocência dela, busca a morte como uma expiação, e move-se por degraus, do pecado ao remorso, confissão, culpa e penitência. Sua vestimenta de camponês, no Ato 5, sinaliza à resignação do desejo mundano que ele precisou atingir para ser merecedor de uma segunda chance quase miraculosa. Como um homem decaído, ele nunca verdadeiramente poderá merecer tal misericórdia, mas pode empenhar-se, pelo menos, para reparar o que fez.
A história dos filhos perdidos do Rei Cimbelino é similarmente tragicômica e ainda mais explicitamente devedora às convenções do romance, com seus motivos de banimento, perambulações, reconhecimentos e reuniões finais. O cenário silvestre dessa narrativa romântica empresta à segunda metade da peça um vigor primitivo e misterioso (como também em O Conto do Inverno). Arvirago e Guidério relembra-nos das lendas medievais sobre Parsifal; isto é, como Parsifal, eles são príncipes jovens criados ao ermo, sem treinamento cortesão, mas possuindo um “instinto invisível” (4.2.179) que incita-os a afirmarem seu sangue real. Ignorando às advertências de seu padrasto, sobre a ingratidão e decadência da sociedade cortesã que abandonou, os príncipes desejam testar a si mesmos nos feitos da cavalaria. Eles são uma força rejuvenescedora nessa peça, unindo os ideais da cavalaria medieval com a força impecável de seu mundo silvestre. Cloten, aquele esnobe com aparência de cortesão e o contrário deles em tudo, é apropriadamente morto por esses agentes da “Natureza divina” (linha 172). Eles estimam Imogênia como um membro do grupo e sofrem na aparente morte dela com o vívido imediatismo daqueles que viveram na natureza. A aparente morte dela e o novo despertar é, para eles, algo como o ciclo restaurador das estações, trazendo uma renovação do vigor natural que complementa habilmente à graça espiritual que ela encarna para Póstumo. O nome dela para eles é, apropriadamente, “Fidele.” A reconciliação do velho Belário com Cimbelino sinaliza o fim da injustiça política, ainda outra consequência da condição decaída da humanidade, cuja graça deve ser proporcionada.
A história da guerra entre a Inglaterra e Roma, derivada em parte das Crônicas de Holinshed, contribui, também, para o processo de renascimento espiritual. A guerra coloca em ação uma série de eventos aparentemente não relacionados, incluindo o retorno à Inglaterra de Póstumo e Iachimo, sem o qual a conclusão feliz da peça seria impossível. Apesar da própria guerra ser destrutiva e suportada principalmente por Cloten e a Rainha (cujos discursos patrióticos mostram-nos quão oco o patriotismo pode ser), a guerra leva, finalmente, a uma nova vida para a Inglaterra, assim como para os amantes românticos. Reviravoltas súbitas na batalha, especialmente quando um velho homem e dois garotos defendem uma estreita estrada de um exército, são vistas como maravilhas dirigidas por algum poder maior. No resultado benigno da paz, o Rei, não mais enganado por conselheiros malignos, reconcilia-se com sua filha e o marido dela, e também com Roma. A cena final, na qual os aparentes acidentes do destino são desembaraçados, é uma apresentação estrutural de descoberta cômica.
Os três enredos principais de Cimbelino – de Póstumo e Imogênia, dos filhos perdidos do Rei, e da guerra entre a Inglaterra e Roma – podem parecer desconectados externamente um com o outro. Certamente, a peça estende-se em um amplo espaço geográfico e introduz uma miríade de personagens, muitos dos quais nunca se encontram, até a cena final. Entretanto, os três enredos são unificados ao serem estruturalmente parecidos. Em cada um, percebemos um padrão de queda da inocência, seguido por um conflito e consequente redenção. Póstumo é instigado a uma perda de fé e tentativa de assassinato, as quais ele compensa através da penitência. A saga dos filhos do Rei provê um equivalente secular de sua história de estranhamento, identidade equivocada e consequente recuperação da perda. Politicamente, a Inglaterra é alienada de Roma através das maquinações da Rainha, apenas para redescobrir, depois de muitos anos, uma nova harmonia. Os enredos chocam-se um com o outro, de tal formas que parecem planejados (como, por exemplo, quando os acidentes de guerra finalmente unem Imogênia, Póstumo e Iachimo na presença de Cimbelino), e, ademais, compreendemos finalmente que a maquinação é providencial e benigna, com a intenção de testar à humanidade e então recompensar àqueles que perseveraram ou que, pelo menos, encontraram o remorso verdadeiro.
Apesar das simetrias da estrutura entre os vários enredos de Cimbelino, a peça consegue nos manter constantemente surpresos. Seu padrão tragicômico de inocência, conflito, e consequente redenção é repetidamente perturbado pelas estranhas justaposições da Roma imperial, a Roma Renascentista e a Inglaterra pré-histórica inventadas pela crônica, romance e pastorais. A peça produz momentos estranhos, tal como Imogênia acordando perto do Porto de Milford, para encontrar-se próxima do corpo sem cabeça de Cloten e de confundi-lo com o corpo de Póstumo (4.2.294-335), ou a descida de Júpiter à terra no lombo de uma águia (5.4.92 Primeiro Fólio). O desfecho da peça depende da resolução de um enigma absurdamente infantil. A acomodação final da Inglaterra no Império Romano pode adicionar uma complexidade tópica ao olhar obliquamente na direção do Rei James I da Inglaterra e seu sonho de assumir um papel central no forjar de uma Europa pacífica. Geralmente, a peça é uma combinação deliberada de história e romance, não importando o quão bem-sucedida seja sua tentativa de harmonizar esses gêneros; formalmente, ela opta pela instabilidade através da intrusão do cômico no sério. Um relacionamento implícito entre o psicossexual no domínio sexual, e o político no domínio público, aparece em todos os lugares, porém de maneira elusiva.
Através desses meios experimentais ousados, Shakespeare cria seu mundo dramático de acidente e desígnio, de justaposições peculiares e simetria. O dramaturgo escolhe meios experimentais e extravagantes para unir os elementos díspares e de exibir a falta de uma resolução perfeitamente fluida, mesmo enquanto sugere um sentido global de propósito e harmonia que as testemunhas humanas podem apenas imperfeitamente compreender. Júpiter torna-se o porta-voz da visão providencial em seu papel de deus ex machina – literalmente ilustrando este termo, pois “descende” do teto do palco por meio de algum dispositivo mecânico. A cena dessa intervenção divina (5.4) é tão flagrantemente irrealista que, como vimos, muitos críticos desejaram isentar Shakespeare de tê-la escrito, porém essa própria irrealidade é a chave para o final da peça. Júpiter coloca o sofrimento humano da peça em uma perspectiva mais ampla: “A quem eu mais amo eu marco, para dar o meu presente, / Quanto mais demorado, mais encantado. Fique contente” (5.4.101-2). Na visão tragicômica, o sofrimento é a manifestação de um desígnio engendrado e supervisionado por uma amável deidade, para testar e fortalecer à humanidade. Entendida assim, o teste afirma à força de Imogênia, mostra a Póstumo uma razão para estimar o que iria, pelo contrário, destruir, e, até mesmo recupera o agente do mal pelo qual o teste foi colocado em operação. Como Caio Lúcio insiste para o há muito sofredor Fidele, “Algumas vezes, subimos mais, após alguns reveses” (4.2.406).
No teatro, Cimbelino requer efeitos sensacionais. O século dezenove frequentemente utilizou o esplendor opulento, como nas interpretações custosamente realistas de Henry Irving da Inglaterra Celta e da Roma antiga, em sua produção de 1896, no Teatro Lyceum, em Londres. Interpretações mais recentes preferiram um tipo mais atual de habilidade teatral. Robin Phillips, em Stratford, Canada, em 1986, encenou às cenas de batalhas com vestes da Primeira Guerra Mundial, com Júpiter como um piloto com óculos de aviador, aparecendo de cima, em uma erupção de luz. O País de Gales era a terra primitiva do Tarzan. Os diretores têm que escolher se interpretam à epifania de Júpiter como um romance convencional, enfatizando sua surpresa, ou parodiam à cena como uma extravagante impossibilidade; se as plateias riem, os atores irão para a paródia e o exagero. Se a própria peça, ousadamente, corteja à improbabilidade, os estilos de performance têm mais chances de serem bem-sucedidos quando a produção está consciente de suas próprias invenções. O romance torna-se metateatral; o espaço teatral torna-se um local de virtuosidade mágica, inspirando nas plateias um consentimento com a “verdade” da história, como um artifício teatral em seu melhor e como seu melhor pretexto.