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O famoso solilóquio de Hamlet está reproduzido a seguir, numa tradução primorosa de Machado de Assis (Obras Completas, Nova Aguilar, 1986, terceiro volume):

\”Ser ou não ser, eis a questão. Acaso
É mais nobre a cerviz curvar aos golpes
Da ultrajosa fortuna, ou já lutando
Extenso mar vencer de acerbos males?
Morrer, dormir, não mais. E um sono apenas,
Que as angústias extingue e à carne a herança
Da nossa dor eternamente acaba,
Sim, cabe ao homem suspirar por ele.
Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe?
Ai, eis a dúvida. Ao perpétuo sono,
Quando o lodo mortal despido houvermos,
Que sonhos hão de vir? Pesá-lo cumpre.
Essa a razão que os lutuosos dias
Alonga do infortúnio. Quem do tempo
Sofrer quisera ultrajes e castigos,
Injúrias da opressão, baldões de orgulho,
Do mal prezado amor choradas mágoas,
Das leis a inércia, dos mandões a afronta,
E o vão desdém que de rasteiras almas
O paciente mérito recebe,
Quem, se na ponta da despida lâmina
Lhe acenara o descanso? Quem ao peso
De uma vida de enfados e misérias
Quereria gemer, se não sentira
Terror de alguma não sabida coisa
Que aguarda o homem para lá da morte,
Esse eterno país misterioso
Donde um viajor sequer há regressado?
Este só pensamento enleia o homem;
Este nos leva a suportar as dores
Já sabidas de nós, em vez de abrirmos
Caminho aos males que o futuro esconde;
E a todos acovarda a consciência.
Assim da reflexão à luz mortiça
A viva cor da decisão desmaia;
E o firme, essencial cometimento,
Que esta idéia abalou, desvia o curso,
Perde-se, até de ação perder o nome.\”

(To be, or not to be, —that is the question: —
Whether ’tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles,
And by opposing end them? —To die, —to sleep; —
No more; and by a sleep to say we end
The heart-ache, and the thousand natural shocks
That flesh is heir to, —’tis a consummation
Devoutly to be wish’d. To die, —to sleep; —
To sleep! perchance to dream: — ay, there’s the rub;
For in that sleep of death what dreams may come,
When we have shuffled off this mortal coil,
Must give us pause: there’s the respect
That makes calamity of so long life:
For who would bear the whips and scorns of time,
The oppressor’s wrong, the proud man’s contumely,
The pangs of despis’d love, the law’s delay,
The insolence of office, and the spurns
That patient merit of the unworthy takes,
When he himself might his quietus make
With a bare bodkin? Who would these fardels bear
To grunt and sweat under a weary life,
But that the dread of something after death, —
The undiscover’d country, from whose bourn
No traveller returns, —puzzles the will,
And makes us rather bear those ills we have
Then fly to others that we know not of?
Thus conscience does make cowards of us all;
And thus the native hue of resolution
Is sicklied o’er with the pale cast of thought;
And enterprises of great pith and moment,
With this regard their currents turn awry,
And lose the name of action.)

Este solilóquio é, antes de tudo, uma meditação sobre a morte: “Que aguarda o homem para lá da morte,/ Esse eterno país misterioso/ Donde um viajor sequer há regressado\”? (But that the dread of something after death, —/ The undiscover’d country, from whose bourn/ No traveller returns).

Curiosamente, Machado de Assis se refere à \”undiscovered country\” no primeiro capítulo das “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, nestas palavras do personagem que dá título ao livro, ao narrar sua própria morte: “foi assim que me encaminhei para o \’undiscovered country\’ de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego como quem se retira tarde do espetáculo.”

O poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) faz a mesma pergunta hamletiana, num tom bem mais ameno, numa crônica em forma de poema publicada pelo Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, no dia 17 de abril de 1977. Esta crônica intitula-se “Manuel Bandeira Faz Novent’anos”, em homenagem ao poeta, falecido dez anos antes. Nela Drummond indaga:

“Que lado, poeta, é o lado de lá,
Não me dirás, em confiança?”

Por que razão Hamlet medita sobre a morte? Ele pretenderia se suicidar, como interpretam alguns? Não, não se trata disso. Ele teme a morte, uma possibilidade concreta para quem enfrenta um adversário poderoso e arguto como o rei. Afinal, “que sonhos hão de vir” deste “perpétuo sono”? Como pergunta Drummond, o que haveria do “lado de lá”?

O príncipe teme que desvaneça a “viva cor da decisão”(the native hue of resolution), isto é, que ele não leve em frente sua missão de vingar o pai. Além disso, ele se refere nas últimas linhas ao seu “firme, essencial cometimento” (enterprises of great pith and moment.) Ora, quem tem algo importante a fazer não pensa em se suicidar.

Em “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, há uma reflexão análoga. Trata-se de uma décima (estrofe de dez versos), de autoria do estudante Lourenço (Lorenzo), conforme segue, numa tradução dos Viscondes de Castilho e Azevedo (Dom Quixote, Livro 2, cap.18):

\”Viver em perplexa vida,
Ora esperando, ora temendo,
É morte mui conhecida,
E é muito melhor morrendo
Buscar para a dor saída.
Eu preferia morrer,
Mas não o devo querer,
Pois com discurso melhor
Me dá a vida o temor
Do que está para acontecer.\”

(Vivir en perpleja vida,
ya esperando, ya temiendo:
es muerte muy conocida,
y es mucho mejor muriendo
buscar al dolor salida.
A mí me fuera interés
acabar, mas no lo es,
pues, con discurso mejor,
me da la vida el temor
de lo que será después.)

À luz do “temor do que está para acontecer”, dos dois últimos versos cervantinos, o texto hamletiano pode ser também interpretado como uma celebração ao dom da vida.

Finalmente, há uma curiosa contradição neste famoso solilóquio. Hamlet afirma que “nenhum viajante retorna” (no traveller returns) deste “ país misterioso” (undiscover’d country). No entanto, o fantasma de seu pai é uma exceção evidente.O famoso solilóquio de Hamlet está reproduzido a seguir, numa tradução primorosa de Machado de Assis (Obras Completas, Nova Aguilar, 1986, terceiro volume):

\”Ser ou não ser, eis a questão. Acaso
É mais nobre a cerviz curvar aos golpes
Da ultrajosa fortuna, ou já lutando
Extenso mar vencer de acerbos males?
Morrer, dormir, não mais. E um sono apenas,
Que as angústias extingue e à carne a herança
Da nossa dor eternamente acaba,
Sim, cabe ao homem suspirar por ele.
Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe?
Ai, eis a dúvida. Ao perpétuo sono,
Quando o lodo mortal despido houvermos,
Que sonhos hão de vir? Pesá-lo cumpre.
Essa a razão que os lutuosos dias
Alonga do infortúnio. Quem do tempo
Sofrer quisera ultrajes e castigos,
Injúrias da opressão, baldões de orgulho,
Do mal prezado amor choradas mágoas,
Das leis a inércia, dos mandões a afronta,
E o vão desdém que de rasteiras almas
O paciente mérito recebe,
Quem, se na ponta da despida lâmina
Lhe acenara o descanso? Quem ao peso
De uma vida de enfados e misérias
Quereria gemer, se não sentira
Terror de alguma não sabida coisa
Que aguarda o homem para lá da morte,
Esse eterno país misterioso
Donde um viajor sequer há regressado?
Este só pensamento enleia o homem;
Este nos leva a suportar as dores
Já sabidas de nós, em vez de abrirmos
Caminho aos males que o futuro esconde;
E a todos acovarda a consciência.
Assim da reflexão à luz mortiça
A viva cor da decisão desmaia;
E o firme, essencial cometimento,
Que esta idéia abalou, desvia o curso,
Perde-se, até de ação perder o nome.\”

(To be, or not to be, —that is the question: —
Whether ’tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles,
And by opposing end them? —To die, —to sleep; —
No more; and by a sleep to say we end
The heart-ache, and the thousand natural shocks
That flesh is heir to, —’tis a consummation
Devoutly to be wish’d. To die, —to sleep; —
To sleep! perchance to dream: — ay, there’s the rub;
For in that sleep of death what dreams may come,
When we have shuffled off this mortal coil,
Must give us pause: there’s the respect
That makes calamity of so long life:
For who would bear the whips and scorns of time,
The oppressor’s wrong, the proud man’s contumely,
The pangs of despis’d love, the law’s delay,
The insolence of office, and the spurns
That patient merit of the unworthy takes,
When he himself might his quietus make
With a bare bodkin? Who would these fardels bear
To grunt and sweat under a weary life,
But that the dread of something after death, —
The undiscover’d country, from whose bourn
No traveller returns, —puzzles the will,
And makes us rather bear those ills we have
Then fly to others that we know not of?
Thus conscience does make cowards of us all;
And thus the native hue of resolution
Is sicklied o’er with the pale cast of thought;
And enterprises of great pith and moment,
With this regard their currents turn awry,
And lose the name of action.)

Este solilóquio é, antes de tudo, uma meditação sobre a morte: “Que aguarda o homem para lá da morte,/ Esse eterno país misterioso/ Donde um viajor sequer há regressado\”? (But that the dread of something after death, —/ The undiscover’d country, from whose bourn/ No traveller returns).

Curiosamente, Machado de Assis se refere à \”undiscovered country\” no primeiro capítulo das “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, nestas palavras do personagem que dá título ao livro, ao narrar sua própria morte: “foi assim que me encaminhei para o \’undiscovered country\’ de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego como quem se retira tarde do espetáculo.”

O poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) faz a mesma pergunta hamletiana, num tom bem mais ameno, numa crônica em forma de poema publicada pelo Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, no dia 17 de abril de 1977. Esta crônica intitula-se “Manuel Bandeira Faz Novent’anos”, em homenagem ao poeta, falecido dez anos antes. Nela Drummond indaga:

“Que lado, poeta, é o lado de lá,
Não me dirás, em confiança?”

Por que razão Hamlet medita sobre a morte? Ele pretenderia se suicidar, como interpretam alguns? Não, não se trata disso. Ele teme a morte, uma possibilidade concreta para quem enfrenta um adversário poderoso e arguto como o rei. Afinal, “que sonhos hão de vir” deste “perpétuo sono”? Como pergunta Drummond, o que haveria do “lado de lá”?

O príncipe teme que desvaneça a “viva cor da decisão”(the native hue of resolution), isto é, que ele não leve em frente sua missão de vingar o pai. Além disso, ele se refere nas últimas linhas ao seu “firme, essencial cometimento” (enterprises of great pith and moment.) Ora, quem tem algo importante a fazer não pensa em se suicidar.

Em “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, há uma reflexão análoga. Trata-se de uma décima (estrofe de dez versos), de autoria do estudante Lourenço (Lorenzo), conforme segue, numa tradução dos Viscondes de Castilho e Azevedo (Dom Quixote, Livro 2, cap.18):

\”Viver em perplexa vida,
Ora esperando, ora temendo,
É morte mui conhecida,
E é muito melhor morrendo
Buscar para a dor saída.
Eu preferia morrer,
Mas não o devo querer,
Pois com discurso melhor
Me dá a vida o temor
Do que está para acontecer.\”

(Vivir en perpleja vida,
ya esperando, ya temiendo:
es muerte muy conocida,
y es mucho mejor muriendo
buscar al dolor salida.
A mí me fuera interés
acabar, mas no lo es,
pues, con discurso mejor,
me da la vida el temor
de lo que será después.)

À luz do “temor do que está para acontecer”, dos dois últimos versos cervantinos, o texto hamletiano pode ser também interpretado como uma celebração ao dom da vida.

Finalmente, há uma curiosa contradição neste famoso solilóquio. Hamlet afirma que “nenhum viajante retorna” (no traveller returns) deste “ país misterioso” (undiscover’d country). No entanto, o fantasma de seu pai é uma exceção evidente.O famoso solilóquio de Hamlet está reproduzido a seguir, numa tradução primorosa de Machado de Assis (Obras Completas, Nova Aguilar, 1986, terceiro volume):

\”Ser ou não ser, eis a questão. Acaso
É mais nobre a cerviz curvar aos golpes
Da ultrajosa fortuna, ou já lutando
Extenso mar vencer de acerbos males?
Morrer, dormir, não mais. E um sono apenas,
Que as angústias extingue e à carne a herança
Da nossa dor eternamente acaba,
Sim, cabe ao homem suspirar por ele.
Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe?
Ai, eis a dúvida. Ao perpétuo sono,
Quando o lodo mortal despido houvermos,
Que sonhos hão de vir? Pesá-lo cumpre.
Essa a razão que os lutuosos dias
Alonga do infortúnio. Quem do tempo
Sofrer quisera ultrajes e castigos,
Injúrias da opressão, baldões de orgulho,
Do mal prezado amor choradas mágoas,
Das leis a inércia, dos mandões a afronta,
E o vão desdém que de rasteiras almas
O paciente mérito recebe,
Quem, se na ponta da despida lâmina
Lhe acenara o descanso? Quem ao peso
De uma vida de enfados e misérias
Quereria gemer, se não sentira
Terror de alguma não sabida coisa
Que aguarda o homem para lá da morte,
Esse eterno país misterioso
Donde um viajor sequer há regressado?
Este só pensamento enleia o homem;
Este nos leva a suportar as dores
Já sabidas de nós, em vez de abrirmos
Caminho aos males que o futuro esconde;
E a todos acovarda a consciência.
Assim da reflexão à luz mortiça
A viva cor da decisão desmaia;
E o firme, essencial cometimento,
Que esta idéia abalou, desvia o curso,
Perde-se, até de ação perder o nome.\”

(To be, or not to be, —that is the question: —
Whether ’tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles,
And by opposing end them? —To die, —to sleep; —
No more; and by a sleep to say we end
The heart-ache, and the thousand natural shocks
That flesh is heir to, —’tis a consummation
Devoutly to be wish’d. To die, —to sleep; —
To sleep! perchance to dream: — ay, there’s the rub;
For in that sleep of death what dreams may come,
When we have shuffled off this mortal coil,
Must give us pause: there’s the respect
That makes calamity of so long life:
For who would bear the whips and scorns of time,
The oppressor’s wrong, the proud man’s contumely,
The pangs of despis’d love, the law’s delay,
The insolence of office, and the spurns
That patient merit of the unworthy takes,
When he himself might his quietus make
With a bare bodkin? Who would these fardels bear
To grunt and sweat under a weary life,
But that the dread of something after death, —
The undiscover’d country, from whose bourn
No traveller returns, —puzzles the will,
And makes us rather bear those ills we have
Then fly to others that we know not of?
Thus conscience does make cowards of us all;
And thus the native hue of resolution
Is sicklied o’er with the pale cast of thought;
And enterprises of great pith and moment,
With this regard their currents turn awry,
And lose the name of action.)

Este solilóquio é, antes de tudo, uma meditação sobre a morte: “Que aguarda o homem para lá da morte,/ Esse eterno país misterioso/ Donde um viajor sequer há regressado\”? (But that the dread of something after death, —/ The undiscover’d country, from whose bourn/ No traveller returns).

Curiosamente, Machado de Assis se refere à \”undiscovered country\” no primeiro capítulo das “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, nestas palavras do personagem que dá título ao livro, ao narrar sua própria morte: “foi assim que me encaminhei para o \’undiscovered country\’ de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego como quem se retira tarde do espetáculo.”

O poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) faz a mesma pergunta hamletiana, num tom bem mais ameno, numa crônica em forma de poema publicada pelo Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, no dia 17 de abril de 1977. Esta crônica intitula-se “Manuel Bandeira Faz Novent’anos”, em homenagem ao poeta, falecido dez anos antes. Nela Drummond indaga:

“Que lado, poeta, é o lado de lá,
Não me dirás, em confiança?”

Por que razão Hamlet medita sobre a morte? Ele pretenderia se suicidar, como interpretam alguns? Não, não se trata disso. Ele teme a morte, uma possibilidade concreta para quem enfrenta um adversário poderoso e arguto como o rei. Afinal, “que sonhos hão de vir” deste “perpétuo sono”? Como pergunta Drummond, o que haveria do “lado de lá”?

O príncipe teme que desvaneça a “viva cor da decisão”(the native hue of resolution), isto é, que ele não leve em frente sua missão de vingar o pai. Além disso, ele se refere nas últimas linhas ao seu “firme, essencial cometimento” (enterprises of great pith and moment.) Ora, quem tem algo importante a fazer não pensa em se suicidar.

Em “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, há uma reflexão análoga. Trata-se de uma décima (estrofe de dez versos), de autoria do estudante Lourenço (Lorenzo), conforme segue, numa tradução dos Viscondes de Castilho e Azevedo (Dom Quixote, Livro 2, cap.18):

\”Viver em perplexa vida,
Ora esperando, ora temendo,
É morte mui conhecida,
E é muito melhor morrendo
Buscar para a dor saída.
Eu preferia morrer,
Mas não o devo querer,
Pois com discurso melhor
Me dá a vida o temor
Do que está para acontecer.\”

(Vivir en perpleja vida,
ya esperando, ya temiendo:
es muerte muy conocida,
y es mucho mejor muriendo
buscar al dolor salida.
A mí me fuera interés
acabar, mas no lo es,
pues, con discurso mejor,
me da la vida el temor
de lo que será después.)

À luz do “temor do que está para acontecer”, dos dois últimos versos cervantinos, o texto hamletiano pode ser também interpretado como uma celebração ao dom da vida.

Finalmente, há uma curiosa contradição neste famoso solilóquio. Hamlet afirma que “nenhum viajante retorna” (no traveller returns) deste “ país misterioso” (undiscover’d country). No entanto, o fantasma de seu pai é uma exceção evidente.O famoso solilóquio de Hamlet está reproduzido a seguir, numa tradução primorosa de Machado de Assis (Obras Completas, Nova Aguilar, 1986, terceiro volume):

\”Ser ou não ser, eis a questão. Acaso
É mais nobre a cerviz curvar aos golpes
Da ultrajosa fortuna, ou já lutando
Extenso mar vencer de acerbos males?
Morrer, dormir, não mais. E um sono apenas,
Que as angústias extingue e à carne a herança
Da nossa dor eternamente acaba,
Sim, cabe ao homem suspirar por ele.
Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe?
Ai, eis a dúvida. Ao perpétuo sono,
Quando o lodo mortal despido houvermos,
Que sonhos hão de vir? Pesá-lo cumpre.
Essa a razão que os lutuosos dias
Alonga do infortúnio. Quem do tempo
Sofrer quisera ultrajes e castigos,
Injúrias da opressão, baldões de orgulho,
Do mal prezado amor choradas mágoas,
Das leis a inércia, dos mandões a afronta,
E o vão desdém que de rasteiras almas
O paciente mérito recebe,
Quem, se na ponta da despida lâmina
Lhe acenara o descanso? Quem ao peso
De uma vida de enfados e misérias
Quereria gemer, se não sentira
Terror de alguma não sabida coisa
Que aguarda o homem para lá da morte,
Esse eterno país misterioso
Donde um viajor sequer há regressado?
Este só pensamento enleia o homem;
Este nos leva a suportar as dores
Já sabidas de nós, em vez de abrirmos
Caminho aos males que o futuro esconde;
E a todos acovarda a consciência.
Assim da reflexão à luz mortiça
A viva cor da decisão desmaia;
E o firme, essencial cometimento,
Que esta idéia abalou, desvia o curso,
Perde-se, até de ação perder o nome.\”

(To be, or not to be, —that is the question: —
Whether ’tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles,
And by opposing end them? —To die, —to sleep; —
No more; and by a sleep to say we end
The heart-ache, and the thousand natural shocks
That flesh is heir to, —’tis a consummation
Devoutly to be wish’d. To die, —to sleep; —
To sleep! perchance to dream: — ay, there’s the rub;
For in that sleep of death what dreams may come,
When we have shuffled off this mortal coil,
Must give us pause: there’s the respect
That makes calamity of so long life:
For who would bear the whips and scorns of time,
The oppressor’s wrong, the proud man’s contumely,
The pangs of despis’d love, the law’s delay,
The insolence of office, and the spurns
That patient merit of the unworthy takes,
When he himself might his quietus make
With a bare bodkin? Who would these fardels bear
To grunt and sweat under a weary life,
But that the dread of something after death, —
The undiscover’d country, from whose bourn
No traveller returns, —puzzles the will,
And makes us rather bear those ills we have
Then fly to others that we know not of?
Thus conscience does make cowards of us all;
And thus the native hue of resolution
Is sicklied o’er with the pale cast of thought;
And enterprises of great pith and moment,
With this regard their currents turn awry,
And lose the name of action.)

Este solilóquio é, antes de tudo, uma meditação sobre a morte: “Que aguarda o homem para lá da morte,/ Esse eterno país misterioso/ Donde um viajor sequer há regressado\”? (But that the dread of something after death, —/ The undiscover’d country, from whose bourn/ No traveller returns).

Curiosamente, Machado de Assis se refere à \”undiscovered country\” no primeiro capítulo das “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, nestas palavras do personagem que dá título ao livro, ao narrar sua própria morte: “foi assim que me encaminhei para o \’undiscovered country\’ de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego como quem se retira tarde do espetáculo.”

O poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) faz a mesma pergunta hamletiana, num tom bem mais ameno, numa crônica em forma de poema publicada pelo Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, no dia 17 de abril de 1977. Esta crônica intitula-se “Manuel Bandeira Faz Novent’anos”, em homenagem ao poeta, falecido dez anos antes. Nela Drummond indaga:

“Que lado, poeta, é o lado de lá,
Não me dirás, em confiança?”

Por que razão Hamlet medita sobre a morte? Ele pretenderia se suicidar, como interpretam alguns? Não, não se trata disso. Ele teme a morte, uma possibilidade concreta para quem enfrenta um adversário poderoso e arguto como o rei. Afinal, “que sonhos hão de vir” deste “perpétuo sono”? Como pergunta Drummond, o que haveria do “lado de lá”?

O príncipe teme que desvaneça a “viva cor da decisão”(the native hue of resolution), isto é, que ele não leve em frente sua missão de vingar o pai. Além disso, ele se refere nas últimas linhas ao seu “firme, essencial cometimento” (enterprises of great pith and moment.) Ora, quem tem algo importante a fazer não pensa em se suicidar.

Em “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, há uma reflexão análoga. Trata-se de uma décima (estrofe de dez versos), de autoria do estudante Lourenço (Lorenzo), conforme segue, numa tradução dos Viscondes de Castilho e Azevedo (Dom Quixote, Livro 2, cap.18):

\”Viver em perplexa vida,
Ora esperando, ora temendo,
É morte mui conhecida,
E é muito melhor morrendo
Buscar para a dor saída.
Eu preferia morrer,
Mas não o devo querer,
Pois com discurso melhor
Me dá a vida o temor
Do que está para acontecer.\”

(Vivir en perpleja vida,
ya esperando, ya temiendo:
es muerte muy conocida,
y es mucho mejor muriendo
buscar al dolor salida.
A mí me fuera interés
acabar, mas no lo es,
pues, con discurso mejor,
me da la vida el temor
de lo que será después.)

À luz do “temor do que está para acontecer”, dos dois últimos versos cervantinos, o texto hamletiano pode ser também interpretado como uma celebração ao dom da vida.

Finalmente, há uma curiosa contradição neste famoso solilóquio. Hamlet afirma que “nenhum viajante retorna” (no traveller returns) deste “ país misterioso” (undiscover’d country). No entanto, o fantasma de seu pai é uma exceção evidente.