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David Martin Bevington (13/05/1931) é um estudioso de Shakespeare, Professor Emérito em Humanidades, Língua Inglesa e Literatura, Literatura Comparada na Universidade de Chicago. Ele é considerado “Um dos mais eruditos e devotados entre os shakespearianos”, por Harold Bloom. Bevington permanece como o único estudioso vivo ao editar pessoalmente o corpus completo de Shakespeare.

Apresentamos a tradução do posfácio de seu livro de 2008, Shakespeare´s Ideas: More Things in Heaven and Earth, que é de uma beleza crítica cogente:

Tradução por Rafael Antonio Blanco.

Credo

Tendo argumentado por todo esse livro que nós não podemos ter certeza, dos pronunciamentos de seus personagens dramáticos, sobre o que Shakespeare ele próprio pensava, e que a tática dele, em vez disso, é colocar ideias em debate, deixe-me agora tomar alguns riscos, somente por diversão. E se Shakespeare fosse convidado, por volta dos cinquenta anos, em sua aposentadoria, a responder essa questão: Quais são as ideias que os seres humanos devem empenhar-se em viver? Aqui, imagino, é alguma coisa que ele poderia dizer. Por favor, entenda que isso é pura especulação, e que ela provavelmente diz mais de mim do que de qualquer um, apesar de eu não acreditar em algumas coisas que são ditas abaixo; Não sou monarquista, e não vou mais à igreja. Pelo menos o que segue representa minha própria leitura altamente pessoal de Shakespeare:

Seja generoso(a).

Aprenda a perdoar o imperdoável.

Honre seu pai e sua mãe. Especialmente seu pai.

Faça coisas boas para as pessoas não por temer ser punido em um além-mundo. Você pode esquecer essa ideia. Ela é um entretenimento vivaz em um drama de vingança, mas praticamente falando, ela não deve entrar na consideração de alguém.

Em vez disso, faça atos de gentileza e generosidade porque o mundo é um lugar melhor quando as pessoas fazem isso, e você quer que o mundo seja um mundo melhor. A história contém vários exemplos aterrorizantes da brutalidade humana que, sem uma bondade compensadora, nós nos abandonaríamos ao desespero. Seremos lembrados pela nossa gentileza. Isso é incomparavelmente melhor que ser lembrado pela crueldade e indiferença.

Nisso encontra-se um tipo de imortalidade que acredito e tentei encorajar em meus escritos. Escolhi o drama porque ele é um espelho vívido da vida humana em seus aspectos melhores e piores. Ele pode instruir e guiar-nos. Isso não quer dizer que o drama deve ser moralizador; de fato, ele pode ser muito mais efetivo se ele não o for.

Ao mesmo tempo, o drama, como todas as artes criativas, não pode nem deve esperar mudar o mundo politicamente, praticamente. O mundo seguirá seus caminhos em sua maioria ruins, não importando o que os artistas escrevem. O drama é como uma religião nesse aspecto.

Ambos o drama e a religião, em outras palavras, são poesia. Se as personificações que elas evocam são “verdadeiras” ou “reais”, quem sabe? Devemos falar que nós “acreditamos” em fadas, fantasmas, sonhos, visões, presságios? E sobre os próprios deuses? Eles são certamente “reais” o bastante em minhas peças, e isso quer dizer que eles aparecem em palco e são imortais em minha arte. Por favor note que os deuses que eu criei em minhas peças são clássicos e pagãos. (Se eu tentasse colocar Deus no palco, eu poderia ter problemas com as autoridades.) Todos esses seres sobrenaturais nas minhas peças são ilusões criadas pelo artista. Eles são poesia, significando apenas que eles são somente a coisa mais importante da vida. A poesia importa. Ela fala verdadeiramente, se alguém é sábio o suficiente para interpretá-la com cuidado. A maioria das pessoas não é sábia o suficiente, mas seguimos em frente tentando.

Ir à igreja é geralmente uma coisa boa. Em seu melhor ela promove um senso de comunidade social e cura. O Evangelho Cristão, especialmente, é recheado com belas ideias sobre caridade e perdão. Os aspectos dogmáticos da adoração religiosa, pelo contrário, podem ser divisores e não me parecem o coração do que a religião deveria ser. O Cristianismo não mantém um monopólio do ensinamento sábio, mas é um texto central, provavelmente o texto central, da nossa cultura Ocidental. A liturgia da igreja tem um tipo de magnificência grandiosa nela que me assombra. As Beatitudes são eloquentes em seus ensinamentos que o último deve ser o primeiro e que o humilde deve herdar a terra. Jesus não disse isso em um sentido literal; nem eu. É uma visão escatológica de um mundo que podemos apenas sonhar, um mundo de justiça perfeita. A ideia de justiça parece muito simples: desde que aqueles que são ricos são usualmente insolentes e insensíveis por ter muito, e desde que muitas outras pessoas têm tão pouco para permitir-lhes uma vida civilizada, por que não redistribuir essa riqueza onde ela faria algum bem? Essa ideia essencial das Escrituras é radical no sentido de voltar-se para a raiz (radix) causa das coisas. Nunca acontecerá, mas a arte pode sonhar.

As possessões mundanas podem enfraquecer a alma. Devemos todos aprender a não cobiçar. Essa ideia pode beneficiar o bem-estar espiritual de alguém ao aprender a contentar-se e dispor-se a compartilhar. Ela também tem imensas vantagens práticas. Como os estoicos nos ensinaram, se evitamos a cobiça material e o ganho mundano, nós não teremos razões em nos sentirmos enganados se aquele tipo de prosperidade escapar de nós. Por outro lado, não devemos nos congratular complacentemente se somos afortunados.

Os ensinamentos da igreja Cristã sobre a natureza decaída da humanidade me parecem convincentemente esclarecedores. A história no Gênese, da expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden por desobediência, e o primeiro assassinado na história, quando Caim mata seu irmão Abel, ressoam em mim como em muitos dos meus contemporâneos. Esses são mitos centrais. Todos nós precisamos estar cônscios que, como seres humanos, somos criaturas com apetites potencialmente autodestrutivos. Precisamos de ajuda. Encontrei muita sabedoria nos escritos dos grandes pais da igreja, de Santo Agostinho a Marinho Lutero e João Calvino, que a salvação é algo que não podemos alcançar por nós mesmos: ela é um presente do alto. Por “salvação”, novamente, não quero dizer de uma além-vida no paraíso, como oposto em habitar na escuridão eterna de algum inferno; quero dizer de completude espiritual. Ao mesmo tempo, os argumentos divisores entre várias seitas sobre obras versus fé ou predestinação versus livre-arbítrio parecem a mim contraproducentes. No sentido da fé não-Cristã e dos sistemas éticos, é necessário ser tolerante e compreensivo, mesmo se houver limites. As verdades mais amplas da religião são simples, e são consistentes com os ensinamentos de grandes filósofos pagãos como Sêneca.

É possível que alguém seja um Cristão praticante e permaneça cético em relação a muitas coisas importantes. É necessário negar a esperança supersticiosa, que a assistência divina virá àqueles que oram por ajuda prática. A experiência mostra que isso não se dá dessa forma.  É necessário ser realista. Os deuses não intervêm em nosso dia a dia. Uma das poucas coisas que alguém pode estar certo é que, se alguém continua respirando e vivendo, as coisas podem ficar piores. Mesmo se alguém parece estar na parte mais baixa da Roda da Fortuna, tendo sofrido toda perda imaginável, não há razões lógicas para assumir que as coisas irão melhorar. Somente quando lidarmos com esse pesadelo existencial de muito da existência humana, poderemos ter esperança em alcançar o autoconhecimento necessário para uma sobrevivência compassiva e salutar.

Nosso ceticismo necessita ser temperado pela fé em alguma coisa que podemos chamar de Providência. Qualquer coisa que ela seja, ela opera em uma distância imensuravelmente longa da vida cotidiana. Ela inquestionavelmente apela à fé, em vez da razão, pois não há formas de prová-la existente; mas devemos ser conscientes de quão pouco sabemos, de fato. Uma atitude verdadeiramente cética sobre essas grandes matérias reconhece que se não temos prova na existência da Providência, nós não temos evidência contra ela também, enquanto a definimos como operante no nível da fé. A ideia que de alguma forma tudo é finalmente para o melhor, e que as intenções de alguma Providência superior podem fazer sentido na confusão da história humana que nós tão grosseiramente administramos e compreendemos mal, é tão confortante que não podemos nos desapegar dela. Teorias rivais sobre a história humana, como somente um processo sem significado transcendental, não podem ser abandonadas, também. Nós simplesmente não sabemos. A incerteza faz o bom drama.

Em matéria política, nós somos bem aconselhados em não irmos contra o estado. As estruturas políticas tomam muitas formas. O governo da Inglaterra, como na Europa Ocidental geralmente, é uma monarquia. Esse plano provavelmente sucederá como qualquer outro. A experiência de regrar uma multidão é geralmente assustadora; desde que os apetites humanos são por sua própria natureza muito desgovernados, precisamos de estruturas. Alguns legisladores são sábios e efetivos, enquanto alguns outros são muito mal adaptados às suas posições. Apesar do nosso desejo de idealizar os monarcas e outros governantes como singularmente impassíveis e fortes, a evidência é inteiramente heterogênea. As guerras que eles travam podem ser justificáveis, como eles proclamam, mas podemos frequentemente detectar pragmaticamente motivos egoístas, mesmo nos mais bem sucedidos príncipes. Teóricos do direito divino dos reis criam argumentos persuasivos baseados na tradição, mas a história fortemente contesta qualquer noção de que as origens do governo hierárquico encontram-se na vontade divina. Alguém pode considerar àquela ideia de direito divino como um mito, enquanto continua a apreciar sua beleza. Na realidade, a história marcha, e o sucesso às vezes vai para aqueles que quebram às regras. A primeira responsabilidade da monarquia é sobreviver, e o mesmo é verdade para um país como a Inglaterra. De alguma forma nós nos confundimos.

Em nossas vidas pessoais e domésticas, precisamos ser compassivos e justos. Os homens devem saber que o modo de vida patriarcal concede grandes vantagens próprias, e o conveniente é que eles as exerçam com grande autocontrole. Paradoxalmente, os homens são frequentemente muito fracos e vulneráveis; a necessidade masculina por aprovação feminina coloca o frágil senso de masculinidade deles em risco. As mulheres são frequentemente as mais calmas, auto conhecedoras e pacientes, e assim capazes de apoiar os vacilantes egos masculinos quando a ajuda é mais necessária. As mulheres podem também parecer ameaçadoras e mesmo aterrorizantes, mas ao menos em algum momento alguém pode interpretar essa visão misógina como um resultado de uma imaginação masculina doentia. Mais do que tudo, homens e mulheres necessitam um do outro. O cortejo e o casamento são cheios de dificultosos desafios, mas no todo é possível ver que não temos outra escolha. Homens e mulheres devem aprender a seguirem em frente um com o outro e a praticar o autocontrole, porque, de outra forma, a vida humana não terá como continuar. As amizades entre homens e homens, mulheres e mulheres, não são menos preciosas.

Alguma questão?

[:en]

David Martin Bevington (13/05/1931) é um estudioso de Shakespeare, Professor Emérito em Humanidades, Língua Inglesa e Literatura, Literatura Comparada na Universidade de Chicago. Ele é considerado “Um dos mais eruditos e devotados entre os shakespearianos”, por Harold Bloom. Bevington permanece como o único estudioso vivo ao editar pessoalmente o corpus completo de Shakespeare.

Apresentamos a tradução do posfácio de seu livro de 2008, Shakespeare´s Ideas: More Things in Heaven and Earth, que é de uma beleza crítica cogente:

Tradução por Rafael Antonio Blanco.

Credo

Tendo argumentado por todo esse livro que nós não podemos ter certeza, dos pronunciamentos de seus personagens dramáticos, sobre o que Shakespeare ele próprio pensava, e que a tática dele, em vez disso, é colocar ideias em debate, deixe-me agora tomar alguns riscos, somente por diversão. E se Shakespeare fosse convidado, por volta dos cinquenta anos, em sua aposentadoria, a responder essa questão: Quais são as ideias que os seres humanos devem empenhar-se em viver? Aqui, imagino, é alguma coisa que ele poderia dizer. Por favor, entenda que isso é pura especulação, e que ela provavelmente diz mais de mim do que de qualquer um, apesar de eu não acreditar em algumas coisas que são ditas abaixo; Não sou monarquista, e não vou mais à igreja. Pelo menos o que segue representa minha própria leitura altamente pessoal de Shakespeare:

Seja generoso(a).

Aprenda a perdoar o imperdoável.

Honre seu pai e sua mãe. Especialmente seu pai.

Faça coisas boas para as pessoas não por temer ser punido num além-mundo. Você pode esquecer essa ideia. Ela é um entretenimento vivaz num drama de vingança, mas praticamente falando, ela não deve entrar na consideração de alguém.

Em vez disso, faça atos de gentileza e generosidade porque o mundo é um lugar melhor quando as pessoas fazem isso, e você quer que o mundo seja um mundo melhor. A história contém vários exemplos aterrorizantes da brutalidade humana que, sem uma bondade compensadora, nós nos abandonaríamos ao desespero. Seremos lembrados pela nossa gentileza. Isso é incomparavelmente melhor que ser lembrado pela crueldade e indiferença.

Nisso encontra-se um tipo de imortalidade que acredito e tentei encorajar em meus escritos. Escolhi o drama porque ele é um espelho vívido da vida humana em seus aspectos melhores e piores. Ele pode instruir e guiar-nos. Isso não quer dizer que o drama deve ser moralizador; de fato, ele pode ser muito mais efetivo se ele não o for.

Ao mesmo tempo, o drama, como todas as artes criativas, não pode nem deve esperar mudar o mundo politicamente, praticamente. O mundo seguirá seus caminhos em sua maioria ruins, não importando o que os artistas escrevem. O drama é como uma religião nesse aspecto.

Ambos o drama e a religião, em outras palavras, são poesia. Se as personificações que elas evocam são “verdadeiras” ou “reais”, quem sabe? Devemos falar que nós “acreditamos” em fadas, fantasmas, sonhos, visões, presságios? E sobre os próprios deuses? Eles são certamente “reais” o bastante em minhas peças, e isso quer dizer que eles aparecem em palco e são imortais em minha arte. Por favor note que os deuses que eu criei em minhas peças são clássicos e pagãos. (Se eu tentasse colocar Deus no palco, eu poderia ter problemas com as autoridades.) Todos esses seres sobrenaturais nas minhas peças são ilusões criadas pelo artista. Eles são poesia, significando apenas que eles são somente a coisa mais importante da vida. A poesia importa. Ela fala verdadeiramente, se alguém é sábio o suficiente para interpretá-la com cuidado. A maioria das pessoas não é sábia o suficiente, mas seguimos em frente tentando.

Ir à igreja é geralmente uma coisa boa. Em seu melhor ela promove um senso de comunidade social e cura. O Evangelho Cristão, especialmente, é recheado com belas ideias sobre caridade e perdão. Os aspectos dogmáticos da adoração religiosa, pelo contrário, podem ser divisores e não me parecem o coração do que a religião deveria ser. O Cristianismo não mantém um monopólio do ensinamento sábio, mas é um texto central, provavelmente o texto central, da nossa cultura Ocidental. A liturgia da igreja tem um tipo de magnificência grandiosa nela que me assombra. As Beatitudes são eloquentes em seus ensinamentos que o último deve ser o primeiro e que o humilde deve herdar a terra. Jesus não disse isso num sentido literal; nem eu. É uma visão escatológica de um mundo que podemos apenas sonhar, um mundo de justiça perfeita. A ideia de justiça parece muito simples: desde que aqueles que são ricos são usualmente insolentes e insensíveis por ter muito, e desde que muitas outras pessoas têm tão pouco para permitir-lhes uma vida civilizada, por que não redistribuir essa riqueza onde ela faria algum bem? Essa ideia essencial das Escrituras é radical no sentido de voltar-se para a raiz (radix) causa das coisas. Nunca acontecerá, mas a arte pode sonhar.

As possessões mundanas podem enfraquecer a alma. Devemos todos aprender a não cobiçar. Essa ideia pode beneficiar o bem-estar espiritual de alguém ao aprender a contentar-se e dispor-se a compartilhar. Ela também tem imensas vantagens práticas. Como os estoicos nos ensinaram, se evitamos a cobiça material e o ganho mundano, nós não teremos razões em nos sentirmos enganados se aquele tipo de prosperidade escapar de nós. Por outro lado, não devemos nos congratular complacentemente se somos afortunados.

Os ensinamentos da igreja Cristã sobre a natureza decaída da humanidade me parecem convincentemente esclarecedores. A história no Gênese, da expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden por desobediência, e o primeiro assassinado na história, quando Caim mata seu irmão Abel, ressoam em mim como em muitos dos meus contemporâneos. Esses são mitos centrais. Todos nós precisamos estar cônscios que, como seres humanos, somos criaturas com apetites potencialmente autodestrutivos. Precisamos de ajuda. Encontrei muita sabedoria nos escritos dos grandes pais da igreja, de Santo Agostinho a Marinho Lutero e João Calvino, que a salvação é algo que não podemos alcançar por nós mesmos: ela é um presente do alto. Por “salvação”, novamente, não quero dizer de uma além-vida no paraíso, como oposto em habitar na escuridão eterna de algum inferno; quero dizer de completude espiritual. Ao mesmo tempo, os argumentos divisores entre várias seitas sobre obras versus fé ou predestinação versus livre-arbítrio parecem a mim contraproducentes. No sentido da fé não-Cristã e dos sistemas éticos, é necessário ser tolerante e compreensivo, mesmo se houver limites. As verdades mais amplas da religião são simples, e são consistentes com os ensinamentos de grandes filósofos pagãos como Sêneca.

É possível que alguém seja um Cristão praticante e permaneça cético em relação a muitas coisas importantes. É necessário negar a esperança supersticiosa, que a assistência divina virá àqueles que oram por ajuda prática. A experiência mostra que isso não se dá dessa forma.  É necessário ser realista. Os deuses não intervêm em nosso dia a dia. Uma das poucas coisas que alguém pode estar certo é que, se alguém continua respirando e vivendo, as coisas podem ficar piores. Mesmo se alguém parece estar na parte mais baixa da Roda da Fortuna, tendo sofrido toda perda imaginável, não há razões lógicas para assumir que as coisas irão melhorar. Somente quando lidarmos com esse pesadelo existencial de muito da existência humana, poderemos ter esperança em alcançar o autoconhecimento necessário para uma sobrevivência compassiva e salutar.

Nosso ceticismo necessita ser temperado pela fé em alguma coisa que podemos chamar de Providência. Qualquer coisa que ela seja, ela opera numa distância imensuravelmente longe da vida cotidiana. Ela inquestionavelmente apela à fé, em vez da razão, pois não há formas de prová-la existente; mas devemos ser conscientes de quão pouco sabemos, de fato. Uma atitude verdadeiramente cética sobre essas grandes matérias reconhece que se não temos prova na existência da Providência, nós não temos evidência contra ela também, enquanto a definimos como operante no nível da fé. A ideia que de alguma forma tudo é finalmente para o melhor, e que as intenções de alguma Providência superior podem fazer sentido na confusão da história humana que nós tão grosseiramente administramos e compreendemos mal, é tão confortante que não podemos nos desapegar dela. Teorias rivais sobre a história humana, como somente um processo sem significado transcendental, não podem ser abandonadas, também. Nós simplesmente não sabemos. A incerteza faz o bom drama.

Em matéria política, nós somos bem aconselhados em não irmos contra o estado. As estruturas políticas tomam muitas formas. O governo da Inglaterra, como na Europa Ocidental geralmente, é uma monarquia. Esse plano provavelmente sucederá como qualquer outro. A experiência de regrar uma multidão é geralmente assustadora; desde que os apetites humanos são por sua própria natureza muito desgovernados, precisamos de estruturas. Alguns legisladores são sábios e efetivos, enquanto alguns outros são muito mal adaptados às suas posições. Apesar do nosso desejo de idealizar os monarcas e outros governantes como singularmente impassíveis e fortes, a evidência é inteiramente heterogênea. As guerras que eles travam podem ser justificáveis, como eles proclamam, mas podemos frequentemente detectar pragmaticamente motivos egoístas, mesmo nos mais bem sucedidos príncipes. Teóricos do direito divino dos reis criam argumentos persuasivos baseados na tradição, mas a história fortemente contesta qualquer noção de que as origens do governo hierárquico encontram-se na vontade divina. Alguém pode considerar àquela ideia de direito divino como um mito, enquanto continua a apreciar sua beleza. Na realidade, a história marcha, e o sucesso às vezes vai para aqueles que quebram às regras. A primeira responsabilidade da monarquia é sobreviver, e o mesmo é verdade para um país como a Inglaterra. De alguma forma nós nos confundimos.

Em nossas vidas pessoais e domésticas, precisamos ser compassivos e justos. Os homens devem saber que o modo de vida patriarcal concede grandes vantagens próprias, e o conveniente é que eles as exerçam com grande autocontrole. Paradoxalmente, os homens são frequentemente muito fracos e vulneráveis; a necessidade masculina por aprovação feminina coloca o frágil senso de masculinidade deles em risco. As mulheres são frequentemente as mais calmas, auto conhecedoras e pacientes, e assim capazes de apoiar os vacilantes egos masculinos quando a ajuda é mais necessária. As mulheres podem também parecer ameaçadoras e mesmo aterrorizantes, mas ao menos em algum momento alguém pode interpretar essa visão misógina como um resultado de uma imaginação masculina doentia. Mais do que tudo, homens e mulheres necessitam um do outro. O cortejo e o casamento são cheios de dificultosos desafios, mas no todo é possível ver que não temos outra escolha. Homens e mulheres devem aprender a seguirem em frente um com o outro e a praticar o autocontrole, porque, de outra forma, a vida humana não terá como continuar. As amizades entre homens e homens, mulheres e mulheres, não são menos preciosas.

Alguma questão?

[:fr]

David Martin Bevington (13/05/1931) é um estudioso de Shakespeare, Professor Emérito em Humanidades, Língua Inglesa e Literatura, Literatura Comparada na Universidade de Chicago. Ele é considerado “Um dos mais eruditos e devotados entre os shakespearianos”, por Harold Bloom. Bevington permanece como o único estudioso vivo ao editar pessoalmente o corpus completo de Shakespeare.

Apresentamos a tradução do posfácio de seu livro de 2008, Shakespeare´s Ideas: More Things in Heaven and Earth, que é de uma beleza crítica cogente:

Tradução por Rafael Antonio Blanco.

Credo

Tendo argumentado por todo esse livro que nós não podemos ter certeza, dos pronunciamentos de seus personagens dramáticos, sobre o que Shakespeare ele próprio pensava, e que a tática dele, em vez disso, é colocar ideias em debate, deixe-me agora tomar alguns riscos, somente por diversão. E se Shakespeare fosse convidado, por volta dos cinquenta anos, em sua aposentadoria, a responder essa questão: Quais são as ideias que os seres humanos devem empenhar-se em viver? Aqui, imagino, é alguma coisa que ele poderia dizer. Por favor, entenda que isso é pura especulação, e que ela provavelmente diz mais de mim do que de qualquer um, apesar de eu não acreditar em algumas coisas que são ditas abaixo; Não sou monarquista, e não vou mais à igreja. Pelo menos o que segue representa minha própria leitura altamente pessoal de Shakespeare:

Seja generoso(a).

Aprenda a perdoar o imperdoável.

Honre seu pai e sua mãe. Especialmente seu pai.

Faça coisas boas para as pessoas não por temer ser punido num além-mundo. Você pode esquecer essa ideia. Ela é um entretenimento vivaz num drama de vingança, mas praticamente falando, ela não deve entrar na consideração de alguém.

Em vez disso, faça atos de gentileza e generosidade porque o mundo é um lugar melhor quando as pessoas fazem isso, e você quer que o mundo seja um mundo melhor. A história contém vários exemplos aterrorizantes da brutalidade humana que, sem uma bondade compensadora, nós nos abandonaríamos ao desespero. Seremos lembrados pela nossa gentileza. Isso é incomparavelmente melhor que ser lembrado pela crueldade e indiferença.

Nisso encontra-se um tipo de imortalidade que acredito e tentei encorajar em meus escritos. Escolhi o drama porque ele é um espelho vívido da vida humana em seus aspectos melhores e piores. Ele pode instruir e guiar-nos. Isso não quer dizer que o drama deve ser moralizador; de fato, ele pode ser muito mais efetivo se ele não o for.

Ao mesmo tempo, o drama, como todas as artes criativas, não pode nem deve esperar mudar o mundo politicamente, praticamente. O mundo seguirá seus caminhos em sua maioria ruins, não importando o que os artistas escrevem. O drama é como uma religião nesse aspecto.

Ambos o drama e a religião, em outras palavras, são poesia. Se as personificações que elas evocam são “verdadeiras” ou “reais”, quem sabe? Devemos falar que nós “acreditamos” em fadas, fantasmas, sonhos, visões, presságios? E sobre os próprios deuses? Eles são certamente “reais” o bastante em minhas peças, e isso quer dizer que eles aparecem em palco e são imortais em minha arte. Por favor note que os deuses que eu criei em minhas peças são clássicos e pagãos. (Se eu tentasse colocar Deus no palco, eu poderia ter problemas com as autoridades.) Todos esses seres sobrenaturais nas minhas peças são ilusões criadas pelo artista. Eles são poesia, significando apenas que eles são somente a coisa mais importante da vida. A poesia importa. Ela fala verdadeiramente, se alguém é sábio o suficiente para interpretá-la com cuidado. A maioria das pessoas não é sábia o suficiente, mas seguimos em frente tentando.

Ir à igreja é geralmente uma coisa boa. Em seu melhor ela promove um senso de comunidade social e cura. O Evangelho Cristão, especialmente, é recheado com belas ideias sobre caridade e perdão. Os aspectos dogmáticos da adoração religiosa, pelo contrário, podem ser divisores e não me parecem o coração do que a religião deveria ser. O Cristianismo não mantém um monopólio do ensinamento sábio, mas é um texto central, provavelmente o texto central, da nossa cultura Ocidental. A liturgia da igreja tem um tipo de magnificência grandiosa nela que me assombra. As Beatitudes são eloquentes em seus ensinamentos que o último deve ser o primeiro e que o humilde deve herdar a terra. Jesus não disse isso num sentido literal; nem eu. É uma visão escatológica de um mundo que podemos apenas sonhar, um mundo de justiça perfeita. A ideia de justiça parece muito simples: desde que aqueles que são ricos são usualmente insolentes e insensíveis por ter muito, e desde que muitas outras pessoas têm tão pouco para permitir-lhes uma vida civilizada, por que não redistribuir essa riqueza onde ela faria algum bem? Essa ideia essencial das Escrituras é radical no sentido de voltar-se para a raiz (radix) causa das coisas. Nunca acontecerá, mas a arte pode sonhar.

As possessões mundanas podem enfraquecer a alma. Devemos todos aprender a não cobiçar. Essa ideia pode beneficiar o bem-estar espiritual de alguém ao aprender a contentar-se e dispor-se a compartilhar. Ela também tem imensas vantagens práticas. Como os estoicos nos ensinaram, se evitamos a cobiça material e o ganho mundano, nós não teremos razões em nos sentirmos enganados se aquele tipo de prosperidade escapar de nós. Por outro lado, não devemos nos congratular complacentemente se somos afortunados.

Os ensinamentos da igreja Cristã sobre a natureza decaída da humanidade me parecem convincentemente esclarecedores. A história no Gênese, da expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden por desobediência, e o primeiro assassinado na história, quando Caim mata seu irmão Abel, ressoam em mim como em muitos dos meus contemporâneos. Esses são mitos centrais. Todos nós precisamos estar cônscios que, como seres humanos, somos criaturas com apetites potencialmente autodestrutivos. Precisamos de ajuda. Encontrei muita sabedoria nos escritos dos grandes pais da igreja, de Santo Agostinho a Marinho Lutero e João Calvino, que a salvação é algo que não podemos alcançar por nós mesmos: ela é um presente do alto. Por “salvação”, novamente, não quero dizer de uma além-vida no paraíso, como oposto em habitar na escuridão eterna de algum inferno; quero dizer de completude espiritual. Ao mesmo tempo, os argumentos divisores entre várias seitas sobre obras versus fé ou predestinação versus livre-arbítrio parecem a mim contraproducentes. No sentido da fé não-Cristã e dos sistemas éticos, é necessário ser tolerante e compreensivo, mesmo se houver limites. As verdades mais amplas da religião são simples, e são consistentes com os ensinamentos de grandes filósofos pagãos como Sêneca.

É possível que alguém seja um Cristão praticante e permaneça cético em relação a muitas coisas importantes. É necessário negar a esperança supersticiosa, que a assistência divina virá àqueles que oram por ajuda prática. A experiência mostra que isso não se dá dessa forma.  É necessário ser realista. Os deuses não intervêm em nosso dia a dia. Uma das poucas coisas que alguém pode estar certo é que, se alguém continua respirando e vivendo, as coisas podem ficar piores. Mesmo se alguém parece estar na parte mais baixa da Roda da Fortuna, tendo sofrido toda perda imaginável, não há razões lógicas para assumir que as coisas irão melhorar. Somente quando lidarmos com esse pesadelo existencial de muito da existência humana, poderemos ter esperança em alcançar o autoconhecimento necessário para uma sobrevivência compassiva e salutar.

Nosso ceticismo necessita ser temperado pela fé em alguma coisa que podemos chamar de Providência. Qualquer coisa que ela seja, ela opera numa distância imensuravelmente longe da vida cotidiana. Ela inquestionavelmente apela à fé, em vez da razão, pois não há formas de prová-la existente; mas devemos ser conscientes de quão pouco sabemos, de fato. Uma atitude verdadeiramente cética sobre essas grandes matérias reconhece que se não temos prova na existência da Providência, nós não temos evidência contra ela também, enquanto a definimos como operante no nível da fé. A ideia que de alguma forma tudo é finalmente para o melhor, e que as intenções de alguma Providência superior podem fazer sentido na confusão da história humana que nós tão grosseiramente administramos e compreendemos mal, é tão confortante que não podemos nos desapegar dela. Teorias rivais sobre a história humana, como somente um processo sem significado transcendental, não podem ser abandonadas, também. Nós simplesmente não sabemos. A incerteza faz o bom drama.

Em matéria política, nós somos bem aconselhados em não irmos contra o estado. As estruturas políticas tomam muitas formas. O governo da Inglaterra, como na Europa Ocidental geralmente, é uma monarquia. Esse plano provavelmente sucederá como qualquer outro. A experiência de regrar uma multidão é geralmente assustadora; desde que os apetites humanos são por sua própria natureza muito desgovernados, precisamos de estruturas. Alguns legisladores são sábios e efetivos, enquanto alguns outros são muito mal adaptados às suas posições. Apesar do nosso desejo de idealizar os monarcas e outros governantes como singularmente impassíveis e fortes, a evidência é inteiramente heterogênea. As guerras que eles travam podem ser justificáveis, como eles proclamam, mas podemos frequentemente detectar pragmaticamente motivos egoístas, mesmo nos mais bem sucedidos príncipes. Teóricos do direito divino dos reis criam argumentos persuasivos baseados na tradição, mas a história fortemente contesta qualquer noção de que as origens do governo hierárquico encontram-se na vontade divina. Alguém pode considerar àquela ideia de direito divino como um mito, enquanto continua a apreciar sua beleza. Na realidade, a história marcha, e o sucesso às vezes vai para aqueles que quebram às regras. A primeira responsabilidade da monarquia é sobreviver, e o mesmo é verdade para um país como a Inglaterra. De alguma forma nós nos confundimos.

Em nossas vidas pessoais e domésticas, precisamos ser compassivos e justos. Os homens devem saber que o modo de vida patriarcal concede grandes vantagens próprias, e o conveniente é que eles as exerçam com grande autocontrole. Paradoxalmente, os homens são frequentemente muito fracos e vulneráveis; a necessidade masculina por aprovação feminina coloca o frágil senso de masculinidade deles em risco. As mulheres são frequentemente as mais calmas, auto conhecedoras e pacientes, e assim capazes de apoiar os vacilantes egos masculinos quando a ajuda é mais necessária. As mulheres podem também parecer ameaçadoras e mesmo aterrorizantes, mas ao menos em algum momento alguém pode interpretar essa visão misógina como um resultado de uma imaginação masculina doentia. Mais do que tudo, homens e mulheres necessitam um do outro. O cortejo e o casamento são cheios de dificultosos desafios, mas no todo é possível ver que não temos outra escolha. Homens e mulheres devem aprender a seguirem em frente um com o outro e a praticar o autocontrole, porque, de outra forma, a vida humana não terá como continuar. As amizades entre homens e homens, mulheres e mulheres, não são menos preciosas.

Alguma questão?

[:de]

David Martin Bevington (13/05/1931) é um estudioso de Shakespeare, Professor Emérito em Humanidades, Língua Inglesa e Literatura, Literatura Comparada na Universidade de Chicago. Ele é considerado “Um dos mais eruditos e devotados entre os shakespearianos”, por Harold Bloom. Bevington permanece como o único estudioso vivo ao editar pessoalmente o corpus completo de Shakespeare.

Apresentamos a tradução do posfácio de seu livro de 2008, Shakespeare´s Ideas: More Things in Heaven and Earth, que é de uma beleza crítica cogente:

Tradução por Rafael Antonio Blanco.

Credo

Tendo argumentado por todo esse livro que nós não podemos ter certeza, dos pronunciamentos de seus personagens dramáticos, sobre o que Shakespeare ele próprio pensava, e que a tática dele, em vez disso, é colocar ideias em debate, deixe-me agora tomar alguns riscos, somente por diversão. E se Shakespeare fosse convidado, por volta dos cinquenta anos, em sua aposentadoria, a responder essa questão: Quais são as ideias que os seres humanos devem empenhar-se em viver? Aqui, imagino, é alguma coisa que ele poderia dizer. Por favor, entenda que isso é pura especulação, e que ela provavelmente diz mais de mim do que de qualquer um, apesar de eu não acreditar em algumas coisas que são ditas abaixo; Não sou monarquista, e não vou mais à igreja. Pelo menos o que segue representa minha própria leitura altamente pessoal de Shakespeare:

Seja generoso(a).

Aprenda a perdoar o imperdoável.

Honre seu pai e sua mãe. Especialmente seu pai.

Faça coisas boas para as pessoas não por temer ser punido num além-mundo. Você pode esquecer essa ideia. Ela é um entretenimento vivaz num drama de vingança, mas praticamente falando, ela não deve entrar na consideração de alguém.

Em vez disso, faça atos de gentileza e generosidade porque o mundo é um lugar melhor quando as pessoas fazem isso, e você quer que o mundo seja um mundo melhor. A história contém vários exemplos aterrorizantes da brutalidade humana que, sem uma bondade compensadora, nós nos abandonaríamos ao desespero. Seremos lembrados pela nossa gentileza. Isso é incomparavelmente melhor que ser lembrado pela crueldade e indiferença.

Nisso encontra-se um tipo de imortalidade que acredito e tentei encorajar em meus escritos. Escolhi o drama porque ele é um espelho vívido da vida humana em seus aspectos melhores e piores. Ele pode instruir e guiar-nos. Isso não quer dizer que o drama deve ser moralizador; de fato, ele pode ser muito mais efetivo se ele não o for.

Ao mesmo tempo, o drama, como todas as artes criativas, não pode nem deve esperar mudar o mundo politicamente, praticamente. O mundo seguirá seus caminhos em sua maioria ruins, não importando o que os artistas escrevem. O drama é como uma religião nesse aspecto.

Ambos o drama e a religião, em outras palavras, são poesia. Se as personificações que elas evocam são “verdadeiras” ou “reais”, quem sabe? Devemos falar que nós “acreditamos” em fadas, fantasmas, sonhos, visões, presságios? E sobre os próprios deuses? Eles são certamente “reais” o bastante em minhas peças, e isso quer dizer que eles aparecem em palco e são imortais em minha arte. Por favor note que os deuses que eu criei em minhas peças são clássicos e pagãos. (Se eu tentasse colocar Deus no palco, eu poderia ter problemas com as autoridades.) Todos esses seres sobrenaturais nas minhas peças são ilusões criadas pelo artista. Eles são poesia, significando apenas que eles são somente a coisa mais importante da vida. A poesia importa. Ela fala verdadeiramente, se alguém é sábio o suficiente para interpretá-la com cuidado. A maioria das pessoas não é sábia o suficiente, mas seguimos em frente tentando.

Ir à igreja é geralmente uma coisa boa. Em seu melhor ela promove um senso de comunidade social e cura. O Evangelho Cristão, especialmente, é recheado com belas ideias sobre caridade e perdão. Os aspectos dogmáticos da adoração religiosa, pelo contrário, podem ser divisores e não me parecem o coração do que a religião deveria ser. O Cristianismo não mantém um monopólio do ensinamento sábio, mas é um texto central, provavelmente o texto central, da nossa cultura Ocidental. A liturgia da igreja tem um tipo de magnificência grandiosa nela que me assombra. As Beatitudes são eloquentes em seus ensinamentos que o último deve ser o primeiro e que o humilde deve herdar a terra. Jesus não disse isso num sentido literal; nem eu. É uma visão escatológica de um mundo que podemos apenas sonhar, um mundo de justiça perfeita. A ideia de justiça parece muito simples: desde que aqueles que são ricos são usualmente insolentes e insensíveis por ter muito, e desde que muitas outras pessoas têm tão pouco para permitir-lhes uma vida civilizada, por que não redistribuir essa riqueza onde ela faria algum bem? Essa ideia essencial das Escrituras é radical no sentido de voltar-se para a raiz (radix) causa das coisas. Nunca acontecerá, mas a arte pode sonhar.

As possessões mundanas podem enfraquecer a alma. Devemos todos aprender a não cobiçar. Essa ideia pode beneficiar o bem-estar espiritual de alguém ao aprender a contentar-se e dispor-se a compartilhar. Ela também tem imensas vantagens práticas. Como os estoicos nos ensinaram, se evitamos a cobiça material e o ganho mundano, nós não teremos razões em nos sentirmos enganados se aquele tipo de prosperidade escapar de nós. Por outro lado, não devemos nos congratular complacentemente se somos afortunados.

Os ensinamentos da igreja Cristã sobre a natureza decaída da humanidade me parecem convincentemente esclarecedores. A história no Gênese, da expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden por desobediência, e o primeiro assassinado na história, quando Caim mata seu irmão Abel, ressoam em mim como em muitos dos meus contemporâneos. Esses são mitos centrais. Todos nós precisamos estar cônscios que, como seres humanos, somos criaturas com apetites potencialmente autodestrutivos. Precisamos de ajuda. Encontrei muita sabedoria nos escritos dos grandes pais da igreja, de Santo Agostinho a Marinho Lutero e João Calvino, que a salvação é algo que não podemos alcançar por nós mesmos: ela é um presente do alto. Por “salvação”, novamente, não quero dizer de uma além-vida no paraíso, como oposto em habitar na escuridão eterna de algum inferno; quero dizer de completude espiritual. Ao mesmo tempo, os argumentos divisores entre várias seitas sobre obras versus fé ou predestinação versus livre-arbítrio parecem a mim contraproducentes. No sentido da fé não-Cristã e dos sistemas éticos, é necessário ser tolerante e compreensivo, mesmo se houver limites. As verdades mais amplas da religião são simples, e são consistentes com os ensinamentos de grandes filósofos pagãos como Sêneca.

É possível que alguém seja um Cristão praticante e permaneça cético em relação a muitas coisas importantes. É necessário negar a esperança supersticiosa, que a assistência divina virá àqueles que oram por ajuda prática. A experiência mostra que isso não se dá dessa forma.  É necessário ser realista. Os deuses não intervêm em nosso dia a dia. Uma das poucas coisas que alguém pode estar certo é que, se alguém continua respirando e vivendo, as coisas podem ficar piores. Mesmo se alguém parece estar na parte mais baixa da Roda da Fortuna, tendo sofrido toda perda imaginável, não há razões lógicas para assumir que as coisas irão melhorar. Somente quando lidarmos com esse pesadelo existencial de muito da existência humana, poderemos ter esperança em alcançar o autoconhecimento necessário para uma sobrevivência compassiva e salutar.

Nosso ceticismo necessita ser temperado pela fé em alguma coisa que podemos chamar de Providência. Qualquer coisa que ela seja, ela opera numa distância imensuravelmente longe da vida cotidiana. Ela inquestionavelmente apela à fé, em vez da razão, pois não há formas de prová-la existente; mas devemos ser conscientes de quão pouco sabemos, de fato. Uma atitude verdadeiramente cética sobre essas grandes matérias reconhece que se não temos prova na existência da Providência, nós não temos evidência contra ela também, enquanto a definimos como operante no nível da fé. A ideia que de alguma forma tudo é finalmente para o melhor, e que as intenções de alguma Providência superior podem fazer sentido na confusão da história humana que nós tão grosseiramente administramos e compreendemos mal, é tão confortante que não podemos nos desapegar dela. Teorias rivais sobre a história humana, como somente um processo sem significado transcendental, não podem ser abandonadas, também. Nós simplesmente não sabemos. A incerteza faz o bom drama.

Em matéria política, nós somos bem aconselhados em não irmos contra o estado. As estruturas políticas tomam muitas formas. O governo da Inglaterra, como na Europa Ocidental geralmente, é uma monarquia. Esse plano provavelmente sucederá como qualquer outro. A experiência de regrar uma multidão é geralmente assustadora; desde que os apetites humanos são por sua própria natureza muito desgovernados, precisamos de estruturas. Alguns legisladores são sábios e efetivos, enquanto alguns outros são muito mal adaptados às suas posições. Apesar do nosso desejo de idealizar os monarcas e outros governantes como singularmente impassíveis e fortes, a evidência é inteiramente heterogênea. As guerras que eles travam podem ser justificáveis, como eles proclamam, mas podemos frequentemente detectar pragmaticamente motivos egoístas, mesmo nos mais bem sucedidos príncipes. Teóricos do direito divino dos reis criam argumentos persuasivos baseados na tradição, mas a história fortemente contesta qualquer noção de que as origens do governo hierárquico encontram-se na vontade divina. Alguém pode considerar àquela ideia de direito divino como um mito, enquanto continua a apreciar sua beleza. Na realidade, a história marcha, e o sucesso às vezes vai para aqueles que quebram às regras. A primeira responsabilidade da monarquia é sobreviver, e o mesmo é verdade para um país como a Inglaterra. De alguma forma nós nos confundimos.

Em nossas vidas pessoais e domésticas, precisamos ser compassivos e justos. Os homens devem saber que o modo de vida patriarcal concede grandes vantagens próprias, e o conveniente é que eles as exerçam com grande autocontrole. Paradoxalmente, os homens são frequentemente muito fracos e vulneráveis; a necessidade masculina por aprovação feminina coloca o frágil senso de masculinidade deles em risco. As mulheres são frequentemente as mais calmas, auto conhecedoras e pacientes, e assim capazes de apoiar os vacilantes egos masculinos quando a ajuda é mais necessária. As mulheres podem também parecer ameaçadoras e mesmo aterrorizantes, mas ao menos em algum momento alguém pode interpretar essa visão misógina como um resultado de uma imaginação masculina doentia. Mais do que tudo, homens e mulheres necessitam um do outro. O cortejo e o casamento são cheios de dificultosos desafios, mas no todo é possível ver que não temos outra escolha. Homens e mulheres devem aprender a seguirem em frente um com o outro e a praticar o autocontrole, porque, de outra forma, a vida humana não terá como continuar. As amizades entre homens e homens, mulheres e mulheres, não são menos preciosas.

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