A tragédia do príncipe Hamlet inicia-se com a aparição do fantasma de seu pai, que pede vingança por sua morte. O fantasma revela que fora assassinado pelo irmão, que se casou com a rainha viúva e usurpou o trono real. O fantasma pede que o filho o vingue e propõe uma única restrição: Hamlet deve poupar sua mãe e “deixar que o céu a julgue” (Leave her to heaven) (1.5).
Na quarta e última cena do Terceiro Ato, o príncipe Hamlet, um homem até então ponderado, julga que o rei Cláudio está oculto atrás de uma tapeçaria e decide matá-lo. O desastrado episódio da morte acidental de Polônio, o conselheiro do rei, é uma das cenas decisivas da tragédia, que se desenvolve nos dois atos seguintes.
Mesmo antes da morte do conselheiro, o rei Cláudio manifestava seu interesse de enviar Hamlet à Inglaterra. O rei menciona o assunto pela primeira vez para o próprio Polônio, no fim da primeira cena do Terceiro Ato, após a discussão entre o príncipe e Ofélia: “Tomei uma pronta determinação: ele irá imediatamente à Inglaterra, para cobrar tributos atrasados que nos são devidos” (I have in quick determination/ Thus set it down: —he shall with speed to England/ For the demand of our neglected tribute) (3.1). Aparentemente o rei preparava o terreno para, mais tarde, livrar-se de Hamlet.
O rei volta ao assunto no início da terceira cena do Terceiro Ato, desta vez em despacho com Rosencrantz e Guildenstern:
“Não gosto dele, nem é seguro para nós
Deixar sua loucura à solta. Portanto, preparem-se.
Despacharei suas credenciais
E ele irá à Inglaterra com vocês.”
“I like him not; nor stands it safe with us
To let his madness range. Therefore prepare you;
I your commission will forthwith despatch,
And he to England shall along with you” (3.3)
Contudo, o rei só manifesta sua intenção de matar Hamlet no fim da terceira cena do Quarto Ato, num solilóquio no qual ele se refere claramente às “cartas escritas para este fim, a morte imediata de Hamlet” (By letters conjuring to that effect,/ The present death of Hamlet) (4.3).
O príncipe confiava em Rosencrantz e Guildenstern “como em cobras venenosas” (as I will adders fang’d) (3.4), como ele disse à mãe, pouco após revelar que viajaria à Inglaterra. Desta forma, não é de admirar que, durante a viagem, ele tenha bisbilhotado as credenciais que seus companheiros levavam. Esta decisão foi tomada por um impulso, como o príncipe revelou ao amigo Horácio:
“Nosso atrevimento às vezes nos presta um bom serviço
Quando fracassam nossos planos mais caros: isso nos deve ensinar
Que há uma divindade que lavra nossos desígnios,
Não importa quão toscamente projetados”
“Our indiscretion sometimes serves us well,
When our deep plots do fail: and that should teach us
There’s a divinity that shapes our ends,
Rough-hew them how we will” (5.2)
Mais adiante, o episódio do navio pirata permitiu que Hamlet retornasse são e salvo à Dinamarca. Sua vida, no entanto, foi salva apenas temporariamente. No livro “A Ficção Cética”, Gustavo Bernardo Krause (1) nos ensina que se fecharam sobre o herói trágico “as garras da Moira, ou seja, do destino cego, do qual, quanto mais se foge, mais se corre ao encontro”.
O destino irreversível foi objeto de um conhecido poema de Alan Seeger (1888-1916), intitulado “Tenho um Encontro Marcado com a Morte” (I have a rendezvous with Death). Seeger, um escritor-soldado norte-americano, morreu aos 28 anos num campo de batalha na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Talvez inconscientemente, ele parecia prever seu fim. As duas primeiras linhas do poema dizem:
“Tenho um encontro marcado com a morte,
Em alguma barricada disputada”
“I have a rendezvous with Death
At some disputed barricade”
No fim do poema percebe-se que seu destino tem algo em comum com o de Hamlet:
“E sou fiel à minha palavra empenhada
Não faltarei àquele encontro.”
“And I to my pledged word am true
I shall not fail that rendezvous.”
Entre nós, o poeta pernambucano Manuel Bandeira (1886-1968), vítima de tuberculose aos dezoito anos, teve seu encontro com a morte felizmente adiado. É dele este verdadeiro hino à vida, na crônica “O Momento Mais Inesquecível”, do livro “Andorinha, Andorinha”:
“Vivemos anos apreendendo um perigo imaginário que não acontece; somos surpreendidos por uma desgraça em que jamais havíamos pensado. A sabedoria está em pôr o coração à larga e entregar a alma a Deus.”
Apropriadamente, o poeta (2) dedica uma crônica a Alan Seeger, intitulada “Os que Marcam Rendez-vous com a Morte”, em suas “Crônicas da Província do Brasil”.
Referências bibliográficas
1 – KRAUSE, Gustavo Bernardo. A ficção cética. 1ª edição. São Paulo: Annablume, 2004. 274p.
2 – BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa. 4ª edição, reimpressão. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S. A., 1986. Volume único.