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Dentre as obras-primas expostas no Museu do Prado (Museo del Prado), em Madri, destacam-se dois quadros a óleo, de grandes dimensões, do pintor espanhol Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1828), expostos um ao lado do outro, e referentes a um mesmo episódio: a invasão da Espanha pelo exército de Napoleão.

O primeiro quadro intitula-se “O 2 de maio de 1808 em Madri: a luta contra os mamelucos” (El 2 de mayo de 1808 en Madrid: la lucha con los mamelucos) e retrata o levante dos cidadãos madrilenhos contra os invasores franceses. Os mamelucos eram membros de uma antiga milícia turco-egípcia, derrotada por Napoleão em 1798 e incorporada ao seu exército.

O segundo quadro designa-se “O 3 de maio de 1808 em Madri: os fuzilamentos na montanha do Príncipe Pio” (El 3 de mayo de 1808 en Madrid: los fusilamientos en la montaña del Príncipe Pío) e retrata a terrível vingança do exército francês, que executou centenas de rebeldes e, entre eles, muitos inocentes.

Este segundo quadro, de 1814, mede 2,66m x 3,45m. Em lugar de retratar heróis, como é de praxe, ele mostra as vítimas, aqueles cuja morte os transforma num símbolo poderoso da luta contra o inimigo opressor. O quadro é sombrio. O fuzilamento ocorre à noite e a única iluminação do local é uma grande lanterna no chão, que produz uma luz amarela e sombras fantasmagóricas.

Os soldados do pelotão de fuzilamento estão à direita do quadro. Goya não mostra seus rostos. Eles parecem autômatos irracionais, que executam sem discutir as ordens que recebem de seus superiores. Destacam-se por suas mochilas, seus casacos de lã de cores irregulares, porque não eram tingidos, pelos chapeús, no formato de um tronco de cone quase cilíndrico, sabres e fuzis. Estes últimos revelam um pormenor cruel: estão equipados com uma baioneta fixa, que Goya retratou com lâminas pontiagudas, talvez para desferir o golpe de misericórdia que abreviaria o sofrimento daqueles que não morressem de imediato.

O que mais impressiona, no entanto, são as vítimas, situadas no lado esquerdo do quadro, testemunhas mudas do horror da guerra. No chão, na parte inferior à esquerda, jazem alguns cadáveres ensangüentados. Um deles tem os braços abertos, sugerindo uma vítima crucificada. Acima destes, estão os homens sob a mira dos fuzis. Entre eles, um frade que reza com as mãos entrelaçadas. Talvez Goya esteja sugerindo que algumas das vítimas que estão ali sequer participaram dos eventos do dia anterior. Um outro leva as mãos à cabeça. Dois deles apresentam um semblante misto de pavor e incredulidade. O personagem central do quadro, com uma camisa branca que reflete a luz da grande lanterna, é o mais marcante. Ele mira seus algozes com os braços bem abertos e um olhar tão expressivo que dificilmente quem o vê se esquece dele. Ele parece assustado, como quem sabe que vai morrer. Ao mesmo tempo, dá a impressão altiva de quem pede que os soldados não errem e o deixem sofrer. Ele tem os braços abertos, como um crucificado, e exibe uma marca no centro da mão direita, semelhante a uma das chagas de Cristo.

À direita dos anteriores, um grupo de homens, igualmente aterrorizados, aguarda a vez de serem executados. O quadro parece sugerir que este é um processo contínuo, como se aquela cena simbolizasse uma rotina que se prolongaria pelos séculos vindouros.

Goya tinha razão. Ele sugestivamente incluiu numa de suas gravuras a legenda “o sono da razão produz monstros” (el sueño de la razón produce monstruos). É dever do artista desmascarar os monstros que se produzem quando a razão adormece e a força bruta passa a exercer seu poder.

No roteiro do filme do ator e diretor Kenneth Branagh (Hamlet – Screenplay, Introduction and Film Diary, Inglaterra, Random House, 1996), Hamlet sai de cena conforme as instruções de Fortimbrás: “Que quatro capitães/ Conduzam Hamlet, como um soldado, a um tablado” (Let four Captains bear Hamlet like a soldier to the stage) (5.1). O roteiro, no entanto, acrescenta uma orientação: ele seria “mantido no alto, como um crucificado” (held high in the crucifix position).

Certamente Goya concordaria com este final. Hamlet foi também uma vítima do “sono da razão”, à semelhança dos bravos patriotas retratados por ele.