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          Shakespeare deve ter tido alguns relativos fracassos no teatro, assim como enormes sucessos. Tróilo e Créssida parece ter sido um relativo fracasso, ao menos no palco, em sua forma original. Como veremos, é questionável se ela chegou a ser produzida. É uma peça amarga sobre uma guerra inconclusiva e um caso de amor frustrado, muito distinta de qualquer coisa que Shakespeare havia escrito antes em suas comédias e nas peças históricas Inglesas. Sua sombria sátira de impasse político parece direcionada, em parte, à história infeliz da rebelião malograda do Conde de Essex em 1601; como muitos dos guerreiros em Tróilo e Créssida, Essex foi um herói manchado, o qual o carisma foi vítima de suas próprias ambições ego maníacas e do humor de ansiosa impotência que pairava sobre os últimos anos da Rainha Elizabeth. A peça é anormalmente elíptica em sua linguagem, como se Shakespeare deliberadamente adotasse um novo e contorcido estilo para expressar os paradoxos do caos político e psicológico que gostaria de descrever. Um importante tópico da peça é a fama, ou antes a notoriedade, pois a maioria dos principais personagens de Shakespeare vêm a ele na história com amadurecida identidade de anti-heróis: Créssida, a mulher infiel; Tróilo, o homem rejeitado; Pândaro, o alcoviteiro; e Aquiles, o assassino de Heitor. A linguagem de Shakespeare tem que lidar com identidades despedaçadas, com a subjetividade instável da teimosia humana, e com a exaustão espiritual e a neurose. Talvez alguns membros da audiência de Shakespeare não estavam preparados para tudo isso.

          Hoje, pelo contrário, a peça goza de autoestima crítica e se mostra teatralmente poderosa. O que percebemos é que a argúcia sagaz, sua representação satírica da guerra e seu retrato desalentador da infidelidade sexual pede uma resposta muito diferente daquela requerida pela apreciação de Sonho de uma Noite de Verão e Como Gostais ou 1 Henrique IV. Tróilo e Créssida, escrita provavelmente no final de 1601, pouco antes da entrada no Registro Stationers em 1603, está afinada com o novo e mais sombrio humor emergente durante esse período da obra de Shakespeare, e da obra de seus contemporâneos.

          No início dos anos 1600, a sátira dramática gozava de uma notoriedade altamente visível e repentina. Servindo, em larga parte, às audiências seletas e cortesãs, e graças a um novo ímpeto pela reabertura das companhias dos garotos atores nos teatros internos em 1599, o drama satírico rapidamente empregou o talento de Ben Jonson, John Marston e George Chapman, assim como outros dramaturgos sofisticados. Jonson lançou uma série de peças que chamou de sátiras cômicas, nas quais ele repreendia os cidadãos londrinos e presumidamente ensinava boa conduta para a corte também. A chamada Guerra dos Teatros entre Jonson, Marston e Thomas Dekker, apesar de parcialmente um conflito pessoal sem consequências, foi também um sério debate entre os palcos públicos e os mais cortesãos e seletos sobre o uso correto da sátira. Os dramaturgos públicos se queixavam da ousadia difamatória da nova sátira e eram irritados pela preferência de algumas audiências por esse novo fenômeno teatral; mesmo Shakespeare inquieta-se em Hamlet (2.2.353-79), sobre a rivalidade. Entretanto, como um artista em busca por novas formas, ele também respondeu com interesse positivo. Experimentou com um tipo de roteiro satírico jonsoniano a exposição de Malvólio em Noite de Reis (1600-1602). Tróilo e Créssida parece ter sido outro experimento mais ambicioso, compreendendo um tipo diferente de sátira, não de exibição arguciosa, mas de desilusão.

          Esse gênero satírico é difícil de classificar de acordo com as definições clássicas de tragédia, comédia ou história, mesmo se detém seu próprio argumento definido que faz sentido especial em termos de nosso teatro moderno. A peça é parcialmente trágica pois apresenta a queda do grande Heitor e prefigura a queda de Troia, ainda que sua história de amor meramente definhe em estranhamento frustrado sem a morte de nenhum amante. A peça é cômica somente no sentido em que é comédia negra ou comédia do absurdo. Sua lasciva estimulação sexual e seu humor de paralisia espiritual conecta Tróilo e Créssida às comédias problemas Bem Está o que Bem Acaba (cerca de 1601-1604) e Medida por Medida (1603-1604). A peça é chamada “história” em ambas as páginas-títulos primitivas e certamente lida com os grandes eventos da mais famosa guerra da história, mas a história se tornou essencialmente irônica. Nisso, Tróilo e Créssida representa uma culminação da exploração irônica de Shakespeare da história, que inicia-se nos impasses de Ricardo II ou Henrique IV e conforme retratado mais completamente nas ambiguidades sustentadas de Júlio César (1599). De qualquer forma que Shakespeare possa ter sido influenciado pela moda contemporânea da sátira nos teatros de garotos, sua própria sátira de desilusão é integral com seu desenvolvimento como um artista. Tróilo e Créssida é companheira adequada e contemporânea de Hamlet (cerca de 1599-1600). Como esta peça, ela invoca uma desordem universal que pode refletir na perda de um sentido seguro de confiança filosófica nas hierarquias medievais do antigo Cósmos ptolomaico centrado na Terra.

          Tróilo e Créssida alcança seu efeito de desilusão através da repetida justaposição irônica dos ideais heroicos e realidades manchadas. Apesar de lidar com a maior guerra da história e um caso de amor renomado, nós como audiência sabemos que Troia e os amantes serão derrotados pela astúcia e infidelidade. Shakespeare parcialmente herda das suas fontes essa dualidade da grandeza épica e desalentada conclusão. Para aprender sobre a guerra, ele deveria conhecer a tradução de George Chapman da Ilíada de Homero (os quais os sete livros foram publicados em 1598) e, obviamente, o relato de Virgílio sobre a destruição de Troia, mas ele baseou-se mais particularmente em romances medievais: Recueil des Histoires de Troyes, de Raoul Lefevre, conforme traduzido e publicado por William Caxton, e talvez Troy Book de John Lydgate, derivado em parte de Historia Trojana de Guido delle Colonne. Esses romances eram troianos no ponto de vista e assim concerniam com a queda daquela cidade. Para a história de amor amarga, Shakespeare foi ao Troilus and Criseyde de Geoffrey Chaucer (cerca de 1385-1386), o qual derivava de um romance medieval do século doze Le Roman de Troie, de Benôit de Sainte-Maure, conforme ampliado e recontado em Il Filostrato de Boccaccio. A Criseyde de Chaucer é uma admirável e autocentrada jovem mulher, e o amor dela por Troilus captura o espírito da tradição do amor cortês sobre o qual a história foi baseada. Depois do final do século catorze, entretanto, a heroína de Chaucer sofreu um declínio em estima drástico. Em Testament of Cresseid de Robert Henryson, por exemplo, Créssida tornou-se uma leprosa e mendiga, a “lazara e fraudulenta espécie de Créssida” a qual Pistol alude em Henry V. O nome dela tornou-se sinônimo de infidelidade feminina, como Shakespeare ironicamente aponta em Tróilo e Créssida: “Deixe que todos os homens constantes sejam Tróilos, todas as mulheres falsas Créssidas e todos os alcoviteiros Pândaros” (3.2.201-3). Shakespeare está fascinado por esse fenômeno de declínio de reputações. Assim como o guerreiro ilustre Aquiles deve aprender que os tempos invejosos diminuem nossas melhores realizações e nos estigmatiza em nossas piores falhas, Tróilo, Créssida e Pândaro, todos antecipam às duradouras consequências em suas reputações de um relacionamento amoroso frustrado. A paixão pela qual eles comprometem-se tornou-se não somente um emblema de esperanças perdidas e promessas, mas também uma caricatura para as gerações futuras do desejo enervante e frustrado, promiscuidade e alcovitaria. Assim, Shakespeare encontra em seus materiais ambos o esplendor cavalheiresco e sua ruína.

          Estilisticamente, Shakespeare explora essa justaposição. Ele emprega convenções épicas mais do que lhe é costume. A narrativa começa, conforme o Prólogo nos informa, in media res, “começando no meio.” Símiles épicos adornam os discursos formais de Ulisses, Agamenon e Nestor. A retórica da persuasão faz um papel importante, como em Júlio César e outras peças Romanas. Os grandes nomes da antiguidade são exibidos para nós em uma chamada de heróis. Heitor, sobretudo, é um herói épico, apesar de na forma do romance medieval ele ser também o príncipe do cavalheirismo. Ele anseia em resolver a guerra por um desafio para um combate solo, em torneio, com a quebra das lanças e com cada guerreiro defendendo a honra de sua dama (1.3.264-83). Os gregos respondem por um tempo a essa excitante chamada para o combate. Ainda que, no contexto mais amplo da guerra em si mesma, com suas causas indignas, sua irresolução frustrante, e seu efeito debilitante na moral dos dois lados, o idealismo de Heitor não possa prevalecer. Do lado grego, a visão enobrecedora de Ulisses de “grau, prioridade e lugar” (1.3.86), pelo qual os céus mostram à humanidade o valor da ordem harmoniosa, serve mais para criticar e zombar a presente desordem do exército grego que oferecer-se como guia para a restauração daquela ordem. A convenção épica torna-se uma caricatura assombrada, conforme as aspirações cavalheirescas repetidamente dissolvem-se nas sórdidas insinuações de Tersites ou Pândaro. Apesar da maquinaria épica da peça, os deuses não são encontrados em lugar algum.

          Uma metáfora que prevalece é a da doença (assim como em Hamlet). A conduta insubordinada “infecta” (1.3.187) o corpo político. Os comandantes gregos esperam “medicar” [physic] (1.3.378) Aquiles para que suas virtudes, “como bom fruto em um prato infectado” não apodreça sem ser provado (2.3.119). Heitor deplora a forma que seus conterrâneos troianos “impetuosamente” escravizam a si mesmos ao caprichoso apetite (2.2.59). Em outro ponto, o amor é descrito como uma úlcera aberta e como uma coceira que deve ser coçada; Helena é “carniça contaminada” (4.1.73). Tersites, mais que todos, convida-nos a considerar ambos o amor e a guerra como dominados pela doença, afligidos pelas bolhas, pragas, cicatrizes, a “doença de ossos Napolitana” (sífilis), “letargias, paralisia, olhos remelados, fígados podres de sífilis, pulmões que assobiam, bexiga apostemada, ciáticas,” e mais (2.3.18 e 5.1.19-21). Pândaro termina a peça com uma nota similarmente vulgar ao zombar das prostitutas (Gansos de Winchester, ele as chama) e as “suadas” ou doenças venéreas.

          A guerra é tanto gloriosa quanto absurda. Ela provoca bravos feitos e sacrifícios heroicos. Ainda que corretamente rotulada pelo córico Prólogo como uma “disputa,” iniciada por causa de uma “tia velha,” a quem os gregos mantinham cativa, e Helena, a quem os troianos raptaram em represália. Ninguém acredita que a causa original justifique o massacre que se seguiu. Os cornos de Menelau são motivo de risadas obscenas no campo grego. Entre os troianos, Tróilo pode argumentar somente que ninguém devolve bens desgraçados; desde que toda a Troia consentiu no rapto de Helena, Troia deve continuar a guerra para manter sua honra. A guerra assim assume um momento lúgubre por si só. Os combatentes repetidamente descobrem que eles estão presos nas ironias da situação que ajudaram a fazer mas não podem desfazer. O desafio de Heitor para o combate homem a homem cai sobre Ajax, “filho da irmã de seu pai.” Aquiles, também, tem alianças no campo inimigo, pois está apaixonado pela filha de Príamo, Polyxena. Nas discussões entre os dois lados, os guerreiros saúdam uns aos outros como irmãos perdidos há tempos, apesar de eles jurarem aniquilar um ao outro no dia seguinte. Com condizente oximoro, Páris comenta sobre o paradoxo desse “mais desprezível gentil cumprimento,” esse “mais nobre amor odioso” (4.1.34-5). Somente um bárbaro pode ficar livre do remorso por uma paz que parece tão próxima e ainda tão longe. A guerra oferece tentações traiçoeiras para homens potencialmente valorosos, pervertendo a busca uma vez honrada de Aquiles por fama em ambição maníaca e um irresistível impulso em assassinar Heitor. História e tradição, sabemos, irão zombar de Aquiles pelo seu covarde feito. O colocará como um valentão antes que um soldado bravo, assim como Tróilo, Créssida, e Pândaro serão considerados como estereótipos de um homem enganado, uma prostituta e o alcoviteiro. Mesmo antes de matar Heitor, Aquiles vê sua reputação por bravura manchar-se pela sua inação, enquanto Ajax é elevado à proeminência pelas maquinações de Ulisses e dos outros generais.

          A tragédia de Heitor é, de seu próprio modo, não menos irônica. Mesmo se ele emerge como o mais amável e corajoso homem de ambos os lados e aconselha seus conterrâneos troianos em deixar Helena ir em resposta às “leis morais / Da natureza e das nações” (2.2.184-5), ele entretanto encerra o conselho de guerra resolvendo lutar com eles. Essa conclusão pode representar, em parte, uma realização que os outros irão lutar, em qualquer caso, e que ele deve por isso ser leais a eles, mas a escolha também reflete arrogância. Heitor não é diferente de Júlio César em seu orgulhoso repúdio aos sonhos premonitórios de sua esposa Andromache, das profecias loucas mas oraculares de sua irmã Cassandra, e sua própria convicção que a busca por honra de Troia deriva de um apetite doentio. Ele segue para sua morte porque “Os deuses ouviram-me jurar” (5.3.15). Seu caráter é seu destino. Mesmo suas compunções humanas, como Brutus, são mantidas contra ele; ele poupa a vida de Aquiles e é assassinado como recompensa. A guerra não é lugar para homens de escrúpulos, como Tróilo relembra seu irmão mais velho. Porém Heitor, ao menos, é o melhor homem por recursar a ser corrompido pela selvageria da guerra; nós honramos sua memória, mesmo se o vemos também como vítima inconsciente de um conflito sem sentido.

          Os amantes, também, são presos na armadilha da guerra – não somente Tróilo e Créssida, mas também Páris e Helena, Aquiles e Polyxena. Aquiles promete à Polyxena não lutar e então perder sua estimada oportunidade de fama; ironicamente, ele desperta para a ação vingativa somente na morte de um amigo homem, Pátroclo, que murmuram ser seu “servo másculo” ou “prostituta masculina” (5.1.15-17). Páris é obrigado a pedir para seu irmão Tróilo para retornar Créssida para os gregos, para que Páris continue a desfrutar de Helena. O que mais Páris pode fazer? “Não há ajuda,” ele reclama. “A disposição amarga do tempo / Haverá de ser assim” (4.1.49-51). Tróilo prepara sua própria ruína quando argumenta no conselho de guerra troiano que Helena deve ser mantida a todo custo; o custo, no final, é sua própria Créssida. Ele vê essa ironia uma vez: “Como minhas realizações zombam de mim!” (4.2.71); isto é, ele acabou de conquistá-la sexualmente e já tem que dá-la para que a guerra possa continuar com a reputação de Troia intacta e Helena manter-se na cama de Páris. O amor entre Tróilo e Créssida é reduzido pela guerra, que não tem consideração por seus interesses pessoais. Tróilo ganha Créssida depois de vários meses de cortejo, somente para perdê-la no próximo dia. Entretanto, como poderia o pai de Créssida, Calchas, saber da situação pessoal dela? Ele deseja apenas ter sua filha de volta. E, apesar dos líderes troianos saberem do caso de Tróilo, eles devem considerar primeiro os negócios do estado, como a troca de prisioneiros.

          Assim também deve Tróilo. Talvez a maior ironia é que ele mesmo deve escolher enviar Créssida aos gregos, colocando o dever a frente dos anseios pessoais. Ele parece não ter escolha real, mas o resultado é envolto por absurdos, e é algo que Créssida não pode compreender. Ela estava determinada em ficar, não importando o que o mundo iria pensar; o amor apaixonado é mais importante para ela. Apesar de Créssida ser introduzida a nós como uma mulher sarcástica, mundana, urbana, zombeteira, autocentrada, arguciosa, não sentimental e mesmo maquinadora e oportunista, e, sobretudo, cuidadosa com compromissos emocionais, seu breve envolvimento com Tróilo toca a emoção profunda. Por um momento, ela captura de relance algo precioso a qual poderia apoiar-se, algo genuíno em seu mundo instável. Porém Tróilo, absorto entre amor e a obrigação, consente na partida dela para o campo grego. Lá ela reverte para seu antigo ego desiludido, comportando-se como é esperado dela. Quem merecia quem? Créssida entrega-se, odiando-se ao fazê-lo. Ela sabe que não pode ser verdadeira porque, como muitas mulheres com sua experiência, ela é conduzida pelo “Erro do nosso olho” e é assim a presa da insistência masculina (5.2.113). Sozinha e sem amigos no campo grego exceto seu negligente pai, ela volta-se para um homem autoconfiante e oportunista (Diomedes) que é perfeitamente cínico em relação às mulheres geralmente, mas que irá ao menos protegê-la contra os outros oficiais gregos famintos sexuais. Às vezes ela parece, a Ulisses pelo menos, uma daquelas “promíscuo espólio da oportunidade / E filha do jogo” (4.5.63-4). Ademais, essa rendição à vontade e o apetite nela não é gélido, e não acontece sem conflito interior. A fraqueza dela é emblemática de uma desordem universal e é causada parcialmente por isso. Na repulsiva interação entre guerra e amor, ambos homens e mulheres são impotentes em assumir seus verdadeiros sujeitos. Como o descontente Tersites conclui, “Depravação, depravação, ainda guerra e depravação; nada mais está na moda.”

          A história da impressão de Tróilo e Créssida é cheia de obscuridades que podem dar algum discernimento para a aparente falta de sucesso da peça no palco. Em 7 de Fevereiro de 1603, o impressor James Roberts deu entrada com seu nome no Registro da Companhia dos Stationers (isto é, editores e livreiros) para imprimir, “quando ele tiver suficiente autoridade para isso, o livro de Tróilo e Créssida conforme é atuado por meus Homens do Lorde Chamberlain.” Evidentemente a autorização para tal não veio, pois em 1609 a peça foi novamente registrada para R. Bonian e H. Walley e publicada por eles naquele ano in quarto como A História de Tróilo e Créssida. Conforme atuada pelos servos da Majestade o Rei no The Globe. Escrita por William Shakespeare. Imediatamente depois, e bem antes dessa impressão ter se esgotado, a página-título foi substituída, como se segue: A Famosa História de Tróilo e Créssida. Excelentemente expressando o início do amor deles, com o vaidoso cortejo de Pândaro, Príncipe da Lycia. Escrito por William Shakespeare. Essa segunda versão teve, além disso, um prefácio para o leitor (algo não encontrado em nenhum outro quarto de Shakespeare) declarando Tróilo e Créssida como sendo “uma nova peça, nunca gasta no palco, nunca aplaudida pelas garras e palmas dos vulgares,” nem “maculada com a respiração embaçada da multidão.” O prefácio segue ao insinuar que os “grandes possessores” da peça (isto é, a companhia de atuação de Shakespeare) não desejavam ver a peça liberada de forma alguma. O que essa página-título e o prefácio adicional podem sugerir é que Bonian e Walley sentiram-se constrangidos em apresentar o texto deles como novo – um texto literário em vez de teatral – e assim diferente da versão entrada no Registro Stationers “conforme atuado pelo meus Homens do Lorde Chamberlain.” Porque essa versão havia sido legalmente registrada no nome de James Roberts, os novos editores argumentaram pela possessão legal ao oferecer uma “nova” peça.

          Tempos depois, os editores da edição do Primeiro Fólio de 1623 parecem ter tido dificuldade em obter permissão para imprimir Tróilo e Créssida. Três páginas da peça foram impressas logo após Romeu e Julieta, entre as tragédias, mas foram então retiradas para serem substituídas por Timão de Atenas. Finalmente, a peça apareceu no Fólio quase sem paginação, não listada no índex, e colocada com ambiguidade adequada entre as histórias e as tragédias.

          Essa história de impressão incomum oferece informações conflituosas sobre a performance original de palco. Contra a evidência da segunda versão do quarto de 1609, com seu prefácio proclamando a peça “nunca gasta no palco,” temos a evidência da primeira página-título mencionando os servos da Majestade o Rei no The Globe e na entrada do Registro Stationers em 1603 referindo à peça “conforme foi encenada.” Desde 1609 o prefácio pode ter sido parte de uma manobra legal designada para representar à peça como nova, o caso a favor da performance de fato tem algum peso. Não podemos ter certeza, entretanto, que a performance foi bem-sucedida ou que alcançou uma ampla audiência. Alguns estudiosos criaram a hipótese que a companhia de Shakespeare montou uma produção especial da peça para uma audiência privada nos Inns da Corte (onde jovens homens estudavam direito) ou um local similar. Provavelmente esse lugar não serviria para a performance de abertura da peça; a companhia de Shakespeare frequentemente levava suas peças regulares à corte ou outras audiências especiais, mas nenhum exemplo é positivamente conhecido em que Shakespeare tenha escrito comissionado para alguma amostra privada. Mais provavelmente, Tróilo e Créssida foi representada publicamente sem grande sucesso. Uma continuação, prometida nas linhas finais da peça por Pândaro, a ser apresentada “alguns dois meses a partir daqui,” evidentemente não se materializou, talvez porque a demanda do público era insuficiente. O quarto de 1609, com sua página-título revisada e o prefácio adicional, pode ter tentado capitalizar sobre o fracasso público da peça ao promovê-la como uma iguaria fina, a ser apreciada somente por leitor perspicazes. Possivelmente, Shakespeare e sua companhia deram um retoque em Tróilo e Créssida para performances indoors ante audiências selecionadas, somente para descobrir novamente que a peça não era um grande sucesso no palco. Sua história subsequente no palco, de qualquer forma, é amplamente inexpressiva até o século vinte, exceto por uma adaptação muito alterada, da Restauração, por John Dryden (1679), na qual Créssida permanece fiel a Tróilo e suicida-se quando acusada de infidelidade.

          Desde 1907, por outro lado, quando a peça foi finalmente revivida no palco londrino, ela vem desfrutando de um sucesso genuíno e crescente. Sua desilusão sobre a guerra parece admiravelmente adequado a uma era de conflitos mundiais, confrontações de superpoderes, e profundo cinismo em relação à política. Tersites e Pândaro soam positivamente córicos hoje em dia em suas gargalhadas e reflexões obscenas sobre as perversões da sexualidade humana. Helena como uma deusa insípida do sexo e Páris com o lânguido admirador dela nos chocam como ousadamente modernos, como na produção pacifista de Michael Macowan para o Companhia do Teatro de Máscara de Londres, nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, em 1938. Sobretudo, talvez, Créssida como uma heroína fracassada alcançou respeito. Séculos de rejeição depreciativa e sexista, como a mulher tipicamente infiel, abriram espaço para interpretações distintas nas quais a insistência masculina deve receber tanta culpa quanto a deserção dela a Tróilo e também a sua própria fraqueza admitida. Uma vez que Tróilo a possuiu sexualmente, ele parece menos obsessivamente interessado nela e consente, mesmo que hesitante, em retorná-la aos gregos. A consciência dela que alguma coisa desse tipo estava no limite de acontecer provê às atrizes modernas uma potente acusação à espécie masculina, como no retrato simpático de Juliet Stevenson de Créssida como vítima da guerra e da violência masculina na produção de Howard Davies, de 1985, para a Royal Shakespeare Company. Paradoxalmente, essa causticante peça sobre o declínio das “notórias identidades” (frase de Linda Charnes) levou a ressuscitação da reputação da mulher que uma vez foi a mais notória de todas.