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Tradução do Quarto Capítulo de: As Ideias de Shakespeare, Mais Coisas entre Céu e a Terra, David Bevington, 2008.

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Apresentar um Espelho à Natureza

As Ideias de Shakespeare sobre Escrita e Atuação

            Um conjunto de ideias que Shakespeare precisava considerar, conforme aventurava-se com crescente audácia nos temas filosóficos do ceticismo e da dúvida, tem a ver com a natureza da poesia e do drama. Quais são os propósitos artísticos e morais da poesia e do drama, e como o poeta e o dramaturgo seguem suas funções de fornecedores da sabedoria moral? As declarações de Shakespeare acerca de seu ofício como escritor, ambos implícito e explícito, toma como dado que a poesia e o drama servem como importantes guias da conduta humana. Nessa hipótese, Shakespeare segue a linha dos teóricos antigos e da Renascença, de Aristóteles e Horácio a Philip Sidney e Ben Jonson. A ideia está no coração da Defesa da Poesia (1595) de Sidney: a poesia ultrapassa ambas a história e a filosofia, na visão de Sidney, pois ela ilumina poderosamente grandes verdades com apimentados exemplos, assim evitando à incapacitante particularidade da história por um lado e às insossas abstrações da filosofia por outro.

            Para Shakespeare, o poder da arte é justamente tão importante para o dramaturgo e ator quanto o é para o poeta. O que significa dizer que a atuação é uma imitação da natureza? Por que a imitação desse tipo é tão importante para nós que pode afetar a vida das pessoas, para melhor ou pior? Quais estilos de atuação podem melhor alcançar à função do teatro de oferecer um espelho à natureza? Essas coisas parecem importar sobremaneira a Shakespeare, e particularmente quando ele escreve seus Sonetos e Hamlet (cerca de 1599-1601). Noções implícitas sobre a natureza da arte dramática são encontradas ao longo de todo o cânon, é claro, mas verbalizações explícitas estão especialmente em evidência por volta da virada do século. Os Sonetos são difíceis de serem datados individualmente, mas alguns sonetos chaves são plausivelmente do final dos anos 1590 ou início dos 1600, e então também podemos assumir que Shakespeare esteve pensando sobre sua arte por algum tempo. É como se Shakespeare avaliasse cuidadosamente seu método artístico conforme ele deixa de escrever comédias românticas e peças de história Inglesa para peças de gênero mais problemático, como Tróilo e Créssida (1601) e as grandes tragédias. De qualquer forma, esse parece um momento adequado para nós olharmos para a visão de Shakespeare de seu próprio ofício.

            Apesar de Shakespeare nunca ter escrito um ensaio literário ou um prefácio para uma peça ou poema expressando suas visões sobre o que significa ser poeta e dramaturgo, e mesmo que nós não tenhamos nenhuma correspondência preservada sua ou arquivos de conversas literárias, podemos intuir muito das passagens em seus poemas e peças onde os tópicos da escrita e atuação aparecem. Como sempre, temos que ser cuidadosos em não atribuir a Shakespeare os pensamentos de seus personagens, mas podemos identificar posições que são colocadas em debate. Então, também, certos temas sobressaem de forma a sugerirem que eles são de alguma importância para seu autor.

            Os Sonetos parecem profundamente interessados no fenômeno da fama alcançada pela escrita, e fama alcançada através de ser descrito por outrem. Essas são ideias comuns, que se voltam para o mundo clássico, então não se deve colocar muita ênfase na individualidade da visão, mas elas insistentemente se apresentam entre os temas centrais dos Sonetos. Um exemplo bem conhecido é o do Soneto 55:

Nem o mármore nem os dourados monumentos

De príncipes, devem sobreviver a esse poderoso verso

Mas você brilhará mais forte nesses conteúdos

Do que a não cuidada rocha empoeirada pelo lascivo tempo.

A melhor proteção contra a devastação do tempo, esquecimento, e a guerra, o poeta segue para nos assegurar, é a lembrança literária: “seu louvor deve ainda encontrar espaço / Mesmo nos olhos de toda posteridade / Que desgastará esse mundo até à danação final”. “Seu” aqui pode significar o jovem cavalheiro a quem os Sonetos são endereçados geralmente, e nós como leitores.

            Vários dispositivos desse soneto são notáveis. O poeta louva os méritos da poesia sobre monumentos de rocha, que podem parecer duráveis mas são de fato sujeitos à decomposição e abandono. Um problema com os monumentos de mármore é que eles são brevemente esquecidos, “empoeirado pelo lascivo tempo”, “não cuidado”, ou eles serão anulados e destruídos. A poesia, por outro lado, durará não somente por séculos mas para sempre. A guerra é emblemática dos processos os quais o declinante Tempo irá inevitavelmente “queimar / O registro vivo da sua memória” ao menos que ela seja redimida pela poesia. O poeta enfatiza repetidamente às vantagens da poesia para a pessoa assim celebrada: essa pessoa irá “viver nisso” até “o julgamento que te faz levantar”, isto é, até o dia do Juízo Final no fim do próprio tempo. Simultaneamente, o soneto implica que a poesia também irá imortalizar o autor. O soneto é reflexivo sobre si mesmo: conforme o lemos, lembramos das palavras de William Shakespeare e vemos nesse soneto uma demonstração de como, de fato, a poesia pode alcançar um tipo especial de imortalidade para quem o produz. O criador de sonetos está também implicitamente orgulhoso de um coleguismo entre poetas e amantes da poesia que podem desprezar “os dourados monumentos / de Príncipes”. As realizações de homens orgulhosos e poderosos (como Alexandre, ou Júlio César) inevitavelmente decaem, como também todas as coisas desse mundo ordinário. A poesia é de uma ordem maior. Ela compartilha com a religião a verdade eterna que pode rir com gentil desdém do mero mundano.

            A poesia é uma defesa contra o envelhecimento, não em um sentido de retardar o processo biológico, mas de ensinar-nos a colocar nossa confiança nos valores eternos do verdadeiro amor e amizade. Guardar-se contra o tempo que se aproxima com rapidez quando o caro amigo do poeta será, como o próprio poeta, “Com a mão injuriosa do Tempo esmagado e esgotado” e sua face cheia “Com linhas e rugas”, o poeta fortifica-se a si mesmo com a convicção que o Tempo “nunca cortará a memória / A beleza de meu doce amor”: “Sua beleza deve ser vista nestas brancas linhas, / E elas devem viver, tanto quanto ele nelas permanecerá verde” (Soneto 63). A poesia pode eternizar a beleza do tipo que não pode fenecer. Novamente, no Soneto 65, a resposta para o apavorante desafio posto pela “triste mortalidade”, contra a qual “o latão, nem a rocha, nem a terra, nem o mar ilimitado” podem resistir por muito, é a poesia, e a poesia somente. Nada pode impedir o “ligeiro passo” do tempo, “ao menos que esse milagre tenha poder, / Que em tinta preta meu amor possa permanecer brilhante”. A ênfase na “tinta preta” em ambos os sonetos mostra a importância do tema paradoxalmente: a poesia é imortal, e ainda assim é criada por um mero mortal que escreve com uma substância fluida que parece quase uma sujeira. O ato físico de escrever, e o papel na qual as palavras aparecem, são efêmeros, mas as ideias e imagens contidas nessas palavras não o são.

            Por toda a característica modéstia do poeta-falante sobre sua própria habilidade como poeta, ele não se envergonha perante o poder da poesia ela mesma e sua habilidade de conceder fama através da escrita. “Seu nome a partir de agora, vida imortal deve ter”, ele assegura a seu amigo, “Embora eu, uma vez que parta, todo o mundo deve morrer.” “Você ainda viverá – tal virtude tem minha pena – / Onde a respiração mais respira, mesmo nas bocas dos homens” (Soneto 81). Quando o poeta sente que seu gênio está declinando ou que ele está gastando seus esforços em “alguma música inútil”, ele implora à Musa para vir em sua assistência para o propósito maior de comemorar o amigo. O poeta fala a sua Musa como se ele, o poeta, fosse apenas um instrumento o qual à humilde pena é ensinada ambos “aptidão e argumentos” pelo poder e a “fúria” da inspiração. Somente à Musa, então, pode fazer o que a poesia deve fazer: “Dar a meu amor a fama, mais rápido que o Tempo desgasta à vida; / Então tu prevenirás sua foice e a desonesta faca” (Soneto 100).

            O poeta-falante dos Sonetos é sensível às complexas relações entre arte e mero artifício. Como Sir Philip Sidney, em sua sequência de sonetos chamada Astrophel and Stella, o falante dos sonetos de Shakespeare recusa insistentemente em seguir as fracas convenções da prática de sonetos – as quais, por volta de 1590, atraíam muitos seguidores e imitadores. “Os olhos de minha amante não se parecem com o sol”, ele proclama, aludindo ao modo na qual muitos sonetos reiteram aquela comparação clichê. “O coral é muito mais vermelho do que o vermelho dos lábios dela.” Os seios dela não são brancos como a neve, o cabelo dela é crespo e negro, as bochechas não relembram rosas de damasco, a respiração dela não é perfumada, o discurso dela não é música, e a maneira dela de andar é mais mundana do que divina. Shakespeare está aqui satirizando não somente o desfile de imagens inertes e previsíveis, mas também às convenções do soneto em ostentar, ou catalogar os charmes de uma dama, expressos como se eles fossem insígnias heráldicas. “E ainda, pelos céus, penso que meu amor é tão raro / Quanto qualquer dama desmentida com falsas comparações”, ele conclui (Soneto 130). A poesia deve evitar clichês porque eles degradam o tema, substituindo o vulgar e esperado por imagens que são frescas e persuasivas.

            O conselho aqui é próximo àquele de Rosalinda, em Como Gostais, quando ela aconselha Orlando a abster-se das fórmulas vazias no cortejo, como por exemplo dizer que ele morrerá por amor se sua paixão não for retribuída. “Não, por fé, morra por procuração”, ela o aconselha. “O pobre mundo tem quase seis mil anos, e em todo esse tempo não houve qualquer homem que morreu, nomeadamente, por amor.” O exemplo dela inclui Tróilo, que “fez o que podia para morrer” de amor sem ter sucesso nessa empreitada, apesar de ele ser “um dos padrões do amor”, e Leandro, que morreu não por que estava doente de amor (como os “tolos cronistas daquela época” continuavam insistindo) mas porque teve câimbra enquanto nadava o Dardanelos para alcançar sua amada Hero de Sestos. “Essas são todas mentiras”, Rosalinda conclui (4.1.89-102). Orlando seria bem aconselhado em evitar o antiquado voto de amar “Sempre e um dia”. “Diga “um dia,”” sem o “sempre”, Rosalinda insiste (138-9). O amor necessita ser realístico em suas expectativas; assim também a poesia de amor. Julieta está com a mesma mente em Romeu e Julieta quando ela pede a Romeu não jurar “pela lua, a inconstante lua, / Que mensalmente altera-se em sua órbita circular, / Para que teu amor não se prove igualmente variável” (2.2.109-11). Como no Soneto 130, a ideia aponta para a necessidade de franqueza em ambos os relacionamentos humanos e na arte. Ao mesmo tempo, estamos constantemente conscientes, conforme lemos esse soneto ou qualquer outro, de como são estudadamente artificiais as convenções da escrita de sonetos, com suas formas de estrofes altamente estruturadas e o padrão de rima. A escrita precisa aprender a criar uma aura de genuinidade através do uso criativo da convenção poética.

            Às vezes, o poeta-falante dos Sonetos é capaz de uma dolorosa auto-degradação em sua arte, ou ao menos em sua profissão. O Soneto 111 começa como se segue:

                        Ó, por mim, desprezas à Sorte,

A deusa culpada de meus malfeitos,

Que nada melhor proveu para minha vida

Do que meios públicos que procria maneiras públicas.

Então sobrevém que meu nome receba uma marca,

E quase de imediato minha natureza se subjuga

Ao que é objeto do trabalho, como à mão do tintureiro.

Se isso é ao menos em parte autobiográfico, ele parece sugerir que o poeta-falante lamenta às circunstâncias que o deixaram com pouca escolha além de colocar a si mesmo às vistas do público de uma forma que cria “maneiras públicas” em si mesmo e incorre em desgraça por algo vergonhoso e sujo, como o tintureiro o qual as mãos estão manchadas pela tinta que manipula. Isso pode referir-se à atuação, que é necessariamente pública, e que carrega com ela (naquela época e hoje) uma reputação de uma vida boêmia. Atuar, nessa visão, é algo aventureiro e descarado. O ator inspira sua plateia com sua habilidade na representação, enquanto que, ao mesmo tempo, faz uma exposição de si mesmo. Essas dolorosas contradições aplicam-se ao dramaturgo também? A própria natureza do escritor está em perigo de ser diminuída pelo meio no qual ele trabalha, nomeadamente, a linguagem da poesia e o mundo do teatro comercial? Quando o poeta-falante reclama a seu amigo, “Nossa, isso é verdade, fui de um lado para o outro / E fiz de mim mesmo uma mixórdia para o público” (Soneto 110), ele soa novamente a nota de auto-degradação ou mesmo de auto-abominação por uma profissão na qual o falante tem “Ferido meus próprios pensamentos, vendendo barato o que é mais querido”.

            Ainda em outro lugar Shakespeare soa como se considerasse a atuação e a escrita de peças como as profissões mais nobres, e as mais capazes de oferecer a um mundo carente de perspectivas artísticas. Em nenhum lugar essa admiração é mais eloquentemente expressada que no conselho de Hamlet aos atores que visitaram Elsinore e que estão prestes à encenar às ordens de Hamlet. Evitar à atuação forçada, ele os adverte: “não ultrapassar a modéstia da natureza, porque o exagero é contrário aos propósitos da representação, cuja finalidade sempre foi, e continuará sendo, como que apresentar o espelho à natureza, mostrar à virtude suas próprias feições, à ignomínia sua imagem a ao corpo e idade do tempo a impressão de sua forma.” (Hamlet, 3.2.19-24). Esses são objetivos morais elevados. O próprio propósito da mimésis, Hamlet parece argumentar, é instruir através da ilustração e do exemplo. O espelho da arte nos mostra o que somos: ele nos previne dos modelos negativos e encoraja à conduta virtuosa. Atores são “as crônicas abstratas e breves do tempo” (2.2.524). Essa não é uma visão redutiva ou utilitária da arte, porque a arte necessita ser eloquente e bela para inspirar o comportamento correto, mas essa visão parece desconcertada pela proposição que, em seu melhor, a arte tem uma função didática.

            De fato, isso prova-se no presente exemplo. O propósito de Hamlet ao adicioná-lo em “O Assassinato de Gonzago” é de testar a consciência do Rei Claudio ao mostrá-lo uma representação do ato homicida que Hamlet acredita que Claudio cometeu. Ele ouviu “Aquela culpada criatura sentada perante uma peça / Sendo pela própria esperteza da cena / tão golpeado na alma que brevemente / Eles proclamaram suas malfeitorias” (2.2.590-3). Claudio responde como o esperado. Quando a performance de “O Assassinato de Gonzago” alcança o ponto crítico na qual o sobrinho do Rei, Luciano, está quase para aplicar veneno nos ouvidos de seu dormente tio, Cláudio não pode mais sustentar. Ele levanta-se e faz uma saída impetuosa, para a consternação de todos os presentes menos Horácio e Hamlet. Este, tendo preparado essa “peça ratoeira”, está agora pronto para “tomar à palavra do fantasma por mil quilos” (3.2.235, 258-85). Hamlet testou e verificou a verdade sobre o que o fantasma de seu pai disse sobre o assassinato do velho Hamlet pelo seu irmão. A sequência também confirmou em ação a teoria de Hamlet sobre a eficácia da arte dramática em despertar à consciência. “O Assassinato de Gonzago” mostra precisamente o que Hamlet queria dizer por apresentar “o espelho à natureza”. A ideia é profundamente idealística na sua visão da escrita: assim como a arte pode eternizar a fama, ela também pode mudar nossos corações e ajudar-nos a combater nossas próprias naturezas pecaminosas.

            Esse alto propósito moral explica por que, na visão de Hamlet, a atuação deve “adquirir e gerar uma temperança que lhe dará sutileza”. Hamlet prossegue por um tempo em sua insistência que os atores não devem “bocejar” seus discursos como se eles fossem os pregoeiros da cidade, ou ver o ar com suas mãos, ou “rasgar uma paixão aos farrapos, aos trapos, dividindo os ouvidos da plateia, que na maior parte não é capaz de nada exceto inexplicáveis shows de ignorância e barulho”. Eles precisam tomar cuidado para não exceder Herodes pelo discurso, ou fazer piadas inoportunas para que os “incompetentes riam” – uma falta que “não pode causar senão desgosto ao criterioso, e a censura deste deve constituir na vossa estima mais do que um teatro lotado pelos outros” (3.2.1-28). Especialmente os bobos devem evitar à tentação de improvisar alguma matéria frívola e então rir de sua própria tirada “a fim de fazer rir também certo tipo de néscios espectadores, conquanto nesse ínterim algum ponto importante da peça devesse ser valorizado” (39-43). A boa atuação tem como alvo a representação, o que alguém vê em um espelho real, sem distorção. A reforma do estilo de atuação (36-8) é necessária para evitar os abusos da atuação incompetente, que são geralmente, um resultado combinado de mal gosto da parte de alguns espectadores, e a disposição da parte de muitos atores em prover para um apetite de paixões triviais e “turbulentas”.

            A visão elevada de Hamlet da arte dramática, então, caminha lado a lado com uma visão intelectualmente aristocrática de que constitui um espectador adequadamente educado. Shakespeare ousa a conceder a Hamlet que se refira aos seus espectadores como “groundlings” – um termo empregado primeiramente por Shakespeare nesse sentido (e ainda em uso hoje) que descreve àqueles que estão no “pátio” de três lados do palco público do teatro Elisabetano. Muitos desses que ouviram o discurso de Hamlet na produção original em algum momento por volta de 1600 devem ter sido groundlings eles próprios, pelo menos no sentido prático. Hamlet está insultando-os? Mais provavelmente, ele está apelando para os melhores instintos críticos destes mandando-os juntar-se ao grupo seleto daqueles que têm uma compreensão madura do que o drama deve sobretudo ser. Em todos os eventos, ele apela ao drama como arte elevada. O drama deve “Adequar à ação à palavra, a palavra à ação” (3.2.17-18). Esse conselho aplica-se ao dramaturgo, assim como aos atores os quais Hamlet está endereçando.

            De uma maneira similarmente esotérica, Hamlet descreve aos atores um discurso dramático que ele ouviu uma vez. Ele nunca foi encenado, “ou se foi, não mais que uma vez, eu me lembro, não agradou a milhões; era caviar ao público” – isto é, era um prato escolhido, muito elegante para os gostos plebeus vulgares (2.2.434-7). Novamente, Hamlet está confrontando seus espectadores que ficam próximos ao palco, ou ele os pede para medirem e elevarem seus próprios gostos na literatura dramática por esse alto padrão? Em qualquer caso, a peça foi, na própria visão de Hamlet e na visão de outros “os quais os julgamentos nessas matérias gritam sobre o meu”, uma excelente peça, “bem digerida nas cenas, realizada com tanta modéstia quanto sagacidade”, e com “nenhuma salada nas linhas para deixar o assunto temperado” ou alguma “matéria na frase que podia denunciar o autor da afetação” (437-43). Hamlet parece ter a intenção de enaltecer uma obra que era muito sofisticada para os espectadores ordinários; seu elogio é direcionado para os poucos escolhidos os quais os gostos impecáveis os autoriza a serem juízes do mérito literário. A peça que Hamlet relembra era tão intelectual, de fato, que ela falhou no palco se um dia foi montada – uma descrição que estranhamente adequa-se à história de Tróilo e Créssida de Shakespeare, com sua sinopse de publicação em 1609 fazendo propaganda da obra como “nunca obsoleta com o palco, nunca aplaudida pelas garras e palmas dos vulgares, e ainda passando totalmente pelas palmas cômicas” (mesmo que outra versão da peça, na página-título do quarto de 1609, declare que ela foi “atuada pelos Servos da Majestade do Rei no Globe”) Por que essa insistência no refinamento intelectual às custas do entretenimento teatral popular? O relato que Hamlet acaba de receber de Rosencrantz e Guildenstern, sobre uma guerra de poetas na qual as companhias de atuação de adultos estão perdendo espaço para companhias de meninos atores, aparentemente com referência à cena teatral de Londres por volta de 1600-1, e aparecendo apenas no texto do Fólio de Hamlet (2.2.338-62), adiciona à sensibilidade de Hamlet que o teatro tem uma séria obrigação de manter o maior padrão possível de excelência artística.

            A amostra de Hamlet de alta arte dramática está no assassinato do Rei Príamo de Troia pelo Grego Pyrrhus (ou Neoptolemus), filho de Aquiles, e o grito apaixonado da Rainha Hécuba “Quando ela vê Pyrrhus fazer o esporte malicioso / De picar com sua espada os membros de seu marido” (2.2.450-518). A passagem é deliberadamente clássica, sendo derivada no principal da descrição de Virgílio da queima de Troia na Eneida, Livro II. Ela pode também fazer uma amarga homenagem à Dido, Rainha de Cartago, uma peça escrita por Christopher Marlowe em colaboração com Thomas Nashe em algum momento antes da morte de Marlowe em 1593. A peça evoca nostalgia por um mundo passado de tragédia clássica, em sua dramatização de um mito sempre recontado, sua dicção poética e o verso branco cuidadosamente controlado, suas longas frases que relembram Sêneca e as sentenciosas moralizações, seus focos em momentos de intensa paixão trágica, seus pronunciamentos estoicos sobre a Fortuna, e seu reconhecimento da presença dos deuses. Seu recital na ocasião presente desagrada Polônio como “muito longa”, assim dando a Hamlet uma outra oportunidade de expressar sua preferência por auditores com um gosto educado; como ele diz sobre Polônio aos atores, “Ele é para uma dança, ou uma fábula obscena, senão dorme” (2.2.498-501). O estilo arcaico usado para descrever o triste destino de Príamo e Hécuba não é o idioma usual de Shakespeare, de fato, mas ele habilidosamente serve um propósito dramático de definir o gosto de Hamlet como qualquer coisa exceto inculto.

            Podemos ouvir a própria voz de Shakespeare escondendo-se por detrás de Hamlet? O compromisso vivaz de reforma do teatro, o sólido conselho sobre adequar à ação à palavra, etc., soam tão irrepreensíveis e consideravelmente verdadeiros que nós somos tentados a ver Hamlet como um tipo de porta-voz do autor. O apelo para audiências sofisticadas é talvez consistente com os objetivos da companhia de atuação de Shakespeare, cujos valorosos convites para atuar na corte, e que conforme passava-se a primeira década do século dezessete escolhia cada vez mais atuar indoor, no Teatro Blackfriars, perante audiências cortesãs e sofisticadas. Ao mesmo tempo, parte do gênio de Shakespeare era, e é, que ele sabia como agradar dos reis aos bobos. O discurso em Hamlet sobre os propósitos e estilos artísticos da arte dramática deve, talvez, ser considerado na luz do debate na qual Hamlet é um falante particularmente eloquente.

            Geralmente, Shakespeare teve a reputação, em seus próprios dias e nas gerações futuras, de ser um escritor de viés mais popular e romântico, do que o estilo preferido pelos neoclassicistas na Inglaterra e no Continente, especialmente em França e Itália. Apesar de Shakespeare não expor suas próprias preferências em muitas palavras, sua prática literária confirma à impressão geral. Ele não mostra consistente consideração pelas chamadas unidades de tempo, lugar e ação, que eram partes tão essenciais da tradição crítica neo-Aristotélica. A Comédia dos Erros (cerca de 1589-94), certamente, segue uma estrutura de cinco atos como aquela de sua principal fonte, o Menaechmi de Plauto, ou Gêmeos. Sua ação ocorre principalmente dentro ou perto da casa de Antífolo de Éfeso, assim como em uma rua e um monastério próximo. Os Cortesãos habitam na vizinhança. Uma entrada “da baía” (4.1.84) e saída “para o monastério” e “para a Abadessa” (5.1.37,282) reforçam à impressão da localização de uma rua simples na cidade de Éfeso. A última ação dura somente um dia; o enredo é simples. Shakespeare evidentemente foi um aprendiz da tradição clássica nesta peça primitiva. Ele certamente sabia o que eram as unidades. Ele seguiu-as bem na A Tempestade, o coroamento de sua carreira com um dramaturgo em 1611 ou perto disso. Sua ação é limitada à ilha e a algo menos do que os “dois dias” os quais Próspero promete libertar Ariel (1.2.301-2, 424-5); aparentemente, a história inteira desdobra-se em aproximadamente “três horas” (5.1.136, 188, e 225; veja também 1.2.241 e 5.1.4-5). A história do que se deu por volta de “doze anos” atrás em Milão (1.2.53), quando Miranda era um bebê, é contada em estilo neoclássico adequado para um flashback. De fato, A Tempestade usa enredos múltiplos, especialmente em seu ridiculamente cômico subenredo da conspiração de Calibã, Stéfano e Trínculo, mas o todo continua graciosamente unificado.

          Por outro lado, Antônio e Cleópatra (1606-7) move-se por todo o Mediterrâneo médio e oriental, de Roma ao Egito e novamente de volta, assim como para Medina na Sicília (2.1), Misenium, perto de Nápoles, no sul da Itália (2.6), um local no Oriente Médio perto do nordeste do Irã dos tempos modernos (3.1), Atenas (3.4) e Actium, no noroeste da costa da Grécia (3.7-10). Nem todas essas localidades são nomeadas especificamente na peça, mas os grandes movimentos geográficos são essenciais à história. A passagem do tempo, apesar de não registrado em datas específicas, estende-se do encontro de Antônio e Cleópatra no Rio Cydnus no sudeste da moderna Turquia, em 41 a.C, até a derrota deles na batalha de Actium, em 31 a.C, e a morte de ambos no Egito no próximo ano. A peça é composta por quarenta e três cenas separadas, se por “cenas” queremos dizer de sequências de ação marcadas por um palco sem elementos cênicos. Algumas, durante à batalha de Actium, são breves. Algumas das peças históricas de Shakespeare não são menos épicas em suas reviravoltas cronológicas. As três peças sobre Henrique VI estendem-se cumulativamente da morte de Henrique V em 1422 àquela de Henrique VI em 1471, e move-se por toda Inglaterra e França; somente em 1 Henrique VI, a ação ocorre em Orleans, Auvergne, Rouen, Paris, Bordeaux, Angiers e Anjou, assim como em Londres e Westminster. A multiplicidade da ação é uma marca registrada das peças históricas.

Mesmo nas tragédias organizadas mais concisamente, tempo e localidade não obedecem às restrições neoclássicas. O enredo de Hamlet deve dar tempo para Hamlet ser posto em um navio rumo à Inglaterra, evadir seus acompanhantes ao embarcar em um navio pirata durante a luta do ataque dos piratas, e fazer seu caminho de volta à corte Dinamarquesa depois de ter trocado às instruções do pacote diplomático de Rosencrantz e Guildenstern, que seguem seu caminho à Inglaterra (4.6.15-29, 5.2.12-25). Otelo muda a localização de Veneza, no ato 1, para Cyprus até o final da ação – uma impropriedade dramática de acordo com a prática neoclássica que Giuseppe Verdi resolveu em seu Otello (1887) ao começar sua ópera em Cyprus, muito como John Dryden tornou clássica sua versão de Antônio e Cleópatra, entitulada Tudo por Amor (1678), ao localizar a peça inteira no Egito e contando toda a história anterior através das recordações dos personagens. Rei Lear move-se da corte Inglesa para à Escócia (Albany) e então para Gloucestershire e Dover, em um período de alguns meses pelo menos e com o emprego (raro na tragédia) de um enredo duplo. A ação de Macbeth deve dar tempo, seguindo o assassinato de Duncan, para a desafeição crescer perante o cada vez mais tirânico reinado de Macbeth e para um exército de resistência organizar-se com suporte Inglês.

          Um motivo geográfico comum das comédias românticas é uma jornada, usualmente de alguma civilização central para um mundo silvestre ou mágico, onde estranhas transformações podem ocorrer. Os jovens amantes de Sonho de uma Noite de Verão escapam da dura lei Ateniense para a floresta ou bosques, onde permanecem fascinados pela mágica das fadas até à ação final na corte do Duque Teseu. Os Dois Cavalheiros de Verona oscila entre Verona, Milão e uma floresta em Mântua repleta de salteadores. Rosalinda e Célia, em Como Gostais, escolhem o banimento da corte hostil do Duque Frederick a uma mais amigável Floresta de Arden, que pode ser localizada em França (Ardenne), ou em Warwickshire, ou em um mundo da imaginação do artista. Bassânio, em O Mercador de Veneza, viaja do mundo legalista de Veneza para Belmont, que o próprio nome indica uma beleza quieta e um retiro do mundo Veneziano do conflito comercial. Essas são jornadas para o que Northrop Frye rotulou como o “mundo verde” da comédia romântica shakespeariana. As relocações geográficas trazem consigo uma perspectiva visionária do mundo das fadas, pastores, goblins e até mesmo monstros. Os últimos romances de Shakespeare retornam enfaticamente ao motivo da jornada imaginativa: Péricles perambula por todo o Mediterrâneo, Cimbelino viaja da Inglaterra para Roma e ao montanhoso Gales e O Conto do Inverno move-se da Sicília ao fantasioso mundo pastoral da Boêmia. Mesmo A Tempestade, apesar de localizada por toda a ilha, encarna essa mesma jornada em uma narrativa que justapõe o sombrio mundo político de Milão e Nápoles com uma ilha desabitada existente apenas na imaginação do artista nessa peça.

          Uma forma de ganhar uma perspectiva na jovial desconsideração de Shakespeare pelas unidades clássicas é compará-lo com Ben Jonson, e com o que Jonson falou sobre Shakespeare. Apesar de Shakespeare não falar nada para os arquivos, Jonson raramente é silencioso perante Shakespeare. Podemos reconstruir uma conversa entre esses dois homens à partir das várias notas de Jonson e das não expressas mas implicadas persuasões literárias de Shakespeare, como vistas em suas obras? Jonson era o mais novo dos dois, nascido em 1572, oito anos depois de Shakespeare. Jonson sobreviveu a Shakespeare vinte e dois anos, morrendo em 1637. Jonson assim tem uma ampla oportunidade de refletir sobre as realizações de Shakespeare como um dramaturgo e poeta. Ademais, Jonson clamou para si o papel de principal crítico literário e erudito da Inglaterra. Suas conversas com William Drummond of Hawthornden em 1618 são apimentadas com pronunciamentos sobre escritores da Inglaterra, incluindo Sir Philip Sidney, Edmund Spenser, Samuel Daniel, Michael Drayton, John Donne e Shakespeare. Nos materiais introdutórios a suas próprias peças e em outros escritos, Jonson enunciou uma abrangente teoria neoclássica para julgar às realizações literárias de sua geração. Ele próprio era instruído em Latim e apenas em uma extensão menor em Grego.

          O mais generoso elogio de Jonson a Shakespeare como um escritor está em seu tributo “À memória de meu querido, o autor, Mr. William Shakespeare, e o que ele nos deixou”, publicado na primeira edição completa das peças de Shakespeare, o chamado Primeiro Fólio, em 1623. Jonson livremente confessa que os escritos de Shakespeare “são tais / Que nenhum homem ou musa pode elogiar muito”. Shakespeare é a “alma da época”, “O aplauso, deleite, a maravilha de nosso palco”. Jonson não irá alojar Shakespeare mesmo entre os maiores poetas da Inglaterra, nomeadamente Chaucer, Spenser e Francis Beaumont; Shakespeare está só em uma categoria. Ele é “um monumento sem uma tumba”, isto é, não precisando de nenhum monumento funeral para garantir sua imortalidade, pois sua grandeza irá resistir “enquanto seu livro viver / E nós tivermos argúcia para ler e elogios para dar”. Em seus escritos Shakespeare de longe supera John Lyly ou o “esportivo Kyd” ou “a poderosa linha de Marlowe”. Para aumentar o padrão de comparação ainda mais, Jonson compara Shakespeare favoravelmente, como um escritor de tragédia, com os tragediógrafos gregos Ésquilo, Eurípides e Sófocles, e também com os romanos Marcus Pacuvius (cerca de 220-130 a.C), Lucius Accius (170-cerca de 86 a.C, um mais jovem contemporâneo de Pacuvius) e “ele morto de Cordova”, isto é, Sêneca, o Jovem (cerca de 4 a.C à 65 d.C), o mais conhecido dos dramaturgos Latinos trágicos na Renascença Inglesa. Para a comédia, Jonson tem um elogio ainda maior; Shakespeare não tem paralelos. “Deixe tu sozinho, na comparação / De tudo o que a insolente Grécia ou a arrogante Roma / Produziu, ou desde que das cinzas delas vem.” Mesmo o melhor dos escritores cômicos antigos, o Grego Aristófanes e os Romanos Terêncio e Plauto, não agradam mais plateias, mas estão “antiquados e abandonados” depois do fenomenal sucesso de Shakespeare. O Shakespeare de Jonson é assim “não de uma época, mas para todo o tempo”, o “Doce Cisne de Avon” que será exaltado como uma constelação celeste, brilhando como a “estrela dos poetas”, brilhando “influência” para “repreender ou encorajar o exausto palco”.

          Por todo esse fervor no elogio, e sua nota de hipérbole que é apropriada a um poema comemorando alguém que está agora morto e definitivamente publicado, essa apreciação por Jonson está escrita de um ponto de vista neoclássico e, às vezes, crítico. Jonson ele mesmo está extraordinariamente presente no poema como um ditador literário. Ele aceita como sua a tarefa de julgar Shakespeare no rol dos grandes escritores da antiguidade e do presente. O cânon é intelectual e clássico. Implicitamente, Jonson parece maravilhar-se com o fenômeno de um escritor de Stratford-upon-Avon, o “Cisne de Avon”, que não apenas despontou entre a classe dos imortais mas os superou a todos, pelo menos na comédia. A observação é, ao mesmo tempo, uma marca de orgulho nas realizações da Inglaterra ao rivalizar os antigos (Triunfo, minha Bretanha, você tem um para mostrar / O qual todas as cenas da Europa mostrarão homenagem”) e um reconhecimento que a Inglaterra tem tido um caminho árduo para alcançar seus competidores. Jonson exibe sua própria cultura ao citar antigos dramaturgos que somente os eruditos conheceriam alguma coisa. Mesmo os escritores trágicos Gregos eram pouco conhecidos ou traduzidos na Inglaterra da Renascença, e Shakespeare quase certamente não os leu. Nem ele se refere a Pacuvius ou Accius. Mesmo o mais conhecido Sêneca pode ter alcançado a ele principalmente através das peças de Thomas Kyd e outros dramaturgos do palco popular; a única menção a Sêneca em toda a obra de Shakespeare é encontrada na expressão tola de Polônio que “Sêneca não poderia ser tão pesado, nem Plauto tão leve” (Hamlet, 2.2.400-1). As duas referências de Shakespeare a Aristóteles referem-se a escritos sobre ética e filosofia moral (A Megera Domada, 1.1.32, e Tróilo e Créssida, 2.2.166-7); nenhuma evidência aponta que ele tenha lido à Poética.

O poema comemorativo de Jonson é, assim, dirigido por um homem de imensa erudição para um que foi de algum modo autodidata, sem treinamento clássico. Jonson não consegue conter-se de observar que Shakespeare tinha um “pequeno Latim e menos Grego”; esse fato torna suas realizações como poeta e dramaturgo ainda mais surpreendentes. A observação também chama a atenção ao fato que Jonson ele próprio tinha em abundância o Latim e o Grego. Mesmo a concessão de Jonson que Shakespeare não era um mero filho da Natureza, ressalta o ponto que Shakespeare teve que aprender seu ofício pela aplicação diligente, como todo bom escritor deve fazer: “ele / Que deseja escrever uma linha viva deve suar” com vistas a “atingir o segundo calor / Sobre a bigorna das Musas”. Jonson insiste que “um bom poeta é feito, assim como nasce”. Jonson era sensível à acusação que ele trabalhou tão diligentemente em seus escritos; por isso que o Prólogo de seu Volpone (1605-6) é rápido em observar “É sabido que em cinco semanas o escreveu / Com suas próprias mãos” (16-17). Shakespeare, contrariamente, tinha uma reputação do fluxo fácil de sua escrita (veja abaixo). Adequadamente, Jonson faz um esforço consciente no poema comemorativo do Fólio para reapresentar Shakespeare o máximo que pode como seu [Jonson] próprio modelo de verdadeiro poeta.

          O poema de Jonson reconhece somente dois tipos de drama: tragédia e comédia. O ator trágico pisa o palco com sua “bota” (o “coturno”) ou uma bota de amarras alcançando o meio ou mais até o joelho, simbolizando a alta seriedade do drama que retira suas linhas de histórias das lendas míticas sobre os azares dos príncipes. O ator cômico usa a “meia”, um sapato baixo ou sandália simbolizando o baixo status da comédia e seu engajamento com o burlesco do dia a dia dos plebeus. (O gênero conhecido como a peça Sátira não ocupa lugar nessa classificação dual.) Historicamente, a distinção entre os dois gêneros de drama foi plenamente delineada no palco clássico antigo: comédias, com seus coros de talvez vinte e quatro membros e uma estrutura episódica característica, eram apresentadas em Atenas em festivais da grande Dionysia e à Lenaea, enquanto as tragédias empregavam um coro menor e uma estrutura de performance mais firmemente organizada, também para a grande Dionysia e à Lenaea, porém como eventos separados. Os prêmios iam para a melhor comédia e para a melhor tragédia. Essa codificação das categorias continuou nos escritos de Aristóteles e da tradição Aristotélica. Jonson mede e elogia as realizações de Shakespeare nesses termos duais. A divisão em dois gêneros era comum na Renascença. Francis Meres, em seu Palladis Tamia, 1598, elogia Shakespeare como segue: “Como Plauto e Sêneca são considerados os melhores da comédia e tragédia entre os Latinos, assim Shakespeare entre os Ingleses é o mais excelente em ambos os tipos para o palco.”

          Mas esse sistema classificatório adequa-se ao cânon de Shakespeare? Na taxonomia de Meres, as peças sobre Henrique VI são listadas como tragédias, assim como Ricardo II, Ricardo III e Rei João. Há explicação para o caso dessas três últimas peças serem classificadas como tragédias, certamente: Ricardo II era chamada “A Tragédia do Rei Ricardo o segundo” em sua folha de rosto de 1597 e Ricardo III era similarmente intitulado quando foi pela primeira vez publicada no mesmo ano, apesar de também encontrarmos títulos no Fólio como: “A Vida e Morte de Ricardo o Segundo” e “A Vida e Morte de Rei João” que coloca mais ênfase na natureza inconclusiva da história. Ricardo II é sobre a queda de Ricardo, mas é também sobre a elevação de Henrique Bolingbroke, Rei Henrique IV. As peças sobre Henrique IV desafiam à classificação bipartida da tradição clássica ainda mais inquisitivamente. Em quarto elas eram conhecidas como “A História de Henrique o Quarto” e “A Segunda Parte de Henrique o Quarto” em 1598 e 1600; no Fólio de 1623 a primeira parte é chamada “A Primeira Parte de Rei Henrique o Quarto”. Hotspur claramente morre naquela peça, mas, ao todo, a história é uma de sucesso para Henrique IV e para seu filho, o futuro Henrique V. Mesmo Falstaff é bem-sucedido na conclusão de 1 Henrique IV, e a peça ela própria contém algumas das melhores escritas cômicas de Shakespeare.

          O Fólio de 1623 está dividido em três grupos: não comédias e tragédias, mas comédias, histórias e tragédias. Dez peças de um total de trinta e seis pertencem a um grupo chamado histórias. Cumulativamente, elas dramatizam a história da Inglaterra durante o reinado de Rei João, no início do século treze, e então continuamente do reinado de Ricardo II no final do século catorze até o reinado de Henrique VIII e o nascimento da futura Rainha Elizabeth em 1533. O que é a peça histórica como um tipo de gênero? Em um sentido seu significado parece claro o suficiente no “Catálogo” do Fólio, ou no índice: essas dez peças são todas sobre história Inglesa. Rei João, o monarca menos conectado com os outros cronologicamente, presumivelmente capturou à atenção de Shakespeare por causa da ambiguidade da reivindicação de João ao trono Inglês e por causa de suas disputas com a igreja Católica; as outras nove peças contam à história da Inglaterra durante as guerras civis que eventualmente levaram ao estabelecimento da dinastia Tudor. Mas o que isso diz sobre gênero? O que é a peça histórica estruturalmente e formalmente? Por que Macbeth e Rei Lear não são classificadas como peças históricas? Ambas lidam com reis da história Britânica ou de história lendária. O que significa que algumas peças de história Inglesa possam ser classificadas como comédias e outras como tragédias?

          A peça de história Inglesa, então, é uma anomalia em termos das definições clássicas de gêneros dramáticos. Ela também representa uma das maiores realizações de Shakespeare. Ele teve um importante papel ao inventar o gênero, apesar de conhecer e fazer uso de alguns poucos experimentos anteriores de outros artistas, incluindo o anônimo As Famosas Vitórias de Henrique V (1583-8) e O Turbulento Reinado de Rei João (cerca de 1587-91). Ele foi claramente o praticante principal na escrita de peças de história Inglesa ao longo dos anos 1590. Sua abordagem no que constitui uma peça de história Inglesa é inteiramente pragmática. Ele escreveu essas peças como sequências; a forma e o conteúdo desenvolveram-se conforme ele avançava. Quando ele começou a escrever sobre Henrique IV e seu filho, ele pode ter planejado uma peça única até à morte do pai; se assim o foi, ele mudou de ideia conforme a escrevia, descobrindo que ele tinha muito o que dizer sobre Falstaff e Hal, e assim temos a história de Henrique IV em duas partes. A tradição conta que ele tirou um tempo para escrever uma peça (As Alegres Comadres de Windsor) sobre Falstaff apaixonado, por ordem da Rainha Elizabeth; disso não podemos ter certeza, mas ela assevera à reputação que Shakespeare detinha como improvisador. Ele parece que não teve compulsão em observar os gêneros da tradição clássica, tanto quanto não sentiu-se constrangido pelas chamadas unidades de tempo, lugar e ação. Uma peça bem-sucedida para ele parece ter sido qualquer coisa que funcionasse no palco para uma plateia.

          Quando Polônio anuncia a Hamlet que chegaram atores à Elsinore, ele os elogia pelos muitos gêneros os quais eles distinguem-se. Eles são, Polônio diz, “Os melhores atores do mundo, tanto para tragédia, comédia, história, pastoral, pastoral-cômica, histórico-pastoral, trágica-histórica, trágica-cômica-histórica-pastoral, cena indivisível ou poema ilimitado” (Hamlet, 2.2.396-400). Shakespeare está rindo de si mesmo? Notamos que a lista começa com “tragédia, comédia, história”, as três categorias que serão posteriormente empregadas na publicação do Fólio de 1623. Ambas “pastoral” e “pastoral-cômica” são termos que podem ser aplicados a Como Gostais ou O Conto de Inverno. “Trágica-histórica” adequadamente descreve peças como Júlio César e Antônio e Cleópatra que perfazem grandes tragédias da história. Se “cena indivisível” significa uma peça que observa à unidade de lugar, então A Comédia dos Erros e A Tempestade, entre outras, adequam-se à descrição. Se “poema ilimitado” refere-se às peças que desconsideram às unidades de tempo e lugar, os exemplos no cânon de Shakespeare são quase – bem – ilimitados. Polônio é um mau crítico literário para fiarmo-nos em comentários perspicazes, mas sua miscelânea de categorias dramáticas parece instrutiva quando pensamos sobre os tipos do drama shakespeariano.

          O rótulo “comédia” cobre um grande número de bênçãos. A comédia romântica sobre jovens apaixonados e suas estranhas aventuras errantes é matéria prima para as peças que Shakespeare estava escrevendo nos anos 1590; mas então, por volta do tempo de Hamlet, encontramos uma configuração de peças tão visivelmente discrepantes das normas da comédia romântica, que os críticos procuraram novos rótulos. O nome que mais prevalece para essas novas formas de comédias hoje é “comédia problema” ou “peça problema”. Medida por Medida (1603-4) descreve-nos uma Viena tão desorientada na devassidão sexual que o Duque ausenta-se da cidade, deixando no comando um deputado, Ângelo, que logo descobre que sua própria lascívia furiosa por uma jovem mulher determinada em ingressar em um convento (Isabella) é tão ingovernável que ele a ameaça com a execução de seu irmão Cláudio com uma acusação por fornicação ao menos que ela consinta em fazer sexo com o deputado. A aparente concordância dela toma forma ao substituí-la por uma mulher que Ângelo havia rompido alguns anos atrás. Esse “truque da cama” resolve o problema, mas a um custo de meios eticamente duvidosos. Várias cenas da peça passam-se na prisão. Entre os mais altivos personagens estão os alcoviteiros, as meretrizes e clientes do antro criminoso de Viena. Mesmo os casamentos no final são bizarros.

          Assim é o caso também em Tudo Está Bem Quando Termina Bem (cerca de 1601-5). Essa peça apresenta um jovem aristocrata, Bertram, que, desdenhosamente relutante em obedecer à ordem do Rei para que se case com uma jovem mulher de uma classe social inferior (Helena), que salvou a vida do Rei, foge para as guerras na companhia de um interessante malandro chamado Parolles. Helena, como Isabella em Medida por Medida, é motivada pelo expediente eticamente duvidoso do truque da cama: quando Bertram persegue a filha de uma viúva durante sua campanha militar em Florença, Helena arranja com a viúva para tomar o lugar da filha (Diana) na noite do planejado acordo sexual secreto. Bertram aprende uma lição sobre a obrigação que os homens devem sentir ao reconhecerem às consequências de suas agressões sexuais, e tudo termina bem, como o título da peça promete, mas não sem ter levantado questões problemáticas sobre a falha humana. Como uma comédia a peça é incomum, pela atenção simpática que dá a figuras mais velhas como a mãe de Bertram e “um velho senhor” chamado Lafew, que repetidamente expressam seus desapontamentos com as pessoas jovens e especialmente com jovens homens. Essa não é uma comédia sobre os inebriantes prazeres e riscos do amor jovem.

          Ambas Medida por Medida e Bem Está estão incluídas entre as comédias no Fólio de 1623, desse modo expandindo nosso conhecimento do que Shakespeare poderia ter incluído sob aquele termo flexível. Tróilo e Créssida quebra o molde inteiramente. Seu local no Fólio de 1623 é inteiramente anômalo: ela está entre as histórias e as tragédias, quase inteiramente sem paginação, e não é listada no “Catálogo” ou índice. Evidentemente sua inclusão na impressão foi posterior, depois de uma tentativa abortada de imprimi-la depois de Romeu e Julieta, que a colocaria entre as tragédias. A peça é discutivelmente comédia ou história ou tragédia, ou todas as anteriores. É uma comédia sombria, no espírito de suas companheiras “peças problemas”, apresentando um par de amantes o qual o breve caso termina abruptamente por causa de uma guerra absurda entre Gregos e Troianos e pelas falhas dos próprios amantes. É uma peça histórica pois faz a crônica da mais famosa – e infame – guerra da história. É uma tragédia em sua dramatização das mortes de Pátroclo e especialmente Heitor. Sobretudo, talvez, é uma sátira. Suas vozes córicas, especialmente àquelas de Pândaro e Tersites, aponta-nos em tom malicioso como “a lascívia come-se a si mesma” (5.4.35). Como Tersites diz, como forma de sarcástica caracterização da guerra, “Todo o argumento é uma meretriz e um corno, uma boa disputa para atrair invejosas facções e sangrar até a morte” (2.3.71-3). Tróilo e Créssida parece não ter sido um sucesso no palco de seus próprios dias, o que é bem possível, pois foi percebida como muito vanguardista.

          As últimas comédias de Shakespeare estendem ainda mais os limites do que aquele termo pode significar. Péricles (cerca de 1606-8) não foi incluída no Fólio de 1623, talvez porque os editores sensivelmente consideravam-na parte romance e parte tragicomédia: “romance” no sentido que ela toma seu herói de muitas aventuras “românticas” do tipo das encontradas em várias fábulas de viagens para terras longínquas, terminando finalmente em reunião com os familiares, e “tragicomédia” no sentido de uma mistura de elementos trágicos e cômicos. Do lado trágico há a aparente morte da esposa de Péricles, Thaísa e os encontros ameaçadores de sua filha Marina com madrastas perversas, piratas e cafetões; do lado cômico estão as deliciosas cenas de bordéis e os momentos de afetuosa felicidade quando pai, filha e esposa finalmente estão juntos novamente.

          Cimbelino (cerca de 1608) é discutivelmente outra tragicomédia, tão próxima à tragédia, de fato, que os editores do Fólio de 1623 decidiram imprimi-la entre as tragédias, como a última peça do volume. É possível ver o porquê de os editores a colocarem ali. Não somente é uma peça muito grande, em terceiro lugar após Hamlet e Ricardo III, e passa-se em uma Bretanha mítica e pré-histórica no viés de Rei Lear. Como Otelo, habita por algum tempo nas agonias do ciúme sexual. O impetuoso ciúme de Póstumo Leonato na aparente infidelidade de sua esposa Imogênia, e então o remorso suicida dele ao supor que foi bem-sucedido em tê-la assassinado, são as matérias do drama trágico do qual ele é salvo somente pelo auxílio providencial do romance tragicômico. A morte grotesca por decapitação do indesejado cortejador de Imogênia, Cloten, e a confissão cheia de horrores de leito de morte da mãe de Cloten, a Rainha, são o tipo de coisa que alguém espera encontrar em uma tragédia. Ainda que elas encontram-se aqui.

          Os ataques de ciúmes de Leontes contra sua rainha inocente, Hermione, em O Conto de Inverno (cerca de 1609-11), são similarmente trágicos em suas intensidades, e com dolorosos efeitos. Novamente somos confrontados com a morte em uma peça publicada entre as comédias. O jovem príncipe, Mamillius, está tão devastado pelo julgamento público de sua mãe por adultério que ele morre de angústia e choque. Hermione também aparenta morrer pelo seu suplício e, de fato, nós como plateia somos levados à acreditar que ela realmente está morta. Leontes está emocionalmente inconsolável com culpado remorso quando compreende muito tarde o que fez. O resultado é que a primeira metade dessa peça seria completamente trágica, se não fosse algumas dicas que tudo irá eventualmente ficar bem. A mudança entre as duas metades da peça é especialmente marcada. O Tempo como um Coro nos leva dezesseis anos à frente e para o mundo pastoral da Boêmia onde Perdita, abandonada pelo rei seu pai a um destino cruel de ser deixada em uma praia distante, cresce entre pastores e pastoras. A atmosfera festiva de primavera da Boêmia não poderia ser mais diferente do que o mundo decaído da Sicília de Leontes. Aqui na Bohemia o romance floresce entre Perdita e o principesco filho (Florizel) de um amigo afastado de Leontes, Polixenes. Eventualmente os jovens amantes vão para a Sicília e para a reunião entre pai e filha, e então, em uma das maiores surpresas teatrais de Shakespeare, a uma reunião com a supostamente morta Rainha Hermione.

          O Conto de Inverno é assim uma ilustração distintiva do que significa uma “tragicomédia”. Ela encarna uma dramaturgia que Shakespeare compartilhava com outros dramaturgos de Londres na última metade da primeira década do século dezessete, notavelmente John Fletcher. Plateias em ambos os teatros públicos e indoors poderiam estar buscando o tipo de realização meta-teatral que encontramos nessas peças. O Conto de Inverno, saltando uma geração inteira no tempo, tão característico do gênero, relembra um tratamento similar do tempo em Péricles (na qual à Marina deve ser permitido crescer de um bebê recém-nascido a uma jovem mulher na idade de casar) e em A Tempestade, onde o intervalo de doze anos desde à infância de Miranda, é apresentado através da recordação narrativa, em vez de uma encenação sequencial, assim que, em relação a isso, A Tempestade é mais uma comédia romântica no viés de O Mercador de Veneza ou Muito Barulho por Nada. Mesmo nessas comédias românticas encontramos elementos de tragicomédia: no Mercador, a própria vida de Antônio está aparentemente em risco na faca vingativa de Shylock, e em Muito Barulho, a falsa acusação de traição imputada contra Hero é séria o bastante para ameaça-la a comprometer a vida a um convento religioso. As assim chamadas tragicomédias posteriores são diferentes em grau das primeiras comédias românticas, não realmente em tipo. Bem Está, apesar de ser usualmente classificada como uma peça problema, contém elementos tragicômicos em seu lamento pelo estado decaído da natureza humana e sua enigmática e quase mágica resolução. Como um escritor cômico, Shakespeare resiste à classificação fácil a quaisquer “regras” clássicas.

          As ideias de Shakespeare sobre a comédia, então, parecem tão variadas como as cores do arco-íris. E sobre a tragédia? Aqui novamente encontramos uma resoluta recusa da parte de Shakespeare em conformar-se com qualquer tipo de partido. Um exemplo de sua aparente irregularidade intencional é a inclusão da comédia em suas tragédias. De acordo com os modelos clássicos, essa é uma quebra do decoro, e como resultado, Shakespeare tem sido frequentemente atacado com violência pelos eruditos com formação clássica quando, por exemplo, ele traz ao palco em Otelo vários músicos palhaços que com mau gosto comparam o “vento” dos seus instrumentos com a flatulência, e coisas similares, justamente quando Iago nos colocou em alerta que ele irá envenenar à mente de Otelo com pensamentos ciumentos sobre sua esposa (3.1.1-31). Em um viés similar, muitos críticos questionaram à sabedoria de introduzir um porteiro bêbado em Macbeth para fazer troça dos fazendeiros gananciosos, tecelões Ingleses desonestos, e assim por diante, apenas alguns momentos depois de Macbeth ter assassinado seu convidado régio (2.3.1-20). O rapaz bufão que traz as víboras ocultas em uma cesta de figos para Cleópatra quando ela prepara-se para morrer (Antônio e Cleópatra, 5.2.241-79) é outro exemplo. Clichês sobre um “alívio cômico” dificilmente responderão às sérias objeções: Por que a tragédia necessita de um alívio cômico? Por que quebrar o ânimo da ansiedade histérica e da culpa? Ainda que um propósito artístico possa usualmente ser intuído. O porteiro de Macbeth troça sobre temas sérios de “equívocos” diabólicos (uma prática Jesuíta de justificar uma mentira ao guardar na mente uma reserva secreta de algum sentido na qual à expressão poderia ser verdadeira) e fogos infernais, tudo isso nos relembra do pré-concebido destino de Macbeth para “ir pelos caminhos das prímulas, até a eterna fogueira” (18-19). A conversa de Cleópatra sobre “o belo verme do Nilo” que “mata e não dói” é altamente informativo do estado da mente dela conforme se prepara para cometer suicídio da forma menos dolorosa possível. Se esses argumentos de relevância nessas passagens são sempre convincentes ou não, o ponto aqui é que Shakespeare parece não encontrar problema ao misturar comédia com tragédia.

          Então, também, Romeu e Julieta contém algumas das mais deliciosas cenas engraçadas que Shakespeare já escreveu. Talvez a peça é um “comi-tragédia”; seu final é muito triste. Hamlet é brilhantemente engraçado em suas tiradas satíricas dirigidas à Polônio como um peixeiro, ou dos destinos irônicos dos advogados e grandes proprietários de terras que os esqueletos irão, ao seu tempo, terminar nas mãos de um coveiro. “Por que aquele não pode ser o crânio de um advogado? Onde está sua essência agora, suas sutilezas, seus casos, suas estabilidades e seus truques? (Hamlet, 5.1.98-100). Cleópatra em Antônio e Cleópatra compete com Falstaff como uma das mais fascinantes criações cômicas de Shakespeare. As cenas nas quais, durante as longas ausências de Antônio, ela consola-se lentamente ao torturar o pobre Mardian sobre o fato de este ser eunuco, ou obscenamente imaginar o que seria ser um cavalo e assim “carregar o peso de Antônio” (1.5.22), ou voar em um frenesi contra o mensageiro que a trouxe novidades sobre o casamento de Antônio com Otávia e então ouvir complacentemente quando o informado mensageiro reporta-a às características não atraentes da rival, são simplesmente deliciosas. Se Shakespeare não hesita ao introduzir elementos trágicos nas comédias românticas e tragicomédias, o mesmo é verdade ao reverso, sobre o uso de elementos cômicos na tragédia. Seus trocadilhos notavelmente inventivos, o qual o Dr. Johnson uma vez chamou de “fatal Cleópatra” tentando Shakespeare para longe da alta arte, é talvez outro exemplo de sua visão inclusiva da interconexão dos gêneros dramáticos que poderia encontrar um propósito ocasional para o riso na tragédia.

          Abordagens puristas clássicas à tragédia shakespeariana procuraram diligentemente pela falha trágica nos heróis trágicos de Shakespeare. Em último caso, a Poética de Aristóteles define o mais alto tipo de tragédia como aquela que um nobre e valoroso protagonista é diminuído não simplesmente pelo destino, mas pela a hamartia, variadamente definida como falha trágica ou, mais apropriadamente, erro trágico. (A palavra em Grego antigo vem de hamartanien, significando perder a marca, errar.) Aristóteles está pensando sobretudo no Édipo Rei de Sófocles como o exemplo perfeito do que ele quer dizer. Mesmo aqui o desacordo crítico persiste como o que a hamartia de Édipo pode ser – orgulho, angústia, blasfêmia, ou o erro fatal de assassinar seu pai e casar-se com sua mãe, atos decretados pelo destino como inevitáveis. Em todo caso, a consequência para a tradição crítica neo-Aristotélica é que hamartia cresceu em importância como um dos componentes principais do herói trágico. Os intérpretes aristotélicos na Europa Ocidental estavam aptos para ver a hamartia de uma perspectiva Cristã como algo próximo do pecado. Isso é quase certamente uma leitura incorreta de hamartia, que tem a ver com poluição ou violação de maneiras ofensivas aos deuses em vez de uma culpa pecaminosa, mas as formas dos Europeus Ocidentais de leitura de Aristóteles na Idade Média eram comprometidas em buscar por equivalentes culturais, e a Europa Ocidental era, e ainda é, geralmente, uma cultura culpada.

          Externamente ao menos, Otelo e Macbeth parecem incorporar um dispositivo estrutural que relembra à hamartia. Otelo é um nobre Mouro de extraordinária relevância, devotado ao amor por Desdêmona, assim como esta o é por ele. Seu erro trágico parece ser um ciúme estimulado com dificuldade, mas aterrorizante em seu poder uma vez desperto. Ele no final aceita completamente sua responsabilidade por ter assassinado uma esposa inocente por raiva ciumenta; ele foi provocado a isso pelo talentoso e astuto tentador, Iago, mas Otelo sabe que a culpa repousa fundamentalmente em si mesmo. Ele é, em sua análise final, “alguém que amou não sabiamente mas muito”, “alguém não facilmente ciumento mas, sendo forjado, / Perplexo ao extremo” (5.2.354-6). Ele pede somente que os demônios possam chicoteá-lo “Da possessão desse espetáculo divino”, soprando-o “sobre os ventos”, assando-o “no enxofre” e lavando-o “em profundos poços de líquido fogo” (286-9). O significado da tragédia dele parece inteligível, e é de fato próxima à ideia de Aristóteles que a tragédia é mais significante quando encontra uma conexão entre causa e efeito, entre a má sorte e o sofrimento. Otelo merece pelo menos a punição de ter perdido Desdêmona para sempre através de sua própria ação ignorante. A ideia é coberta com valores Cristãos aqui; Otelo e Emília ambos consideram Iago como um tipo de “demônio” (5.2.135, 294-5) que prevaleceu sobre Otelo através de tentação insidiosa e destruiu por um tempo sua fé na bondade de Desdêmona. Que Otelo recupere sua fé na bondade dela também dá significado a essa tragédia; Otelo destruiu sua própria felicidade e vê que ele deve sofrer justamente por isso, mas também vê que a bondade de Desdêmona é eternamente verdadeira. Ela é, como Emília diz, “a mais angelical” (134).

          Macbeth é similarmente eloquente nas importantes consequências espirituais do assassinato que contempla e então comete, e em seu próprio fardo irresistível de culpa. Mesmo se essa tradução em termos Cristãos perde o foco no significado Grego de hamartia, a associação entre causa e efeito não é menos proeminente. “e a Justiça / Conduz o cálice que envenenamos / Aos nossos lábios” (1.7.10-12), ele considera em solilóquio quando o momento dele assassinar o Rei Duncan aproxima-se rapidamente. Duncan está no castelo de Macbeth em dupla confiança: como o rei a quem Macbeth deve lealdade e como convidado a quem Macbeth deve uma obrigação sagrada como hospedeiro e guardião.

                       Duncan, além do mais, tem ostentado

                       Seu poder com humildade, e vivido

                       Tão puro no alto posto, que seus dotes

                       Soarão, qual trombeta angelical,

                       Contra o pecado que o destruirá;

                       E a Piedade, nua e recém-nata,

                       Montada no clamor, ou os querubins

                       A cavalgar os correios dos céus,

                       A todo olhar dirão o feito horrível,

                       Fazendo a lágrima afogar o vento.

                                                                      (Macbeth, 1.7.16-25)

          Macbeth está assim totalmente consciente que ele está prestes a cometer um pecado hediondo, contra a decência humana, contra os céus. As únicas coisas impulsionando-o a seguir em frente são sua “Excessiva ambição” (27) e as sugestões das Estranhas Irmãs e sua esposa. Sua hamartia é fácil de identificar e de nomear em termos Cristãos: ela é uma ambição pecaminosa, o mau tentador de Satã ele próprio. Por toda sua maravilhosa complexidade poética, Macbeth parece um caso de crime e punição.

            Outras tragédias de Shakespeare, entretanto, não estão tão abertas para análises neo-Aristotélicas, e sugerem que Shakespeare com frequência pensava à tragédia em termos impressionantemente diferentes. Hamlet é frequentemente (muito frequentemente) analisado como vitimado por sua indecisão: sua suposta hamartia é uma propensão para o atraso. Correto até certo ponto, Hamlet censura a si mesmo por não ter agido mais rapidamente e decisivamente em resposta ao comando do fantasma de seu pai para “Vingar esse proibido e o mais não natural assassinado”. “Apressa-me a sabê-lo”, Hamlet replica, “que eu, com asas tão ligeiras / Como a meditação ou os pensamentos de amor, / Possa arrebatar minha vingança” (Hamlet, 1.5.26-32). Ainda que uma leitura mais abrangente da peça nos encoraja a considerar que essa ação rápida é na maioria das vezes precipitadamente inapropriada, como quando Hamlet mata Polônio nos aposentos de sua mãe, logicamente assumindo que Cláudio devia estar escondido por detrás do arrás quando de fato não o estava. O resultado é uma morte desnecessária que faz Hamlet viajar para a Inglaterra e coloca em movimento todo o final trágico da peça, incluindo o retorno do furioso Laertes para vingar a morte de seu pai. Laertes não hesita, e adequadamente termina sendo o assassino de Hamlet de forma desleal pois Laertes não sabia o suficiente para compreender que o real vilão no caso é Cláudio. Contrariamente, a decisão final de Hamlet em deixar as coisas nas mãos da Providência traz um final mais satisfatório que Hamlet ou qualquer outra pessoa podia planejar: o assassinato de Cláudio, e uma morte nobre para o Príncipe Hamlet, reconciliado com sua mãe no leito de morte e aliviado do fardo de viver em um mundo tão problemático. Aqui de fato há “uma consumação / Devotamente desejada” (3.1.64-5).

            Se uma propensão ao atraso não é uma resposta satisfatória para a busca da hamartia de Hamlet, então qual é uma boa resposta? Talvez a melhor ideia é colocar de lado essa questão inteiramente, e pensar em Hamlet em vez disso como um bom homem que deve pagar o preço das corrupções manifestas do mundo. Ele é muito honesto para esse mundo. Quando ele está impaciente e difícil, como frequentemente é o caso, ele o é com aqueles que considera como bobos, como Polônio, ou oportunistas, como Rosencrantz e Guildenstern, ou vilões, como Cláudio. Com sua mãe ele é duro, mas isso porque ele verdadeiramente deseja salvá-la do que vê como os efeitos enfraquecedores da vida pecaminosa dela com Cláudio. Ele está profundamente arrependido pela morte infeliz de Ofélia, e prontamente pede perdão ao irmão dela. Com Horácio ele é um amigo amável e leal. Hamlet finalmente realiza o que seu pai o ordenou, ainda que de uma maneira que o absolve de assassinato a sangue frio. Ele morre, e será enterrado com todos os ritos funerais pertencentes a um soldado, pois, como Fortinbrás diz, ele é um homem confiável, se fosse rei, “Provar-se-ia o mais régio” (5.2.398-400). Horácio oferece a seu moribundo amigo um longo “Boa noite”, adicionando “E o voo dos anjos te cantem até o final!” (361-2). Hamlet é um herói trágico em um mundo que não sabe o que fazer com esses heróis até ser tarde demais, até as corrupções desse mundo terem cobrado seus tributos.

            Romeu e Julieta é outra tragédia que não cede bem a uma insistência categórica em um erro trágico. Romeu e Julieta não são nem protagonistas trágicos no sentido Aristotélico normal: eles não têm estatura heroica ou mítica, como Édipo ou Medeia, mas em vez disso são simpáticos, jovens ordinários que se apaixonam como os personagens centrais de uma comédia romântica. Apesar de desesperadamente ansiosos em serem unidos como marido e mulher, qualquer tentativa de encontrar o significado da tragédia deles no ímpeto exagerado é claramente inadequada. O problema deles é que o mundo das amargas rivalidades familiares não permitirá que eles sejam felizes juntos. Mesmo quando seus pais podem estar dispostos a esquecer o feudo Capuleto-Montague, o espírito de vingança é muito forte. Os desentendimentos contribuem para o desastre: podemos entender o porquê de Julieta não poder contar a seus pais que ela casou-se com Romeu. Má sorte e um momento infeliz atuam quando a nota do Frei Laurence ao banido Romeu malogra. Em um momento crucial, Romeu detém alguma responsabilidade pela tragédia por causa de sua decisão precipitada de matar Tybalt em vingança pela morte de Mercutio; Romeu sucumbe aos instintos masculinos da vingança de uma maneira que ele rapidamente lamenta. Porém mesmo aqui, alguém dificilmente pode argumentar que essa peça é centrada na hamartia. Em vez disso, como Capuleto diz, Romeu e Julieta são “Pobres sacrifícios de nossa inimizade” (5.3.304).

            Mais exemplos podem ser citados. Rei Lear e Gloucester em Rei Lear são ambos anciões tolos que fazem desastrosas escolhas, mas julgá-los como autores de suas próprias infelicidades é escolher o lado de Goneril, Regan e Edmundo. Os velhos homens são, como Lear diz de si mesmo, “Sou pecador / Contra quem outros pecaram.” (3.2.60). Júlio César faz um certo sentido em termos Aristotélicos, não surpreendentemente, pois ela é baseada na antiga história clássica, mas mesmo aqui a ênfase dramática é mais no gasto irônico do que em relação a César e Brutus e Cássio serem punidos pela húbris [orgulho excessivo]. Antônio e Cleópatra inverte às restrições da definição trágica clássica através de seu final triunfante na qual Cleópatra retira de Otávio César a oportunidade de mostrá-la em Roma como sua prisioneira. As ideias de Shakespeare sobre a tragédia são tão pragmaticamente derivadas e variadas quanto as peças as quais elas são designadas.

            As críticas apontadas a Shakespeare por Ben Jonson são, novamente, uma forma útil de avaliar às ideias literárias de Shakespeare da perspectiva oposta de um auto-proclamado escritor e teórico neoclássico. Juntamente com o elogio que já examinamos, Jonson tem vários comentários adversos à oferecer. Ele reclama com William Drummond de Hawthornden, em 1618, que Shakespeare “procurava arte”, como poderia ser visto quando “trouxe vários homens dizendo que eles tinham sofrido um naufrágio na Boêmia, onde não há mar por perto em algumas centenas de milhas”. É presumível que Jonson tinha em mente O Conto do Inverno, onde a Boêmia é mencionada várias vezes (e em nenhum lugar mais em Shakespeare), e onde de fado a bebê Perdita é deixada em uma região deserta da costa. Shakespeare está seguindo sua fonte, o Pandosto, de Robert Greene, ao dar uma costa marítima a um país que é tradicionalmente localizado na Europa central. A impaciência de Jonson aqui com a inexatidão é consistente com sua troça a Shakespeare pelos perceptivos anacronismos em Júlio César, ao equipar as ruas da cidade de Roma com “muros e muralhas”, “torres e janelas”, e mesmo “topos de chaminés” (1.1.38-9) como se a Roma antiga fosse uma Londres do século dezesseis, e de provê-la com um relógio pendular (2.1.192) em desleixada desconsideração pelo fato que o relógio mecânico não havia sido inventado até por volta de 1300. O ponto mais amplo de Jonson é que Shakespeare escreve muito rapidamente. “Os atores às vezes mencionam que é uma honra para Shakespeare, que em sua escrita, quaisquer coisas que ele escreve jamais borram uma linha”, Jonson nota em Timber, ou Descobertas. “Minha resposta tem sido, antes ele tivesse borrado mil.”

            Jonson também objeta vigorosamente contra a maneira livre e fácil de Shakespeare em relação à probabilidade no palco e com as unidades de tempo, lugar e ação. No prólogo da edição de 1616 do seu Todo Homem e Seus Humores, Jonson ataca às peças de história Inglesa nas quais os combatentes, “com três espadas enferrujadas, / E a ajuda de algumas palavras gigantescas, / Lutam sobre a longa discórdia de York e Lancaster / E da coxia trazem ferimentos e cicatrizes”. Esse mesmo prefácio segue ao preferir peças “Onde nem o Coro sopra-te pelos mares, / Nem o rangido do trono vem abaixo, para os meninos agradar, / Nem o sagaz busca-pé é visto como assustador / Às damas, nem as roladas balas ouvir / Para dizer que troveja, nem tempestuosos tambores / rufam para dizer-te quando a tempestade chega.” A Indução de Feira de Bartholomew (edição de 1631) compara o próprio mundo teatral de Jonson com as improváveis fantasias do drama romântico: “Se nunca houver um servo-monstro na feira, quem pode ajudá-lo, ele (Jonson) diz, nem um ninho do grotesco? Ele é relutante em fazer a natureza receosa em suas peças, como àqueles que geram estórias, tempestades e tais farsas, para misturar sua cabeça com os calcanhares de outros homens.”

            Todas as críticas apontam para Shakespeare como o principal ofensor entre os dramaturgos de Londres, mesmo quando Shakespeare não é especificamente mencionado pelo nome. A luta pela “longa discórdia de York e Lancaster” não pode ter outro alvo sério, desde que Shakespeare escreveu oito peças históricas sobre esse tema. O Coro soprando as plateias para além-mar soa como o Coro em Henrique V, que promete à plateia “daqui até França vamos conduzi-los em segurança, / E trazê-los de volta” (2 Coro, 37-8), embora outros dramaturgos também empregaram, às vezes, a mesma tática. Trovões anunciando a chegada de uma tempestade marca à cena de abertura de A Tempestade: “Ouve-se um tempestuoso barulho de trovão e relâmpagos”, seguido por “Entram Marinheiros molhados.” O “trono rangente” que descia por roldanas e cordas de um alçapão nos “céus” acima do palco é um proeminente dispositivo em Cimbelino: “Júpiter desce em raios e trovões, sentado sobre uma águia” (5.4.92). No Ato 4 de A Tempestade, “Juno desce” (72) para agraciar o casamento de Miranda e Ferdinand. “Trovões e raios” (1.3) assustam os habitantes de Roma nas vésperas do assassinato de Júlio César. “A Tempestade continua” repetidamente soa em Rei Lear conforme o velho rei aventura-se no “tempo horrível” do Ato 3, cenas 1 e 2. Rojões e fogos de artifício podem ter se tornado úteis quando, no cerco a Harfleur em Henrique V, “o ágil canhoneiro / Com o longo acendedor agora o diabólico canhão toca, / E abaixo vai tudo ante ele”, com o acompanhamento da direção de palco, “Alarmes, e as câmaras explodem” (3 Coro, 32-4). Outras cenas de batalha provêm oportunidades similares. Shakespeare se desculpa, através de seu Coro, por dar essa temerosa e inadequada representação da grande vitória de Henrique V em Agincourt, “Onde – ó, que pena! – devemos muito desgraçar / Com quatro ou cinco floretes vis e esfarrapados, / Certamente dispostos à doença na briga ridícula, / O nome de Agincourt” (4 Coro, 49-52). Jonson não poderia ter dito melhor. E para servos-monstros, “estórias, tempestades e tais farsas”, não precisamos olhar para outro lugar senão A Tempestade; O próprio uso por Jonson da palavra “tempestade” torna claro o objeto da sua ira crítica.

            O próprio credo literário de Shakespeare, apesar de nunca enunciado em muitas palavras, parece abundantemente claro na prática: ele descorda de Jonson ponto por ponto. A Tempestade observa as unidades de tempo, lugar e ação, como se Shakespeare estivesse dizendo a Jonson e outros críticos com o mesmo julgamento, em seu adeus aos palcos, Veja, eu posso perfeitamente bem observar as unidades dramáticas quando quero. Ainda mesmo aqui, Shakespeare traz um “servo-monstro” na pessoa de Calibã, e tais “farsas” como “várias formas estranhas trazendo um banquete” enquanto “Solene e estranha música” é emitida de algum lugar presumivelmente escondido. Próspero aparece “no topo, invisível” (3.3.17-19), querendo dizer no alto do teatro, usando uma roupa “invisível” como aquela de Puck e Oberon em Sonho de uma Noite de Verão. Alguém pode imaginar o desdém de Jonson por essas roupas “invisíveis”. Como alguém poderia ver uma pessoa “invisível”? Ainda que Shakespeare impenitentemente traga fantasmas, espíritos, bruxas ou estranhas irmãs, etc., que são capazes de aparecer para alguns humanos enquanto não para outros. O fantasma do pai de Hamlet visita Hamlet nos aposentos de sua mãe porém não deseja ser visto por Gertrudes (Hamlet, 3.4). O fantasma de Banquo aparece para Macbeth sem ser visto por nenhuma outra pessoa na mesa do banquete (Macbeth, 3.4). Os móveis podem parecer voar através do ar: quando na A Tempestade Ariel aparece “como uma harpia” para repreender Alonso, Antônio e Sebastian sobre suas traições, ele “bate suas asas na mesa, e com uma truque exótico, o banquete desaparece” (3.3.52). Essa é uma mesa de banquete que as “formas estranhas” trouxeram imediatamente antes de provocar os desesperados Italianos com visões perturbadoras, incitando mesmo os vilões a reconhecer, “Agora eu acreditarei / Que existem unicórnios; que na Arábia / Há uma árvore, o trono de fênix, uma fênix / Por essas horas reinando lá” (3.3.21-4). Shakespeare diverte-se na mágica do teatro, e não tem hesitação em chamar à atenção para suas próprias invenções teatrais pretensiosas. Jonson presumivelmente odeia cada minuto desse tipo de coisa.

            Shakespeare lida mais extensivamente com a teoria literária Jonsoniana no Ato 2, cena 7 de Como Gostais. O descontente satirista da peça, Jaques, acaba de encontrar-se com um bobo (Touchstone) na floresta, e está estourando de desejo em contar ao Duque Senior e aos seguidores do Duque o que o encontro com Touchstone inspirou Jaques a pensar. Jaques quer a licença de um “reconhecido bobo” (Noite de Reis, 1.5.91) para falar contra a loucura humana. “Eu devia ter liberdade / Contudo”, ele insiste, “com tanto privilégio como o vento, / De soprar em quem eu agrado” (Como Gostais, 2.7.47-9). Ele adverte seus alvos pretendidos que eles farão bem em atuar sem perturbações perante as farpas dele, para que eles não traiam suas próprias idiotices ao reagirem raivosamente e pessoalmente; se eles podem fingir parecerem “insensíveis” (55), os observadores podem supor que eles não são contaminados pela acusação. Jacques quer, como um satírico, unir forças com o bobo profissional, porque o bobo é muito livre para dizer qualquer coisa que pensar. “Invista-se na minha miscelânea”, Jaques proclama, “dê-me saída / Para falar minha mente, e eu irei de qualquer forma / Limpar o sujo corpo do infectado mundo, / Se eles pacientemente receberem meu remédio” (58-61). Esse é o manifesto do satírico Romano; as ideias são reconhecidamente aquelas de Horácio, Juvenal e Persius. Shakespeare, através de Jaques, habilidosamente sumariza a antiga e imemorial defesa da sátira literária: ela realiza uma função socialmente útil ao expor à loucura humana. É um “remédio” designado para “limpar” o “mundo infectado”.

            A defesa da sátira de Jaques afirma que ela é uma arte moral, não somente porque age em nome da sociedade geralmente mas porque ela ataca os abusos que são pecaminosos. Jaques oferece exemplos. Ele irá gritar alto contra o orgulho, especialmente à extravagância nas vestes: ele irá atacar qualquer “mulher da cidade” ou esposa de algum dignitário cívico que presumivelmente sustenta “O custo dos príncipes em ombros indignos” (70-6), isto é, desperdiçando dinheiro em refinamentos como se fosse uma aristocrata. A observação beira friamente o esnobismo social: as esposas da cidade não devem vestir-se acima de sua posição. Seus maridos não são exceção, é claro. Jaques pensa igualmente de qualquer pessoa na “mais básica função” (baixa classe social) que protesta que sua “bravura” ou esplendor nas vestes “não é meu custo” (isto é, não foi comprada nas minhas custas e não tem, por isso, relação com meu negócio como satirista), mas quem então comporta-se desse modo para deixar claro que o que o satirista diz é verdade: ele “adapta / Sua loucura ao caráter do meu discurso” (79-82). Parte da auto-justificação de Jaques, em outras palavras, é que quando os alvos da sua sátira comportam-se de forma a proclamar suas culpas, eles podem não ter resposta lógica àqueles que os criticam. Deixe o sapato servir a quem o calça.

            A última e talvez mais importante defesa de Jaques de sua arte como satirista é que ele não ataca indivíduos. Ele molda um retrato genérico da loucura humana e então permite a seus leitores ou ouvintes determinarem a adequação a qualquer caso hipotético. “O que então?” ele pergunta, quando ele fez um genérico esboço do personagem da “mulher da cidade” ou a de “mais básica função”, sem dar nenhum nome. “Deixe-me ver em que / Minha língua o ofendeu”, ele continua. “Se eu fiz o certo, / Então ele o ofendeu. Se ele é livre, / Minha advertência voa, sem destino, / Sem ninguém que a queira” (83-7). A verdadeira sátira aflige somente aqueles os quais o próprio comportamento conforma-se ao tipo satírico. Contrariamente, qualquer um que é “livre” da loucura em questão é por esse fato intocável. Isso, novamente, é teoria clássica sobre a sátira. Ela aparece em Horácio e também em sátiros posteriores, incluindo Alexander Pope no século dezoito. O gênio de Shakespeare e imparcialidade como escritor o possibilita a condensar as complexidades do pensamento crítico da literatura clássica em um verso denso mas elegantemente lúcido.

            Ao mesmo tempo, Shakespeare não perde à oportunidade para uma resposta inteligente. Duque Senior gosta e mesmo admira Jaques, mas tem uma explicação inteiramente diferente do que motiva o satirista: a sátira pode ser uma maneira de retaliar inimigos pessoais, e é também frequentemente a expressão de alguém culpado de falhas morais que agora fixa em outros como uma forma de defesa pessoal. “Que vergonha!” Duque Senior ralha com Jaques, talvez com bom-humor, mas com vigor entretanto. “Eu bem sei o que faria”, ele continua:

                                   Ia pecar, pra punir o pecado.

                                   Pois você mesmo foi um libertino,

                                   Tão sensual quanto o cio animal,

                                   E toda bolha e casca e carga má

                                   Que apanhou em sua vida de devasso,

                                   Iria vomitar no mundo inteiro.

                                                                                  (2.7.62-9)

O fato que Jaques não dá evidência na peça de um comportamento libertino, pode sugerir que a ilustração de Shakespeare do “satirista” aqui é genérica. Na visão do Duque Senior, satiristas são motivados por uma desconfortável consciência de seus próprios costumes libertinos e assim são todos ávidos em ver e condenar o comportamento libertino nos outros. O demônio ama companhia.

            O debate em Como Gostais termina em um empate, como é usualmente o caso em qualquer lugar que haja um tratamento dialético, por Shakespeare, de assuntos controversos. A sátira era certamente um assunto controverso quando essa peça foi montada pela primeira vez, em 1599. Uma onda de poemas satíricos romanos alcançou os quiosques dos livreiros em torno dessa época, incluindo o Virgidemiae (1597) de Joseph Hall e As Metamorfoses da Imagem de Pigmalião (1598), de John Marston, assim como peças satíricas que incluíam Todo Homem em seu Humor (versão in quarto, 1598) e Todo Homem Fora de seu Humor (quarto, 1599) ambos de Jonson. Também o Poetaster, de Jonson e Thomas Dekker e Satiromastix, de John Marston, ou A Soltura do Poeta Humorístico, apareceram logo em 1601. Algumas dessas eram altamente e obviamente pessoais. Jonson estava no centro do rebuliço. Shakespeare pode ter feito alguma crítica subentendida a Jonson na caracterização de Aquiles e Ajax, em Tróilo e Créssida, mas em geral Shakespeare se distanciava da sátira franca. O que ele pensava dela como um gênero literário e dramático?

            Como Gostais pode oferecer pistas. Shakespeare, como vimos, apresenta ambas, a defesa da sátira e a crítica dela com profundidade e simpatia. Ao mesmo tempo, ele arranja o debate entre Jaques e o Duque Senior no contexto maior do Ato 2, cena 7, na Floresta de Arden. Muito está acontecendo. O debate sobre a sátira é imediatamente seguido pelo surgimento repentino do jovem Orlando, faminto e desesperado para salvar à vida de seu velho servo, Adão, que está próximo à morte. Com a espada nas mãos, Orlando está preparado para usar de violência para alcançar seus fins. Porém sua hostilidade encontra-se com a compaixão e a generosidade. “Do que você gostaria?” Pergunta-o Duque Senior. “Sua gentileza deve forçar / Mais do que sua força nos move à generosidade” (2.7.101-2). Orlando e Adão recebem o cuidado que necessitam, e tornam-se parte da comunidade da floresta. Ademais, o incidente incita o Duque Senior a pensar mais amplamente o porquê dos seres humanos necessitar cuidar uns dos outros. Duque Senior e seus companheiros conheceram o que é sofrer. Aquele conhecimento cria neles uma esperança de um mundo melhor de valores comunais compartilhados:

                                   Verdade é que vimos dias melhores,

                                   E ouvimos sinos santos nas igrejas,

                                   Festejamos com os bons, e enxugamos

                                   Lágrimas que a piedade fez cair;

                                   Portanto sente-se, com gentileza,

                                   E ordeno que se sirva do que temos

                                   Pra atender sua necessidade.

                                                                                              (2.7.119-25)

Jaques, por sua parte, usa a ocasião para meditar sobre as Sete Idades do Homem, da infância e juventude até a velhice e a senilidade, tomando uma visão mais satírica que a vida é basicamente um pouco mais que um processo existencial de envelhecimento. O debate continua. Ainda que as ideias de compaixão, perdão, e comunidade, finalmente prevaleçam no mundo das comédias românticas de Shakespeare. Isso não é absolutamente a resposta final de Shakespeare, pois algumas visões fortemente pessimistas ainda serão enfrentadas nas grandes tragédias dos próximos anos. Ainda, nesse ponto de 1599, as atrações de um ponto de vista satírico finalmente geram às consolações de uma filosofia mais caridosa.

            Mesmo se ele é relutante de colocar-se à vista como um teórico literário, então, Shakespeare apresenta cumulativamente em sua obra uma visão crítica compreensível de sua arte. A poesia e o drama podem e devem servir a um propósito moral maior, não através de sermões dogmáticos mas através da apresentação de exemplos dramáticos vívidos. A arte desse tipo exaltada pode melhorar muitas complicações e imperfeições da vida, e pode sobreviver aos revezes do tempo. Consequentemente, o drama e a atuação devem evitar os apelos baratos ao gosto popular. Elas devem lisonjear mesmo os “groundlings” que vão ao delírio em “shows inexplicavelmente bobos e barulhos” para colocar suas visões para cima quando eles vêm assistir a peças. A arte dramática mais verdadeira é aquela que busca e ganha a aprovação daqueles que realmente entendem o que é a arte. Presumivelmente, Shakespeare não quer dizer que o artista deve escrever somente para a corte e para aqueles que são treinados pela universidade; ele próprio não frequentou uma universidade, e implicitamente permanece como uma prova viva que alguém pode ser uma pessoa da mais alta seriedade artística através da auto-educação.

            De fato, Shakespeare mostra pouca simpatia pelas “regras” clássicas de tempo, lugar e ação que eram as favoritas dos eruditos com treinamento clássico e os dramaturgos. Claramente, ele pode seguir às regras sem esforço e brilhantemente quando a história parece necessitá-las, mas ele é sobretudo um praticante de abordagens não-doutrinárias à estrutura dramática. Similarmente, ele dá insuficiente atenção a Aristóteles e à tradição neo-Aristotélica de interpretação crítica. Ele aborda o gênero de maneira variável, misturando comédia e tragédia quando apropriado e usando (mesmo ajudando à inventar) formas genéricas como as peças de história Inglesas e a tragicomédia que desafiam às limitações neo-Aristotélicas do gênero dramático da comédia e da tragédia. Suas tragédias às vezes emprestam-se à ideia de Aristóteles de hamartia do herói trágico, mas às vezes não o fazem. Apesar de não ser o que chamaríamos de um escritor satírico, Shakespeare certamente conhecia como usar a sátira, e ele dá ouvido respeitoso às defesas Horacianas dela. Sobretudo, ele é um pragmatista justo, colocando as ideias rivais sobre a arte em debate uma contra a outra. Essas são, talvez, algumas das ideias sobre arte com as quais Shakespeare conscientemente armou a si mesmo conforme ele se preparava para enfrentar os temas céticos que irão emergir com crescente força na segunda metade da sua carreira de escritor.

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Tradução do Quarto Capítulo de: As Ideias de Shakespeare, Mais Coisas entre Céu e a Terra, David Bevington, 2008.

4

Apresentar um Espelho à Natureza

As Ideias de Shakespeare sobre Escrita e Atuação

            Um conjunto de ideias que Shakespeare precisava considerar, conforme aventurava-se com crescente audácia nos temas filosóficos do ceticismo e da dúvida, tem a ver com a natureza da poesia e do drama. Quais são os propósitos artísticos e morais da poesia e do drama, e como o poeta e o dramaturgo seguem suas funções de fornecedores da sabedoria moral? As declarações de Shakespeare acerca de seu ofício como escritor, ambos implícito e explícito, toma como dado que a poesia e o drama servem como importantes guias da conduta humana. Nessa hipótese, Shakespeare segue a linha dos teóricos antigos e da Renascença, de Aristóteles e Horácio a Philip Sidney e Ben Jonson. A ideia está no coração da Defesa da Poesia (1595) de Sidney: a poesia ultrapassa ambas a história e a filosofia, na visão de Sidney, pois ela ilumina poderosamente grandes verdades com apimentados exemplos, assim evitando à incapacitante particularidade da história por um lado e às insossas abstrações da filosofia por outro.

            Para Shakespeare, o poder da arte é justamente tão importante para o dramaturgo e ator quanto o é para o poeta. O que significa dizer que a atuação é uma imitação da natureza? Por que a imitação desse tipo é tão importante para nós que pode afetar a vida das pessoas, para melhor ou pior? Quais estilos de atuação podem melhor alcançar à função do teatro de oferecer um espelho à natureza? Essas coisas parecem importar sobremaneira a Shakespeare, e particularmente quando ele escreve seus Sonetos e Hamlet (cerca de 1599-1601). Noções implícitas sobre a natureza da arte dramática são encontradas ao longo de todo o cânon, é claro, mas verbalizações explícitas estão especialmente em evidência por volta da virada do século. Os Sonetos são difíceis de serem datados individualmente, mas alguns sonetos chaves são plausivelmente do final dos anos 1590 ou início dos 1600, e então também podemos assumir que Shakespeare esteve pensando sobre sua arte por algum tempo. É como se Shakespeare avaliasse cuidadosamente seu método artístico conforme ele deixa de escrever comédias românticas e peças de história Inglesa para peças de gênero mais problemático, como Tróilo e Créssida (1601) e as grandes tragédias. De qualquer forma, esse parece um momento adequado para nós olharmos para a visão de Shakespeare de seu próprio ofício.

            Apesar de Shakespeare nunca ter escrito um ensaio literário ou um prefácio para uma peça ou poema expressando suas visões sobre o que significa ser poeta e dramaturgo, e mesmo que nós não tenhamos nenhuma correspondência preservada sua ou arquivos de conversas literárias, podemos intuir muito das passagens em seus poemas e peças onde os tópicos da escrita e atuação aparecem. Como sempre, temos que ser cuidadosos em não atribuir a Shakespeare os pensamentos de seus personagens, mas podemos identificar posições que são colocadas em debate. Então, também, certos temas sobressaem de forma a sugerirem que eles são de alguma importância para seu autor.

            Os Sonetos parecem profundamente interessados no fenômeno da fama alcançada pela escrita, e fama alcançada através de ser descrito por outrem. Essas são ideias comuns, que se voltam para o mundo clássico, então não se deve colocar muita ênfase na individualidade da visão, mas elas insistentemente se apresentam entre os temas centrais dos Sonetos. Um exemplo bem conhecido é o do Soneto 55:

Nem o mármore nem os dourados monumentos

De príncipes, devem sobreviver a esse poderoso verso

Mas você brilhará mais forte nesses conteúdos

Do que a não cuidada rocha empoeirada pelo lascivo tempo.

A melhor proteção contra a devastação do tempo, esquecimento, e a guerra, o poeta segue para nos assegurar, é a lembrança literária: “seu louvor deve ainda encontrar espaço / Mesmo nos olhos de toda posteridade / Que desgastará esse mundo até à danação final”. “Seu” aqui pode significar o jovem cavalheiro a quem os Sonetos são endereçados geralmente, e nós como leitores.

            Vários dispositivos desse soneto são notáveis. O poeta louva os méritos da poesia sobre monumentos de rocha, que podem parecer duráveis mas são de fato sujeitos à decomposição e abandono. Um problema com os monumentos de mármore é que eles são brevemente esquecidos, “empoeirado pelo lascivo tempo”, “não cuidado”, ou eles serão anulados e destruídos. A poesia, por outro lado, durará não somente por séculos mas para sempre. A guerra é emblemática dos processos os quais o declinante Tempo irá inevitavelmente “queimar / O registro vivo da sua memória” ao menos que ela seja redimida pela poesia. O poeta enfatiza repetidamente às vantagens da poesia para a pessoa assim celebrada: essa pessoa irá “viver nisso” até “o julgamento que te faz levantar”, isto é, até o dia do Juízo Final no fim do próprio tempo. Simultaneamente, o soneto implica que a poesia também irá imortalizar o autor. O soneto é reflexivo sobre si mesmo: conforme o lemos, lembramos das palavras de William Shakespeare e vemos nesse soneto uma demonstração de como, de fato, a poesia pode alcançar um tipo especial de imortalidade para quem o produz. O criador de sonetos está também implicitamente orgulhoso de um coleguismo entre poetas e amantes da poesia que podem desprezar “os dourados monumentos / de Príncipes”. As realizações de homens orgulhosos e poderosos (como Alexandre, ou Júlio César) inevitavelmente decaem, como também todas as coisas desse mundo ordinário. A poesia é de uma ordem maior. Ela compartilha com a religião a verdade eterna que pode rir com gentil desdém do mero mundano.

            A poesia é uma defesa contra o envelhecimento, não num sentido de retardar o processo biológico, mas de ensinar-nos a colocar nossa confiança nos valores eternos do verdadeiro amor e amizade. Guardar-se contra o tempo que se aproxima com rapidez quando o caro amigo do poeta será, como o próprio poeta, “Com a mão injuriosa do Tempo esmagado e esgotado” e sua face cheia “Com linhas e rugas”, o poeta fortifica-se a si mesmo com a convicção que o Tempo “nunca cortará a memória / A beleza de meu doce amor”: “Sua beleza deve ser vista nestas brancas linhas, / E elas devem viver, tanto quanto ele nelas permanecerá verde” (Soneto 63). A poesia pode eternizar a beleza do tipo que não pode fenecer. Novamente, no Soneto 65, a resposta para o apavorante desafio posto pela “triste mortalidade”, contra a qual “o latão, nem a rocha, nem a terra, nem o mar ilimitado” podem resistir por muito, é a poesia, e a poesia somente. Nada pode impedir o “ligeiro passo” do tempo, “ao menos que esse milagre tenha poder, / Que em tinta preta meu amor possa permanecer brilhante”. A ênfase na “tinta preta” em ambos os sonetos mostra a importância do tema paradoxalmente: a poesia é imortal, e ainda assim é criada por um mero mortal que escreve com uma substância fluida que parece quase uma sujeira. O ato físico de escrever, e o papel na qual as palavras aparecem, são efêmeros, mas as ideias e imagens contidas nessas palavras não o são.

            Por toda a característica modéstia do poeta-falante sobre sua própria habilidade como poeta, ele não se envergonha perante o poder da poesia ela mesma e sua habilidade de conceder fama através da escrita. “Seu nome a partir de agora, vida imortal deve ter”, ele assegura a seu amigo, “Embora eu, uma vez que parta, todo o mundo deve morrer.” “Você ainda viverá – tal virtude tem minha pena – / Onde a respiração mais respira, mesmo nas bocas dos homens” (Soneto 81). Quando o poeta sente que seu gênio está declinando ou que ele está gastando seus esforços em “alguma música inútil”, ele implora à Musa para vir em sua assistência para o propósito maior de comemorar o amigo. O poeta fala a sua Musa como se ele, o poeta, fosse apenas um instrumento o qual à humilde pena é ensinada ambos “aptidão e argumentos” pelo poder e a “fúria” da inspiração. Somente à Musa, então, pode fazer o que a poesia deve fazer: “Dar a meu amor a fama, mais rápido que o Tempo desgasta à vida; / Então tu prevenirás sua foice e a desonesta faca” (Soneto 100).

            O poeta-falante dos Sonetos é sensível às complexas relações entre arte e mero artifício. Como Sir Philip Sidney, em sua sequência de sonetos chamada Astrophel and Stella, o falante dos sonetos de Shakespeare recusa insistentemente em seguir as fracas convenções da prática de sonetos – as quais, por volta de 1590, atraíam muitos seguidores e imitadores. “Os olhos de minha amante não se parecem com o sol”, ele proclama, aludindo ao modo na qual muitos sonetos reiteram aquela comparação clichê. “O coral é muito mais vermelho do que o vermelho dos lábios dela.” Os seios dela não são brancos como a neve, o cabelo dela é crespo e negro, as bochechas não relembram rosas de damasco, a respiração dela não é perfumada, o discurso dela não é música, e a maneira dela de andar é mais mundana do que divina. Shakespeare está aqui satirizando não somente o desfile de imagens inertes e previsíveis, mas também às convenções do soneto em ostentar, ou catalogar os charmes de uma dama, expressos como se eles fossem insígnias heráldicas. “E ainda, pelos céus, penso que meu amor é tão raro / Quanto qualquer dama desmentida com falsas comparações”, ele conclui (Soneto 130). A poesia deve evitar clichês porque eles degradam o tema, substituindo o vulgar e esperado por imagens que são frescas e persuasivas.

            O conselho aqui é próximo àquele de Rosalinda, em Como Gostais, quando ela aconselha Orlando a abster-se das fórmulas vazias no cortejo, como por exemplo dizer que ele morrerá por amor se sua paixão não for retribuída. “Não, por fé, morra por procuração”, ela o aconselha. “O pobre mundo tem quase seis mil anos, e em todo esse tempo não houve qualquer homem que morreu, nomeadamente, por amor.” O exemplo dela inclui Tróilo, que “fez o que podia para morrer” de amor sem ter sucesso nessa empreitada, apesar de ele ser “um dos padrões do amor”, e Leandro, que morreu não por que estava doente de amor (como os “tolos cronistas daquela época” continuavam insistindo) mas porque teve câimbra enquanto nadava o Dardanelos para alcançar sua amada Hero de Sestos. “Essas são todas mentiras”, Rosalinda conclui (4.1.89-102). Orlando seria bem aconselhado em evitar o antiquado voto de amar “Sempre e um dia”. “Diga “um dia,”” sem o “sempre”, Rosalinda insiste (138-9). O amor necessita ser realístico em suas expectativas; assim também a poesia de amor. Julieta está com a mesma mente em Romeu e Julieta quando ela pede a Romeu não jurar “pela lua, a inconstante lua, / Que mensalmente altera-se em sua órbita circular, / Para que teu amor não se prove igualmente variável” (2.2.109-11). Como no Soneto 130, a ideia aponta para a necessidade de franqueza em ambos os relacionamentos humanos e na arte. Ao mesmo tempo, estamos constantemente conscientes, conforme lemos esse soneto ou qualquer outro, de como são estudadamente artificiais as convenções da escrita de sonetos, com suas formas de estrofes altamente estruturadas e o padrão de rima. A escrita precisa aprender a criar uma aura de genuinidade através do uso criativo da convenção poética.

            Às vezes, o poeta-falante dos Sonetos é capaz de uma dolorosa auto-degradação em sua arte, ou ao menos em sua profissão. O Soneto 111 começa como se segue:

                        Ó, por mim, desprezas à Sorte,

A deusa culpada de meus malfeitos,

Que nada melhor proveu para minha vida

Do que meios públicos que procria maneiras públicas.

Então sobrevém que meu nome receba uma marca,

E quase de imediato minha natureza se subjuga

Ao que é objeto do trabalho, como à mão do tintureiro.

Se isso é ao menos em parte autobiográfico, ele parece sugerir que o poeta-falante lamenta às circunstâncias que o deixaram com pouca escolha além de colocar a si mesmo às vistas do público de uma forma que cria “maneiras públicas” em si mesmo e incorre em desgraça por algo vergonhoso e sujo, como o tintureiro o qual as mãos estão manchadas pela tinta que manipula. Isso pode referir-se à atuação, que é necessariamente pública, e que carrega com ela (naquela época e hoje) uma reputação de uma vida boêmia. Atuar, nessa visão, é algo aventureiro e descarado. O ator inspira sua plateia com sua habilidade na representação, enquanto que, ao mesmo tempo, faz uma exposição de si mesmo. Essas dolorosas contradições aplicam-se ao dramaturgo também? A própria natureza do escritor está em perigo de ser diminuída pelo meio no qual ele trabalha, nomeadamente, a linguagem da poesia e o mundo do teatro comercial? Quando o poeta-falante reclama a seu amigo, “Nossa, isso é verdade, fui de um lado para o outro / E fiz de mim mesmo uma mixórdia para o público” (Soneto 110), ele soa novamente a nota de auto-degradação ou mesmo de auto-abominação por uma profissão na qual o falante tem “Ferido meus próprios pensamentos, vendendo barato o que é mais querido”.

            Ainda em outro lugar Shakespeare soa como se considerasse a atuação e a escrita de peças como as profissões mais nobres, e as mais capazes de oferecer a um mundo carente de perspectivas artísticas. Em nenhum lugar essa admiração é mais eloquentemente expressada que no conselho de Hamlet aos atores que visitaram Elsinore e que estão prestes à encenar às ordens de Hamlet. Evitar à atuação forçada, ele os adverte: “não ultrapassar a modéstia da natureza, porque o exagero é contrário aos propósitos da representação, cuja finalidade sempre foi, e continuará sendo, como que apresentar o espelho à natureza, mostrar à virtude suas próprias feições, à ignomínia sua imagem a ao corpo e idade do tempo a impressão de sua forma.” (Hamlet, 3.2.19-24). Esses são objetivos morais elevados. O próprio propósito da mimésis, Hamlet parece argumentar, é instruir através da ilustração e do exemplo. O espelho da arte nos mostra o que somos: ele nos previne dos modelos negativos e encoraja à conduta virtuosa. Atores são “as crônicas abstratas e breves do tempo” (2.2.524). Essa não é uma visão redutiva ou utilitária da arte, porque a arte necessita ser eloquente e bela para inspirar o comportamento correto, mas essa visão parece desconcertada pela proposição que, em seu melhor, a arte tem uma função didática.

            De fato, isso prova-se no presente exemplo. O propósito de Hamlet ao adicioná-lo em “O Assassinato de Gonzago” é de testar a consciência do Rei Claudio ao mostrá-lo uma representação do ato homicida que Hamlet acredita que Claudio cometeu. Ele ouviu “Aquela culpada criatura sentada perante uma peça / Sendo pela própria esperteza da cena / tão golpeado na alma que brevemente / Eles proclamaram suas malfeitorias” (2.2.590-3). Claudio responde como o esperado. Quando a performance de “O Assassinato de Gonzago” alcança o ponto crítico na qual o sobrinho do Rei, Luciano, está quase para aplicar veneno nos ouvidos de seu dormente tio, Cláudio não pode mais sustentar. Ele levanta-se e faz uma saída impetuosa, para a consternação de todos os presentes menos Horácio e Hamlet. Este, tendo preparado essa “peça ratoeira”, está agora pronto para “tomar à palavra do fantasma por mil quilos” (3.2.235, 258-85). Hamlet testou e verificou a verdade sobre o que o fantasma de seu pai disse sobre o assassinato do velho Hamlet pelo seu irmão. A sequência também confirmou em ação a teoria de Hamlet sobre a eficácia da arte dramática em despertar à consciência. “O Assassinato de Gonzago” mostra precisamente o que Hamlet queria dizer por apresentar “o espelho à natureza”. A ideia é profundamente idealística na sua visão da escrita: assim como a arte pode eternizar a fama, ela também pode mudar nossos corações e ajudar-nos a combater nossas próprias naturezas pecaminosas.

            Esse alto propósito moral explica por que, na visão de Hamlet, a atuação deve “adquirir e gerar uma temperança que lhe dará sutileza”. Hamlet prossegue por um tempo em sua insistência que os atores não devem “bocejar” seus discursos como se eles fossem os pregoeiros da cidade, ou ver o ar com suas mãos, ou “rasgar uma paixão aos farrapos, aos trapos, dividindo os ouvidos da plateia, que na maior parte não é capaz de nada exceto inexplicáveis shows de ignorância e barulho”. Eles precisam tomar cuidado para não exceder Herodes pelo discurso, ou fazer piadas inoportunas para que os “incompetentes riam” – uma falta que “não pode causar senão desgosto ao criterioso, e a censura deste deve constituir na vossa estima mais do que um teatro lotado pelos outros” (3.2.1-28). Especialmente os bobos devem evitar à tentação de improvisar alguma matéria frívola e então rir de sua própria tirada “a fim de fazer rir também certo tipo de néscios espectadores, conquanto nesse ínterim algum ponto importante da peça devesse ser valorizado” (39-43). A boa atuação tem como alvo a representação, o que alguém vê num espelho real, sem distorção. A reforma do estilo de atuação (36-8) é necessária para evitar os abusos da atuação incompetente, que são geralmente, um resultado combinado de mal gosto da parte de alguns espectadores, e a disposição da parte de muitos atores em prover para um apetite de paixões triviais e “turbulentas”.

            A visão elevada de Hamlet da arte dramática, então, caminha lado a lado com uma visão intelectualmente aristocrática de que constitui um espectador adequadamente educado. Shakespeare ousa a conceder a Hamlet que se refira aos seus espectadores como “groundlings” – um termo empregado primeiramente por Shakespeare nesse sentido (e ainda em uso hoje) que descreve àqueles que estão no “pátio” de três lados do palco público do teatro Elisabetano. Muitos desses que ouviram o discurso de Hamlet na produção original em algum momento por volta de 1600 devem ter sido groundlings eles próprios, pelo menos no sentido prático. Hamlet está insultando-os? Mais provavelmente, ele está apelando para os melhores instintos críticos destes mandando-os juntar-se ao grupo seleto daqueles que têm uma compreensão madura do que o drama deve sobretudo ser. Em todos os eventos, ele apela ao drama como arte elevada. O drama deve “Adequar à ação à palavra, a palavra à ação” (3.2.17-18). Esse conselho aplica-se ao dramaturgo, assim como aos atores os quais Hamlet está endereçando.

            De uma maneira similarmente esotérica, Hamlet descreve aos atores um discurso dramático que ele ouviu uma vez. Ele nunca foi encenado, “ou se foi, não mais que uma vez, eu me lembro, não agradou a milhões; era caviar ao público” – isto é, era um prato escolhido, muito elegante para os gostos plebeus vulgares (2.2.434-7). Novamente, Hamlet está confrontando seus espectadores que ficam próximos ao palco, ou ele os pede para medirem e elevarem seus próprios gostos na literatura dramática por esse alto padrão? Em qualquer caso, a peça foi, na própria visão de Hamlet e na visão de outros “os quais os julgamentos nessas matérias gritam sobre o meu”, uma excelente peça, “bem digerida nas cenas, realizada com tanta modéstia quanto sagacidade”, e com “nenhuma salada nas linhas para deixar o assunto temperado” ou alguma “matéria na frase que podia denunciar o autor da afetação” (437-43). Hamlet parece ter a intenção de enaltecer uma obra que era muito sofisticada para os espectadores ordinários; seu elogio é direcionado para os poucos escolhidos os quais os gostos impecáveis os autoriza a serem juízes do mérito literário. A peça que Hamlet relembra era tão intelectual, de fato, que ela falhou no palco se um dia foi montada – uma descrição que estranhamente adequa-se à história de Tróilo e Créssida de Shakespeare, com sua sinopse de publicação em 1609 fazendo propaganda da obra como “nunca obsoleta com o palco, nunca aplaudida pelas garras e palmas dos vulgares, e ainda passando totalmente pelas palmas cômicas” (mesmo que outra versão da peça, na página-título do quarto de 1609, declare que ela foi “atuada pelos Servos da Majestade do Rei no Globe”) Por que essa insistência no refinamento intelectual às custas do entretenimento teatral popular? O relato que Hamlet acaba de receber de Rosencrantz e Guildenstern, sobre uma guerra de poetas na qual as companhias de atuação de adultos estão perdendo espaço para companhias de meninos atores, aparentemente com referência à cena teatral de Londres por volta de 1600-1, e aparecendo apenas no texto do Fólio de Hamlet (2.2.338-62), adiciona à sensibilidade de Hamlet que o teatro tem uma séria obrigação de manter o maior padrão possível de excelência artística.

            A amostra de Hamlet de alta arte dramática está no assassinato do Rei Príamo de Troia pelo Grego Pyrrhus (ou Neoptolemus), filho de Aquiles, e o grito apaixonado da Rainha Hécuba “Quando ela vê Pyrrhus fazer o esporte malicioso / De picar com sua espada os membros de seu marido” (2.2.450-518). A passagem é deliberadamente clássica, sendo derivada no principal da descrição de Virgílio da queima de Troia na Eneida, Livro II. Ela pode também fazer uma amarga homenagem à Dido, Rainha de Cartago, uma peça escrita por Christopher Marlowe em colaboração com Thomas Nashe em algum momento antes da morte de Marlowe em 1593. A peça evoca nostalgia por um mundo passado de tragédia clássica, em sua dramatização de um mito sempre recontado, sua dicção poética e o verso branco cuidadosamente controlado, suas longas frases que relembram Sêneca e as sentenciosas moralizações, seus focos em momentos de intensa paixão trágica, seus pronunciamentos estoicos sobre a Fortuna, e seu reconhecimento da presença dos deuses. Seu recital na ocasião presente desagrada Polônio como “muito longa”, assim dando a Hamlet uma outra oportunidade de expressar sua preferência por auditores com um gosto educado; como ele diz sobre Polônio aos atores, “Ele é para uma dança, ou uma fábula obscena, senão dorme” (2.2.498-501). O estilo arcaico usado para descrever o triste destino de Príamo e Hécuba não é o idioma usual de Shakespeare, de fato, mas ele habilidosamente serve um propósito dramático de definir o gosto de Hamlet como qualquer coisa exceto inculto.

            Podemos ouvir a própria voz de Shakespeare escondendo-se por detrás de Hamlet? O compromisso vivaz de reforma do teatro, o sólido conselho sobre adequar à ação à palavra, etc., soam tão irrepreensíveis e consideravelmente verdadeiros que nós somos tentados a ver Hamlet como um tipo de porta-voz do autor. O apelo para audiências sofisticadas é talvez consistente com os objetivos da companhia de atuação de Shakespeare, cujos valorosos convites para atuar na corte, e que conforme passava-se a primeira década do século dezessete escolhia cada vez mais atuar indoor, no Teatro Blackfriars, perante audiências cortesãs e sofisticadas. Ao mesmo tempo, parte do gênio de Shakespeare era, e é, que ele sabia como agradar dos reis aos bobos. O discurso em Hamlet sobre os propósitos e estilos artísticos da arte dramática deve, talvez, ser considerado na luz do debate na qual Hamlet é um falante particularmente eloquente.

            Geralmente, Shakespeare teve a reputação, em seus próprios dias e nas gerações futuras, de ser um escritor de viés mais popular e romântico, do que o estilo preferido pelos neoclassicistas na Inglaterra e no Continente, especialmente em França e Itália. Apesar de Shakespeare não expor suas próprias preferências em muitas palavras, sua prática literária confirma à impressão geral. Ele não mostra consistente consideração pelas chamadas unidades de tempo, lugar e ação, que eram partes tão essenciais da tradição crítica neo-Aristotélica. A Comédia dos Erros (cerca de 1589-94), certamente, segue uma estrutura de cinco atos como aquela de sua principal fonte, o Menaechmi de Plauto, ou Gêmeos. Sua ação ocorre principalmente dentro ou perto da casa de Antífolo de Éfeso, assim como numa rua e um monastério próximo. Os Cortesãos habitam na vizinhança. Uma entrada “da baía” (4.1.84) e saída “para o monastério” e “para a Abadessa” (5.1.37,282) reforçam à impressão da localização de uma rua simples na cidade de Éfeso. A última ação dura somente um dia; o enredo é simples. Shakespeare evidentemente foi um aprendiz da tradição clássica nesta peça primitiva. Ele certamente sabia o que eram as unidades. Ele seguiu-as bem na A Tempestade, o coroamento de sua carreira com um dramaturgo em 1611 ou perto disso. Sua ação é limitada à ilha e a algo menos do que os “dois dias” os quais Próspero promete libertar Ariel (1.2.301-2, 424-5); aparentemente, a história inteira desdobra-se em aproximadamente “três horas” (5.1.136, 188, e 225; veja também 1.2.241 e 5.1.4-5). A história do que se deu por volta de “doze anos” atrás em Milão (1.2.53), quando Miranda era um bebê, é contada em estilo neoclássico adequado para um flashback. De fato, A Tempestade usa enredos múltiplos, especialmente em seu ridiculamente cômico subenredo da conspiração de Calibã, Stéfano e Trínculo, mas o todo continua graciosamente unificado.

Por outro lado, Antônio e Cleópatra (1606-7) move-se por todo o Mediterrâneo médio e oriental, de Roma ao Egito e novamente de volta, assim como para Medina na Sicília (2.1), Misenium, perto de Nápoles, no sul da Itália (2.6), um local no Oriente Médio perto do nordeste do Irã dos tempos modernos (3.1), Atenas (3.4) e Actium, no noroeste da costa da Grécia (3.7-10). Nem todas essas localidades são nomeadas especificamente na peça, mas os grandes movimentos geográficos são essenciais à história. A passagem do tempo, apesar de não registrado em datas específicas, estende-se do encontro de Antônio e Cleópatra no Rio Cydnus no sudeste da moderna Turquia, em 41 a.C, até a derrota deles na batalha de Actium, em 31 a.C, e a morte de ambos no Egito no próximo ano. A peça é composta por quarenta e três cenas separadas, se por “cenas” queremos dizer de sequências de ação marcadas por um palco sem elementos cênicos. Algumas, durante à batalha de Actium, são breves. Algumas das peças históricas de Shakespeare não são menos épicas em suas reviravoltas cronológicas. As três peças sobre Henrique VI estendem-se cumulativamente da morte de Henrique V em 1422 àquela de Henrique VI em 1471, e move-se por toda Inglaterra e França; somente em 1 Henrique VI, a ação ocorre em Orleans, Auvergne, Rouen, Paris, Bordeaux, Angiers e Anjou, assim como em Londres e Westminster. A multiplicidade da ação é uma marca registrada das peças históricas.

Mesmo nas tragédias organizadas mais concisamente, tempo e localidade não obedecem às restrições neoclássicas. O enredo de Hamlet deve dar tempo para Hamlet ser posto num navio rumo à Inglaterra, evadir seus acompanhantes ao embarcar num navio pirata durante a luta do ataque dos piratas, e fazer seu caminho de volta à corte Dinamarquesa depois de ter trocado às instruções do pacote diplomático de Rosencrantz e Guildenstern, que seguem seu caminho à Inglaterra (4.6.15-29, 5.2.12-25). Otelo muda a localização de Veneza, no ato 1, para Cyprus até o final da ação – uma impropriedade dramática de acordo com a prática neoclássica que Giuseppe Verdi resolveu em seu Otello (1887) ao começar sua ópera em Cyprus, muito como John Dryden tornou clássica sua versão de Antônio e Cleópatra, entitulada Tudo por Amor (1678), ao localizar a peça inteira no Egito e contando toda a história anterior através das recordações dos personagens. Rei Lear move-se da corte Inglesa para à Escócia (Albany) e então para Gloucestershire e Dover, num período de alguns meses pelo menos e com o emprego (raro na tragédia) de um enredo duplo. A ação de Macbeth deve dar tempo, seguindo o assassinato de Duncan, para a desafeição crescer perante o cada vez mais tirânico reinado de Macbeth e para um exército de resistência organizar-se com suporte Inglês.

Um motivo geográfico comum das comédias românticas é uma jornada, usualmente de alguma civilização central para um mundo silvestre ou mágico, onde estranhas transformações podem ocorrer. Os jovens amantes de Sonho de uma Noite de Verão escapam da dura lei Ateniense para a floresta ou bosques, onde permanecem fascinados pela mágica das fadas até à ação final na corte do Duque Teseu. Os Dois Cavalheiros de Verona oscila entre Verona, Milão e uma floresta em Mântua repleta de salteadores. Rosalinda e Célia, em Como Gostais, escolhem o banimento da corte hostil do Duque Frederick a uma mais amigável Floresta de Arden, que pode ser localizada em França (Ardenne), ou em Warwickshire, ou em um mundo da imaginação do artista. Bassânio, em O Mercador de Veneza, viaja do mundo legalista de Veneza para Belmont, que o próprio nome indica uma beleza quieta e um retiro do mundo Veneziano do conflito comercial. Essas são jornadas para o que Northrop Frye rotulou como o “mundo verde” da comédia romântica shakespeariana. As relocações geográficas trazem consigo uma perspectiva visionária do mundo das fadas, pastores, goblins e até mesmo monstros. Os últimos romances de Shakespeare retornam enfaticamente ao motivo da jornada imaginativa: Péricles perambula por todo o Mediterrâneo, Cimbelino viaja da Inglaterra para Roma e ao montanhoso Gales e O Conto do Inverno move-se da Sicília ao fantasioso mundo pastoral da Boêmia. Mesmo A Tempestade, apesar de localizada por toda a ilha, encarna essa mesma jornada numa narrativa que justapõe o sombrio mundo político de Milão e Nápoles com uma ilha desabitada existente apenas na imaginação do artista nessa peça.

Uma forma de ganhar uma perspectiva na jovial desconsideração de Shakespeare pelas unidades clássicas é compará-lo com Ben Jonson, e com o que Jonson falou sobre Shakespeare. Apesar de Shakespeare não falar nada para os arquivos, Jonson raramente é silencioso perante Shakespeare. Podemos reconstruir uma conversa entre esses dois homens à partir das várias notas de Jonson e das não expressas mas implicadas persuasões literárias de Shakespeare, como vistas em suas obras? Jonson era o mais novo dos dois, nascido em 1572, oito anos depois de Shakespeare. Jonson sobreviveu a Shakespeare vinte e dois anos, morrendo em 1637. Jonson assim tem uma ampla oportunidade de refletir sobre as realizações de Shakespeare como um dramaturgo e poeta. Ademais, Jonson clamou para si o papel de principal crítico literário e erudito da Inglaterra. Suas conversas com William Drummond of Hawthornden em 1618 são apimentadas com pronunciamentos sobre escritores da Inglaterra, incluindo Sir Philip Sidney, Edmund Spenser, Samuel Daniel, Michael Drayton, John Donne e Shakespeare. Nos materiais introdutórios a suas próprias peças e em outros escritos, Jonson enunciou uma abrangente teoria neoclássica para julgar às realizações literárias de sua geração. Ele próprio era instruído em Latim e apenas numa extensão menor em Grego.

O mais generoso elogio de Jonson a Shakespeare como um escritor está em seu tributo “À memória de meu querido, o autor, Mr. William Shakespeare, e o que ele nos deixou”, publicado na primeira edição completa das peças de Shakespeare, o chamado Primeiro Fólio, em 1623. Jonson livremente confessa que os escritos de Shakespeare “são tais / Que nenhum homem ou musa pode elogiar muito”. Shakespeare é a “alma da época”, “O aplauso, deleite, a maravilha de nosso palco”. Jonson não irá alojar Shakespeare mesmo entre os maiores poetas da Inglaterra, nomeadamente Chaucer, Spenser e Francis Beaumont; Shakespeare está só numa categoria. Ele é “um monumento sem uma tumba”, isto é, não precisando de nenhum monumento funeral para garantir sua imortalidade, pois sua grandeza irá resistir “enquanto seu livro viver / E nós tivermos argúcia para ler e elogios para dar”. Em seus escritos Shakespeare de longe supera John Lyly ou o “esportivo Kyd” ou “a poderosa linha de Marlowe”. Para aumentar o padrão de comparação ainda mais, Jonson compara Shakespeare favoravelmente, como um escritor de tragédia, com os tragediógrafos gregos Ésquilo, Eurípides e Sófocles, e também com os romanos Marcus Pacuvius (cerca de 220-130 a.C), Lucius Accius (170-cerca de 86 a.C, um mais jovem contemporâneo de Pacuvius) e “ele morto de Cordova”, isto é, Sêneca, o Jovem (cerca de 4 a.C à 65 d.C), o mais conhecido dos dramaturgos Latinos trágicos na Renascença Inglesa. Para a comédia, Jonson tem um elogio ainda maior; Shakespeare não tem paralelos. “Deixe tu sozinho, na comparação / De tudo o que a insolente Grécia ou a arrogante Roma / Produziu, ou desde que das cinzas delas vem.” Mesmo o melhor dos escritores cômicos antigos, o Grego Aristófanes e os Romanos Terêncio e Plauto, não agradam mais plateias, mas estão “antiquados e abandonados” depois do fenomenal sucesso de Shakespeare. O Shakespeare de Jonson é assim “não de uma época, mas para todo o tempo”, o “Doce Cisne de Avon” que será exaltado como uma constelação celeste, brilhando como a “estrela dos poetas”, brilhando “influência” para “repreender ou encorajar o exausto palco”.

Por todo esse fervor no elogio, e sua nota de hipérbole que é apropriada a um poema comemorando alguém que está agora morto e definitivamente publicado, essa apreciação por Jonson está escrita de um ponto de vista neoclássico e, às vezes, crítico. Jonson ele mesmo está extraordinariamente presente no poema como um ditador literário. Ele aceita como sua a tarefa de julgar Shakespeare no rol dos grandes escritores da antiguidade e do presente. O cânon é intelectual e clássico. Implicitamente, Jonson parece maravilhar-se com o fenômeno de um escritor de Stratford-upon-Avon, o “Cisne de Avon”, que não apenas despontou entre a classe dos imortais mas os superou a todos, pelo menos na comédia. A observação é, ao mesmo tempo, uma marca de orgulho nas realizações da Inglaterra ao rivalizar os antigos (Triunfo, minha Bretanha, você tem um para mostrar / O qual todas as cenas da Europa mostrarão homenagem”) e um reconhecimento que a Inglaterra tem tido um caminho árduo para alcançar seus competidores. Jonson exibe sua própria cultura ao citar antigos dramaturgos que somente os eruditos conheceriam alguma coisa. Mesmo os escritores trágicos Gregos eram pouco conhecidos ou traduzidos na Inglaterra da Renascença, e Shakespeare quase certamente não os leu. Nem ele se refere a Pacuvius ou Accius. Mesmo o mais conhecido Sêneca pode ter alcançado a ele principalmente através das peças de Thomas Kyd e outros dramaturgos do palco popular; a única menção a Sêneca em toda a obra de Shakespeare é encontrada na expressão tola de Polônio que “Sêneca não poderia ser tão pesado, nem Plauto tão leve” (Hamlet, 2.2.400-1). As duas referências de Shakespeare a Aristóteles referem-se a escritos sobre ética e filosofia moral (A Megera Domada, 1.1.32, e Tróilo e Créssida, 2.2.166-7); nenhuma evidência aponta que ele tenha lido à Poética.

O poema comemorativo de Jonson é, assim, dirigido por um homem de imensa erudição para um que foi de algum modo autodidata, sem treinamento clássico. Jonson não consegue conter-se de observar que Shakespeare tinha um “pequeno Latim e menos Grego”; esse fato torna suas realizações como poeta e dramaturgo ainda mais surpreendentes. A observação também chama a atenção ao fato que Jonson ele próprio tinha em abundância o Latim e o Grego. Mesmo a concessão de Jonson que Shakespeare não era um mero filho da Natureza, ressalta o ponto que Shakespeare teve que aprender seu ofício pela aplicação diligente, como todo bom escritor deve fazer: “ele / Que deseja escrever uma linha viva deve suar” com vistas a “atingir o segundo calor / Sobre a bigorna das Musas”. Jonson insiste que “um bom poeta é feito, assim como nasce”. Jonson era sensível à acusação que ele trabalhou tão diligentemente em seus escritos; por isso que o Prólogo de seu Volpone (1605-6) é rápido em observar “É sabido que em cinco semanas o escreveu / Com suas próprias mãos” (16-17). Shakespeare, contrariamente, tinha uma reputação do fluxo fácil de sua escrita (veja abaixo). Adequadamente, Jonson faz um esforço consciente no poema comemorativo do Fólio para reapresentar Shakespeare o máximo que pode como seu [Jonson] próprio modelo de verdadeiro poeta.

O poema de Jonson reconhece somente dois tipos de drama: tragédia e comédia. O ator trágico pisa o palco com sua “bota” (o “coturno”) ou uma bota de amarras alcançando o meio ou mais até o joelho, simbolizando a alta seriedade do drama que retira suas linhas de histórias das lendas míticas sobre os azares dos príncipes. O ator cômico usa a “meia”, um sapato baixo ou sandália simbolizando o baixo status da comédia e seu engajamento com o burlesco do dia a dia dos plebeus. (O gênero conhecido como a peça Sátira não ocupa lugar nessa classificação dual.) Historicamente, a distinção entre os dois gêneros de drama foi plenamente delineada no palco clássico antigo: comédias, com seus coros de talvez vinte e quatro membros e uma estrutura episódica característica, eram apresentadas em Atenas em festivais da grande Dionysia e à Lenaea, enquanto as tragédias empregavam um coro menor e uma estrutura de performance mais firmemente organizada, também para a grande Dionysia e à Lenaea, porém como eventos separados. Os prêmios iam para a melhor comédia e para a melhor tragédia. Essa codificação das categorias continuou nos escritos de Aristóteles e da tradição Aristotélica. Jonson mede e elogia as realizações de Shakespeare nesses termos duais. A divisão em dois gêneros era comum na Renascença. Francis Meres, em seu Palladis Tamia, 1598, elogia Shakespeare como segue: “Como Plauto e Sêneca são considerados os melhores da comédia e tragédia entre os Latinos, assim Shakespeare entre os Ingleses é o mais excelente em ambos os tipos para o palco.”

Mas esse sistema classificatório adequa-se ao cânon de Shakespeare? Na taxonomia de Meres, as peças sobre Henrique VI são listadas como tragédias, assim como Ricardo II, Ricardo III e Rei João. Há explicação para o caso dessas três últimas peças serem classificadas como tragédias, certamente: Ricardo II era chamada “A Tragédia do Rei Ricardo o segundo” em sua folha de rosto de 1597 e Ricardo III era similarmente intitulado quando foi pela primeira vez publicada no mesmo ano, apesar de também encontrarmos títulos no Fólio como: “A Vida e Morte de Ricardo o Segundo” e “A Vida e Morte de Rei João” que coloca mais ênfase na natureza inconclusiva da história. Ricardo II é sobre a queda de Ricardo, mas é também sobre a elevação de Henrique Bolingbroke, Rei Henrique IV. As peças sobre Henrique IV desafiam à classificação bipartida da tradição clássica ainda mais inquisitivamente. Em quarto elas eram conhecidas como “A História de Henrique o Quarto” e “A Segunda Parte de Henrique o Quarto” em 1598 e 1600; no Fólio de 1623 a primeira parte é chamada “A Primeira Parte de Rei Henrique o Quarto”. Hotspur claramente morre naquela peça, mas, ao todo, a história é uma de sucesso para Henrique IV e para seu filho, o futuro Henrique V. Mesmo Falstaff é bem-sucedido na conclusão de 1 Henrique IV, e a peça ela própria contém algumas das melhores escritas cômicas de Shakespeare.

O Fólio de 1623 está dividido em três grupos: não comédias e tragédias, mas comédias, histórias e tragédias. Dez peças de um total de trinta e seis pertencem a um grupo chamado histórias. Cumulativamente, elas dramatizam a história da Inglaterra durante o reinado de Rei João, no início do século treze, e então continuamente do reinado de Ricardo II no final do século catorze até o reinado de Henrique VIII e o nascimento da futura Rainha Elizabeth em 1533. O que é a peça histórica como um tipo de gênero? Em um sentido seu significado parece claro o suficiente no “Catálogo” do Fólio, ou no índice: essas dez peças são todas sobre história Inglesa. Rei João, o monarca menos conectado com os outros cronologicamente, presumivelmente capturou à atenção de Shakespeare por causa da ambiguidade da reivindicação de João ao trono Inglês e por causa de suas disputas com a igreja Católica; as outras nove peças contam à história da Inglaterra durante as guerras civis que eventualmente levaram ao estabelecimento da dinastia Tudor. Mas o que isso diz sobre gênero? O que é a peça histórica estruturalmente e formalmente? Por que Macbeth e Rei Lear não são classificadas como peças históricas? Ambas lidam com reis da história Britânica ou de história lendária. O que significa que algumas peças de história Inglesa possam ser classificadas como comédias e outras como tragédias?

A peça de história Inglesa, então, é uma anomalia em termos das definições clássicas de gêneros dramáticos. Ela também representa uma das maiores realizações de Shakespeare. Ele teve um importante papel ao inventar o gênero, apesar de conhecer e fazer uso de alguns poucos experimentos anteriores de outros artistas, incluindo o anônimo As Famosas Vitórias de Henrique V (1583-8) e O Turbulento Reinado de Rei João (cerca de 1587-91). Ele foi claramente o praticante principal na escrita de peças de história Inglesa ao longo dos anos 1590. Sua abordagem no que constitui uma peça de história Inglesa é inteiramente pragmática. Ele escreveu essas peças como sequências; a forma e o conteúdo desenvolveram-se conforme ele avançava. Quando ele começou a escrever sobre Henrique IV e seu filho, ele pode ter planejado uma peça única até à morte do pai; se assim o foi, ele mudou de ideia conforme a escrevia, descobrindo que ele tinha muito o que dizer sobre Falstaff e Hal, e assim temos a história de Henrique IV em duas partes. A tradição conta que ele tirou um tempo para escrever uma peça (As Alegres Comadres de Windsor) sobre Falstaff apaixonado, por ordem da Rainha Elizabeth; disso não podemos ter certeza, mas ela assevera à reputação que Shakespeare detinha como improvisador. Ele parece que não teve compulsão em observar os gêneros da tradição clássica, tanto quanto não sentiu-se constrangido pelas chamadas unidades de tempo, lugar e ação. Uma peça bem-sucedida para ele parece ter sido qualquer coisa que funcionasse no palco para uma plateia.

Quando Polônio anuncia a Hamlet que chegaram atores à Elsinore, ele os elogia pelos muitos gêneros os quais eles distinguem-se. Eles são, Polônio diz, “Os melhores atores do mundo, tanto para tragédia, comédia, história, pastoral, pastoral-cômica, histórico-pastoral, trágica-histórica, trágica-cômica-histórica-pastoral, cena indivisível ou poema ilimitado” (Hamlet, 2.2.396-400). Shakespeare está rindo de si mesmo? Notamos que a lista começa com “tragédia, comédia, história”, as três categorias que serão posteriormente empregadas na publicação do Fólio de 1623. Ambas “pastoral” e “pastoral-cômica” são termos que podem ser aplicados a Como Gostais ou O Conto de Inverno. “Trágica-histórica” adequadamente descreve peças como Júlio César e Antônio e Cleópatra que perfazem grandes tragédias da história. Se “cena indivisível” significa uma peça que observa à unidade de lugar, então A Comédia dos Erros e A Tempestade, entre outras, adequam-se à descrição. Se “poema ilimitado” refere-se às peças que desconsideram às unidades de tempo e lugar, os exemplos no cânon de Shakespeare são quase – bem – ilimitados. Polônio é um mau crítico literário para fiarmo-nos em comentários perspicazes, mas sua miscelânea de categorias dramáticas parece instrutiva quando pensamos sobre os tipos do drama shakespeariano.

O rótulo “comédia” cobre um grande número de bênçãos. A comédia romântica sobre jovens apaixonados e suas estranhas aventuras errantes é matéria prima para as peças que Shakespeare estava escrevendo nos anos 1590; mas então, por volta do tempo de Hamlet, encontramos uma configuração de peças tão visivelmente discrepantes das normas da comédia romântica, que os críticos procuraram novos rótulos. O nome que mais prevalece para essas novas formas de comédias hoje é “comédia problema” ou “peça problema”. Medida por Medida (1603-4) descreve-nos uma Viena tão desorientada na devassidão sexual que o Duque ausenta-se da cidade, deixando no comando um deputado, Ângelo, que logo descobre que sua própria lascívia furiosa por uma jovem mulher determinada em ingressar num convento (Isabella) é tão ingovernável que ele a ameaça com a execução de seu irmão Cláudio com uma acusação por fornicação ao menos que ela consinta em fazer sexo com o deputado. A aparente concordância dela toma forma ao substituí-la por uma mulher que Ângelo havia rompido alguns anos atrás. Esse “truque da cama” resolve o problema, mas a um custo de meios eticamente duvidosos. Várias cenas da peça passam-se na prisão. Entre os mais altivos personagens estão os alcoviteiros, as meretrizes e clientes do antro criminoso de Viena. Mesmo os casamentos no final são bizarros.

Assim é o caso também em Tudo Está Bem Quando Termina Bem (cerca de 1601-5). Essa peça apresenta um jovem aristocrata, Bertram, que, desdenhosamente relutante em obedecer à ordem do Rei para que se case com uma jovem mulher de uma classe social inferior (Helena), que salvou a vida do Rei, foge para as guerras na companhia de um interessante malandro chamado Parolles. Helena, como Isabella em Medida por Medida, é motivada pelo expediente eticamente duvidoso do truque da cama: quando Bertram persegue a filha de uma viúva durante sua campanha militar em Florença, Helena arranja com a viúva para tomar o lugar da filha (Diana) na noite do planejado acordo sexual secreto. Bertram aprende uma lição sobre a obrigação que os homens devem sentir ao reconhecerem às consequências de suas agressões sexuais, e tudo termina bem, como o título da peça promete, mas não sem ter levantado questões problemáticas sobre a falha humana. Como uma comédia a peça é incomum, pela atenção simpática que dá a figuras mais velhas como a mãe de Bertram e “um velho senhor” chamado Lafew, que repetidamente expressam seus desapontamentos com as pessoas jovens e especialmente com jovens homens. Essa não é uma comédia sobre os inebriantes prazeres e riscos do amor jovem.

Ambas Medida por Media e Bem Está estão incluídas entre as comédias no Fólio de 1623, desse modo expandindo nosso conhecimento do que Shakespeare poderia ter incluído sob aquele termo flexível. Tróilo e Créssida quebra o molde inteiramente. Seu local no Fólio de 1623 é inteiramente anômalo: ela está entre as histórias e as tragédias, quase inteiramente sem paginação, e não é listada no “Catálogo” ou índice. Evidentemente sua inclusão na impressão foi posterior, depois de uma tentativa abortada de imprimi-la depois de Romeu e Julieta, que a colocaria entre as tragédias. A peça é discutivelmente comédia ou história ou tragédia, ou todas as anteriores. É uma comédia sombria, no espírito de suas companheiras “peças problemas”, apresentando um par de amantes o qual o breve caso termina abruptamente por causa de uma guerra absurda entre Gregos e Troianos e pelas falhas dos próprios amantes. É uma peça histórica pois faz a crônica da mais famosa – e infame – guerra da história. É uma tragédia em sua dramatização das mortes de Pátroclo e especialmente Heitor. Sobretudo, talvez, é uma sátira. Suas vozes córicas, especialmente àquelas de Pândaro e Tersites, aponta-nos em tom malicioso como “a lascívia come-se a si mesma” (5.4.35). Como Tersites diz, como forma de sarcástica caracterização da guerra, “Todo o argumento é uma meretriz e um corno, uma boa disputa para atrair invejosas facções e sangrar até a morte” (2.3.71-3). Tróilo e Créssida parece não ter sido um sucesso no palco de seus próprios dias, o que é bem possível, pois foi percebida como muito vanguardista.

As últimas comédias de Shakespeare estendem ainda mais os limites do que aquele termo pode significar. Péricles (cerca de 1606-8) não foi incluída no Fólio de 1623, talvez porque os editores sensivelmente consideravam-na parte romance e parte tragicomédia: “romance” no sentido que ela toma seu herói de muitas aventuras “românticas” do tipo das encontradas em várias fábulas de viagens para terras longínquas, terminando finalmente em reunião com os familiares, e “tragicomédia” no sentido de uma mistura de elementos trágicos e cômicos. Do lado trágico há a aparente morte da esposa de Péricles, Thaísa e os encontros ameaçadores de sua filha Marina com madrastas perversas, piratas e cafetões; do lado cômico estão as deliciosas cenas de bordéis e os momentos de afetuosa felicidade quando pai, filha e esposa finalmente estão juntos novamente.

Cimbelino (cerca de 1608) é discutivelmente outra tragicomédia, tão próxima à tragédia, de fato, que os editores do Fólio de 1623 decidiram imprimi-la entre as tragédias, como a última peça do volume. É possível ver o porquê de os editores a colocarem ali. Não somente é uma peça muito grande, em terceiro lugar após Hamlet e Ricardo III, e passa-se numa Bretanha mítica e pré-histórica no viés de Rei Lear. Como Otelo, habita por algum tempo nas agonias do ciúme sexual. O impetuoso ciúme de Póstumo Leonato na aparente infidelidade de sua esposa Imogênia, e então o remorso suicida dele ao supor que foi bem-sucedido em tê-la assassinado, são as matérias do drama trágico do qual ele é salvo somente pelo auxílio providencial do romance tragicômico. A morte grotesca por decapitação do indesejado cortejador de Imogênia, Cloten, e a confissão cheia de horrores de leito de morte da mãe de Cloten, a Rainha, são o tipo de coisa que alguém espera encontrar em uma tragédia. Ainda que elas encontram-se aqui.

Os ataques de ciúmes de Leontes contra sua rainha inocente, Hermione, em O Conto de Inverno (cerca de 1609-11), são similarmente trágicos em suas intensidades, e com dolorosos efeitos. Novamente somos confrontados com a morte numa peça publicada entre as comédias. O jovem príncipe, Mamillius, está tão devastado pelo julgamento público de sua mãe por adultério que ele morre de angústia e choque. Hermione também aparenta morrer pelo seu suplício e, de fato, nós como plateia somos levados à acreditar que ela realmente está morta. Leontes está emocionalmente inconsolável com culpado remorso quando compreende muito tarde o que fez. O resultado é que a primeira metade dessa peça seria completamente trágica, se não fosse algumas dicas que tudo irá eventualmente ficar bem. A mudança entre as duas metades da peça é especialmente marcada. O Tempo como um Coro nos leva dezesseis anos à frente e para o mundo pastoral da Boêmia onde Perdita, abandonada pelo rei seu pai a um destino cruel de ser deixada numa praia distante, cresce entre pastores e pastoras. A atmosfera festiva de primavera da Boêmia não poderia ser mais diferente do que o mundo decaído da Sicília de Leontes. Aqui na Bohemia o romance floresce entre Perdita e o principesco filho (Florizel) de um amigo afastado de Leontes, Polixenes. Eventualmente os jovens amantes vão para a Sicília e para a reunião entre pai e filha, e então, em uma das maiores surpresas teatrais de Shakespeare, a uma reunião com a supostamente morta Rainha Hermione.

O Conto de Inverno é assim uma ilustração distintiva do que significa uma “tragicomédia”. Ela encarna uma dramaturgia que Shakespeare compartilhava com outros dramaturgos de Londres na última metade da primeira década do século dezessete, notavelmente John Fletcher. Plateias em ambos os teatros públicos e indoors poderiam estar buscando o tipo de realização meta-teatral que encontramos nessas peças. O Conto de Inverno, saltando uma geração inteira no tempo, tão característico do gênero, relembra um tratamento similar do tempo em Péricles (na qual à Marina deve ser permitido crescer de um bebê recém-nascido a uma jovem mulher na idade de casar) e em A Tempestade, onde o intervalo de doze anos desde à infância de Miranda, é apresentado através da recordação narrativa, em vez de uma encenação sequencial, assim que, em relação a isso, A Tempestade é mais uma comédia romântica no viés de O Mercador de Veneza ou Muito Barulho por Nada. Mesmo nessas comédias românticas encontramos elementos de tragicomédia: no Mercador, a própria vida de Antônio está aparentemente em risco na faca vingativa de Shylock, e em Muito Barulho, a falsa acusação de traição imputada contra Hero é séria o bastante para ameaça-la a comprometer a vida a um convento religioso. As assim chamadas tragicomédias posteriores são diferentes em grau das primeiras comédias românticas, não realmente em tipo. Bem Está, apesar de ser usualmente classificada como uma peça problema, contém elementos tragicômicos em seu lamento pelo estado decaído da natureza humana e sua enigmática e quase mágica resolução. Como um escritor cômico, Shakespeare resiste à classificação fácil a quaisquer “regras” clássicas.

As ideias de Shakespeare sobre a comédia, então, parecem tão variadas como as cores do arco-íris. E sobre a tragédia? Aqui novamente encontramos uma resoluta recusa da parte de Shakespeare em conformar-se com qualquer tipo de partido. Um exemplo de sua aparente irregularidade intencional é a inclusão da comédia em suas tragédias. De acordo com os modelos clássicos, essa é uma quebra do decoro, e como resultado, Shakespeare tem sido frequentemente atacado com violência pelos eruditos com formação clássica quando, por exemplo, ele traz ao palco em Otelo vários músicos palhaços que com mau gosto comparam o “vento” dos seus instrumentos com a flatulência, e coisas similares, justamente quando Iago nos colocou em alerta que ele irá envenenar à mente de Otelo com pensamentos ciumentos sobre sua esposa (3.1.1-31). Num viés similar, muitos críticos questionaram à sabedoria de introduzir um porteiro bêbado em Macbeth para fazer troça dos fazendeiros gananciosos, tecelões Ingleses desonestos, e assim por diante, apenas alguns momentos depois de Macbeth ter assassinado seu convidado régio (2.3.1-20). O rapaz bufão que traz as víboras ocultas numa cesta de figos para Cleópatra quando ela prepara-se para morrer (Antônio e Cleópatra, 5.2.241-79) é outro exemplo. Clichês sobre um “alívio cômico” dificilmente responderão às sérias objeções: Por que a tragédia necessita de um alívio cômico? Por que quebrar o ânimo da ansiedade histérica e da culpa? Ainda que um propósito artístico possa usualmente ser intuído. O porteiro de Macbeth troça sobre temas sérios de “equívocos” diabólicos (uma prática Jesuíta de justificar uma mentira ao guardar na mente uma reserva secreta de algum sentido na qual à expressão poderia ser verdadeira) e fogos infernais, tudo isso nos relembra do pré-concebido destino de Macbeth para “ir pelos caminhos das prímulas, até a eterna fogueira” (18-19). A conversa de Cleópatra sobre “o belo verme do Nilo” que “mata e não dói” é altamente informativo do estado da mente dela conforme se prepara para cometer suicídio da forma menos dolorosa possível. Se esses argumentos de relevância nessas passagens são sempre convincentes ou não, o ponto aqui é que Shakespeare parece não encontrar problema ao misturar comédia com tragédia.

Então, também, Romeu e Julieta contém algumas das mais deliciosas cenas engraçadas que Shakespeare já escreveu. Talvez a peça é um “comi-tragédia”; seu final é muito triste. Hamlet é brilhantemente engraçado em suas tiradas satíricas dirigidas à Polônio como um peixeiro, ou dos destinos irônicos dos advogados e grandes proprietários de terras que os esqueletos irão, ao seu tempo, terminar nas mãos de um coveiro. “Por que aquele não pode ser o crânio de um advogado? Onde está sua essência agora, suas sutilezas, seus casos, suas estabilidades e seus truques? (Hamlet, 5.1.98-100). Cleópatra em Antônio e Cleópatra compete com Falstaff como uma das mais fascinantes criações cômicas de Shakespeare. As cenas nas quais, durante as longas ausências de Antônio, ela consola-se lentamente ao torturar o pobre Mardian sobre o fato de este ser eunuco, ou obscenamente imaginar o que seria ser um cavalo e assim “carregar o peso de Antônio” (1.5.22), ou voar num frenesi contra o mensageiro que a trouxe novidades sobre o casamento de Antônio com Otávia e então ouvir complacentemente quando o informado mensageiro reporta-a às características não atraentes da rival, são simplesmente deliciosas. Se Shakespeare não hesita ao introduzir elementos trágicos nas comédias românticas e tragicomédias, o mesmo é verdade ao reverso, sobre o uso de elementos cômicos na tragédia. Seus trocadilhos notavelmente inventivos, o qual o Dr. Johnson uma vez chamou de “fatal Cleópatra” tentando Shakespeare para longe da alta arte, é talvez outro exemplo de sua visão inclusiva da interconexão dos gêneros dramáticos que poderia encontrar um propósito ocasional para o riso na tragédia.

Abordagens puristas clássicas à tragédia shakespeariana procuraram diligentemente pela falha trágica nos heróis trágicos de Shakespeare. Em último caso, a Poética de Aristóteles define o mais alto tipo de tragédia como aquela que um nobre e valoroso protagonista é diminuído não simplesmente pelo destino, mas pela a hamartia, variadamente definida como falha trágica ou, mais apropriadamente, erro trágico. (A palavra em Grego antigo vem de hamartanien, significando perder a marca, errar.) Aristóteles está pensando sobretudo no Édipo Rei de Sófocles como o exemplo perfeito do que ele quer dizer. Mesmo aqui o desacordo crítico persiste como o que a hamartia de Édipo pode ser – orgulho, angústia, blasfêmia, ou o erro fatal de assassinar seu pai e casar-se com sua mãe, atos decretados pelo destino como inevitáveis. Em todo caso, a consequência para a tradição crítica neo-Aristotélica é que hamartia cresceu em importância como um dos componentes principais do herói trágico. Os intérpretes aristotélicos na Europa Ocidental estavam aptos para ver a hamartia de uma perspectiva Cristã como algo próximo do pecado. Isso é quase certamente uma leitura incorreta de hamartia, que tem a ver com poluição ou violação de maneiras ofensivas aos deuses em vez de uma culpa pecaminosa, mas as formas dos Europeus Ocidentais de leitura de Aristóteles na Idade Média eram comprometidas em buscar por equivalentes culturais, e a Europa Ocidental era, e ainda é, geralmente, uma cultura culpada.

Externamente ao menos, Otelo e Macbeth parecem incorporar um dispositivo estrutural que relembra à hamartia. Otelo é um nobre Mouro de extraordinária relevância, devotado ao amor por Desdêmona, assim como esta o é por ele. Seu erro trágico parece ser um ciúme estimulado com dificuldade, mas aterrorizante em seu poder uma vez desperto. Ele no final aceita completamente sua responsabilidade por ter assassinado uma esposa inocente por raiva ciumenta; ele foi provocado a isso pelo talentoso e astuto tentador, Iago, mas Otelo sabe que a culpa repousa fundamentalmente em si mesmo. Ele é, em sua análise final, “alguém que amou não sabiamente mas muito”, “alguém não facilmente ciumento mas, sendo forjado, / Perplexo ao extremo” (5.2.354-6). Ele pede somente que os demônios possam chicoteá-lo “Da possessão desse espetáculo divino”, soprando-o “sobre os ventos”, assando-o “no enxofre” e lavando-o “em profundos poços de líquido fogo” (286-9). O significado da tragédia dele parece inteligível, e é de fato próxima à ideia de Aristóteles que a tragédia é mais significante quando encontra uma conexão entre causa e efeito, entre a má sorte e o sofrimento. Otelo merece pelo menos a punição de ter perdido Desdêmona para sempre através de sua própria ação ignorante. A ideia é coberta com valores Cristãos aqui; Otelo e Emília ambos consideram Iago como um tipo de “demônio” (5.2.135, 294-5) que prevaleceu sobre Otelo através de tentação insidiosa e destruiu por um tempo sua fé na bondade de Desdêmona. Que Otelo recupere sua fé na bondade dela também dá significado a essa tragédia; Otelo destruiu sua própria felicidade e vê que ele deve sofrer justamente por isso, mas também vê que a bondade de Desdêmona é eternamente verdadeira. Ela é, como Emília diz, “a mais angelical” (134).

Macbeth é similarmente eloquente nas importantes consequências espirituais do assassinato que contempla e então comete, e em seu próprio fardo irresistível de culpa. Mesmo se essa tradução em termos Cristãos perde o foco no significado Grego de hamartia, a associação entre causa e efeito não é menos proeminente. “e a Justiça / Conduz o cálice que envenenamos / Aos nossos lábios” (1.7.10-12), ele considera em solilóquio quando o momento dele assassinar o Rei Duncan aproxima-se rapidamente. Duncan está no castelo de Macbeth em dupla confiança: como o rei a quem Macbeth deve lealdade e como convidado a quem Macbeth deve uma obrigação sagrada como hospedeiro e guardião.

                       Duncan, além do mais, tem ostentado

                       Seu poder com humildade, e vivido

                       Tão puro no alto posto, que seus dotes

                       Soarão, qual trombeta angelical,

                       Contra o pecado que o destruirá;

                       E a Piedade, nua e recém-nata,

                       Montada no clamor, ou os querubins

                       A cavalgar os correios dos céus,

                       A todo olhar dirão o feito horrível,

                       Fazendo a lágrima afogar o vento.

                                                                      (Macbeth, 1.7.16-25)

Macbeth está assim totalmente consciente que ele está prestes a cometer um pecado hediondo, contra a decência humana, contra os céus. As únicas coisas impulsionando-o a seguir em frente são sua “Excessiva ambição” (27) e as sugestões das Estranhas Irmãs e sua esposa. Sua hamartia é fácil de identificar e de nomear em termos Cristãos: ela é uma ambição pecaminosa, o mau tentador de Satã ele próprio. Por toda sua maravilhosa complexidade poética, Macbeth parece um caso de crime e punição.

            Outras tragédias de Shakespeare, entretanto, não estão tão abertas para análises neo-Aristotélicas, e sugerem que Shakespeare com frequência pensava à tragédia em termos impressionantemente diferentes. Hamlet é frequentemente (muito frequentemente) analisado como vitimado por sua indecisão: sua suposta hamartia é uma propensão para o atraso. Correto até certo ponto, Hamlet censura a si mesmo por não ter agido mais rapidamente e decisivamente em resposta ao comando do fantasma de seu pai para “Vingar esse proibido e o mais não natural assassinado”. “Apressa-me a sabê-lo”, Hamlet replica, “que eu, com asas tão ligeiras / Como a meditação ou os pensamentos de amor, / Possa arrebatar minha vingança” (Hamlet, 1.5.26-32). Ainda que uma leitura mais abrangente da peça nos encoraja a considerar que essa ação rápida é na maioria das vezes precipitadamente inapropriada, como quando Hamlet mata Polônio nos aposentos de sua mãe, logicamente assumindo que Cláudio devia estar escondido por detrás do arrás quando de fato não o estava. O resultado é uma morte desnecessária que faz Hamlet viajar para a Inglaterra e coloca em movimento todo o final trágico da peça, incluindo o retorno do furioso Laertes para vingar a morte de seu pai. Laertes não hesita, e adequadamente termina sendo o assassino de Hamlet de forma desleal pois Laertes não sabia o suficiente para compreender que o real vilão no caso é Cláudio. Contrariamente, a decisão final de Hamlet em deixar as coisas nas mãos da Providência traz um final mais satisfatório que Hamlet ou qualquer outra pessoa podia planejar: o assassinato de Cláudio, e uma morte nobre para o Príncipe Hamlet, reconciliado com sua mãe no leito de morte e aliviado do fardo de viver num mundo tão problemático. Aqui de fato há “uma consumação / Devotamente desejada” (3.1.64-5).

            Se uma propensão ao atraso não é uma resposta satisfatória para a busca da hamartia de Hamlet, então qual é uma boa resposta? Talvez a melhor ideia é colocar de lado essa questão inteiramente, e pensar em Hamlet em vez disso como um bom homem que deve pagar o preço das corrupções manifestas do mundo. Ele é muito honesto para esse mundo. Quando ele está impaciente e difícil, como frequentemente é o caso, ele o é com aqueles que considera como bobos, como Polônio, ou oportunistas, como Rosencrantz e Guildenstern, ou vilões, como Cláudio. Com sua mãe ele é duro, mas isso porque ele verdadeiramente deseja salvá-la do que vê como os efeitos enfraquecedores da vida pecaminosa dela com Cláudio. Ele está profundamente arrependido pela morte infeliz de Ofélia, e prontamente pede perdão ao irmão dela. Com Horácio ele é um amigo amável e leal. Hamlet finalmente realiza o que seu pai o ordenou, ainda que de uma maneira que o absolve de assassinato a sangue frio. Ele morre, e será enterrado com todos os ritos funerais pertencentes a um soldado, pois, como Fortinbrás diz, ele é um homem confiável, se fosse rei, “Provar-se-ia o mais régio” (5.2.398-400). Horácio oferece a seu moribundo amigo um longo “Boa noite”, adicionando “E o voo dos anjos te cantem até o final!” (361-2). Hamlet é um herói trágico em um mundo que não sabe o que fazer com esses heróis até ser tarde demais, até as corrupções desse mundo terem cobrado seus tributos.

            Romeu e Julieta é outra tragédia que não cede bem a uma insistência categórica num erro trágico. Romeu e Julieta não são nem protagonistas trágicos no sentido Aristotélico normal: eles não têm estatura heroica ou mítica, como Édipo ou Medeia, mas em vez disso são simpáticos, jovens ordinários que se apaixonam como os personagens centrais de uma comédia romântica. Apesar de desesperadamente ansiosos em serem unidos como marido e mulher, qualquer tentativa de encontrar o significado da tragédia deles no ímpeto exagerado é claramente inadequada. O problema deles é que o mundo das amargas rivalidades familiares não permitirá que eles sejam felizes juntos. Mesmo quando seus pais podem estar dispostos a esquecer o feudo Capuleto-Montague, o espírito de vingança é muito forte. Os desentendimentos contribuem para o desastre: podemos entender o porquê de Julieta não poder contar a seus pais que ela casou-se com Romeu. Má sorte e um momento infeliz atuam quando a nota do Frei Laurence ao banido Romeu malogra. Num momento crucial, Romeu detém alguma responsabilidade pela tragédia por causa de sua decisão precipitada de matar Tybalt em vingança pela morte de Mercutio; Romeu sucumbe aos instintos masculinos da vingança de uma maneira que ele rapidamente lamenta. Porém mesmo aqui, alguém dificilmente pode argumentar que essa peça é centrada na hamartia. Em vez disso, como Capuleto diz, Romeu e Julieta são “Pobres sacrifícios de nossa inimizade” (5.3.304).

            Mais exemplos podem ser citados. Rei Lear e Gloucester em Rei Lear são ambos anciões tolos que fazem desastrosas escolhas, mas julgá-los como autores de suas próprias infelicidades é escolher o lado de Goneril, Regan e Edmundo. Os velhos homens são, como Lear diz de si mesmo, “Sou pecador / Contra quem outros pecaram.” (3.2.60). Júlio César faz um certo sentido em termos Aristotélicos, não surpreendentemente, pois ela é baseada na antiga história clássica, mas mesmo aqui a ênfase dramática é mais no gasto irônico do que em relação a César e Brutus e Cássio serem punidos pela húbris [orgulho excessivo]. Antônio e Cleópatra inverte às restrições da definição trágica clássica através de seu final triunfante na qual Cleópatra retira de Otávio César a oportunidade de mostrá-la em Roma como sua prisioneira. As ideias de Shakespeare sobre a tragédia são tão pragmaticamente derivadas e variadas quanto as peças as quais elas são designadas.

            As críticas apontadas a Shakespeare por Ben Jonson são, novamente, uma forma útil de avaliar às ideias literárias de Shakespeare da perspectiva oposta de um auto-proclamado escritor e teórico neoclássico. Juntamente com o elogio que já examinamos, Jonson tem vários comentários adversos à oferecer. Ele reclama com William Drummond de Hawthornden, em 1618, que Shakespeare “procurava arte”, como poderia ser visto quando “trouxe vários homens dizendo que eles tinham sofrido um naufrágio na Boêmia, onde não há mar por perto em algumas centenas de milhas”. É presumível que Jonson tinha em mente O Conto do Inverno, onde a Boêmia é mencionada várias vezes (e em nenhum lugar mais em Shakespeare), e onde de fado a bebê Perdita é deixada em uma região deserta da costa. Shakespeare está seguindo sua fonte, o Pandosto, de Robert Greene, ao dar uma costa marítima a um país que é tradicionalmente localizado na Europa central. A impaciência de Jonson aqui com a inexatidão é consistente com sua troça a Shakespeare pelos perceptivos anacronismos em Júlio César, ao equipar as ruas da cidade de Roma com “muros e muralhas”, “torres e janelas”, e mesmo “topos de chaminés” (1.1.38-9) como se a Roma antiga fosse uma Londres do século dezesseis, e de provê-la com um relógio pendular (2.1.192) em desleixada desconsideração pelo fato que o relógio mecânico não havia sido inventado até por volta de 1300. O ponto mais amplo de Jonson é que Shakespeare escreve muito rapidamente. “Os atores às vezes mencionam que é uma honra para Shakespeare, que em sua escrita, quaisquer coisas que ele escreve jamais borram uma linha”, Jonson nota em Timber, ou Descobertas. “Minha resposta tem sido, antes ele tivesse borrado mil.”

            Jonson também objeta vigorosamente contra a maneira livre e fácil de Shakespeare em relação à probabilidade no palco e com as unidades de tempo, lugar e ação. No prólogo da edição de 1616 do seu Todo Homem e Seus Humores, Jonson ataca às peças de história Inglesa nas quais os combatentes, “com três espadas enferrujadas, / E a ajuda de algumas palavras gigantescas, / Lutam sobre a longa discórdia de York e Lancaster / E da coxia trazem ferimentos e cicatrizes”. Esse mesmo prefácio segue ao preferir peças “Onde nem o Coro sopra-te pelos mares, / Nem o rangido do trono vem abaixo, para os meninos agradar, / Nem o sagaz busca-pé é visto como assustador / Às damas, nem as roladas balas ouvir / Para dizer que troveja, nem tempestuosos tambores / rufam para dizer-te quando a tempestade chega.” A Indução de Feira de Bartholomew (edição de 1631) compara o próprio mundo teatral de Jonson com as improváveis fantasias do drama romântico: “Se nunca houver um servo-monstro na feira, quem pode ajudá-lo, ele (Jonson) diz, nem um ninho do grotesco? Ele é relutante em fazer a natureza receosa em suas peças, como àqueles que geram estórias, tempestades e tais farsas, para misturar sua cabeça com os calcanhares de outros homens.”

            Todas as críticas apontam para Shakespeare como o principal ofensor entre os dramaturgos de Londres, mesmo quando Shakespeare não é especificamente mencionado pelo nome. A luta pela “longa discórdia de York e Lancaster” não pode ter outro alvo sério, desde que Shakespeare escreveu oito peças históricas sobre esse tema. O Coro soprando as plateias para além-mar soa como o Coro em Henrique V, que promete à plateia “daqui até França vamos conduzi-los em segurança, / E trazê-los de volta” (2 Coro, 37-8), embora outros dramaturgos também empregaram, às vezes, a mesma tática. Trovões anunciando a chegada de uma tempestade marca à cena de abertura de A Tempestade: “Ouve-se um tempestuoso barulho de trovão e relâmpagos”, seguido por “Entram Marinheiros molhados.” O “trono rangente” que descia por roldanas e cordas de um alçapão nos “céus” acima do palco é um proeminente dispositivo em Cimbelino: “Júpiter desce em raios e trovões, sentado sobre uma águia” (5.4.92). No Ato 4 de A Tempestade, “Juno desce” (72) para agraciar o casamento de Miranda e Ferdinand. “Trovões e raios” (1.3) assustam os habitantes de Roma nas vésperas do assassinato de Júlio César. “A Tempestade continua” repetidamente soa em Rei Lear conforme o velho rei aventura-se no “tempo horrível” do Ato 3, cenas 1 e 2. Rojões e fogos de artifício podem ter se tornado úteis quando, no cerco a Harfleur em Henrique V, “o ágil canhoneiro / Com o longo acendedor agora o diabólico canhão toca, / E abaixo vai tudo ante ele”, com o acompanhamento da direção de palco, “Alarmes, e as câmaras explodem” (3 Coro, 32-4). Outras cenas de batalha provêm oportunidades similares. Shakespeare se desculpa, através de seu Coro, por dar essa temerosa e inadequada representação da grande vitória de Henrique V em Agincourt, “Onde – ó, que pena! – devemos muito desgraçar / Com quatro ou cinco floretes vis e esfarrapados, / Certamente dispostos à doença na briga ridícula, / O nome de Agincourt” (4 Coro, 49-52). Jonson não poderia ter dito melhor. E para servos-monstros, “estórias, tempestades e tais farsas”, não precisamos olhar para outro lugar senão A Tempestade; O próprio uso por Jonson da palavra “tempestade” torna claro o objeto da sua ira crítica.

            O próprio credo literário de Shakespeare, apesar de nunca enunciado em muitas palavras, parece abundantemente claro na prática: ele descorda de Jonson ponto por ponto. A Tempestade observa as unidades de tempo, lugar e ação, como se Shakespeare estivesse dizendo a Jonson e outros críticos com o mesmo julgamento, em seu adeus aos palcos, Veja, eu posso perfeitamente bem observar as unidades dramáticas quando quero. Ainda mesmo aqui, Shakespeare traz um “servo-monstro” na pessoa de Calibã, e tais “farsas” como “várias formas estranhas trazendo um banquete” enquanto “Solene e estranha música” é emitida de algum lugar presumivelmente escondido. Próspero aparece “no topo, invisível” (3.3.17-19), querendo dizer no alto do teatro, usando uma roupa “invisível” como aquela de Puck e Oberon em Sonho de uma Noite de Verão. Alguém pode imaginar o desdém de Jonson por essas roupas “invisíveis”. Como alguém poderia ver uma pessoa “invisível”? Ainda que Shakespeare impenitentemente traga fantasmas, espíritos, bruxas ou estranhas irmãs, etc., que são capazes de aparecer para alguns humanos enquanto não para outros. O fantasma do pai de Hamlet visita Hamlet nos aposentos de sua mãe porém não deseja ser visto por Gertrudes (Hamlet, 3.4). O fantasma de Banquo aparece para Macbeth sem ser visto por nenhuma outra pessoa na mesa do banquete (Macbeth, 3.4). Os móveis podem parecer voar através do ar: quando na A Tempestade Ariel aparece “como uma harpia” para repreender Alonso, Antônio e Sebastian sobre suas traições, ele “bate suas asas na mesa, e com uma truque exótico, o banquete desaparece” (3.3.52). Essa é uma mesa de banquete que as “formas estranhas” trouxeram imediatamente antes de provocar os desesperados Italianos com visões perturbadoras, incitando mesmo os vilões a reconhecer, “Agora eu acreditarei / Que existem unicórnios; que na Arábia / Há uma árvore, o trono de fênix, uma fênix / Por essas horas reinando lá” (3.3.21-4). Shakespeare diverte-se na mágica do teatro, e não tem hesitação em chamar à atenção para suas próprias invenções teatrais pretensiosas. Jonson presumivelmente odeia cada minuto desse tipo de coisa.

            Shakespeare lida mais extensivamente com a teoria literária Jonsoniana no Ato 2, cena 7 de Como Gostais. O descontente satirista da peça, Jaques, acaba de encontrar-se com um bobo (Touchstone) na floresta, e está estourando de desejo em contar ao Duque Senior e aos seguidores do Duque o que o encontro com Touchstone inspirou Jaques a pensar. Jaques quer a licença de um “reconhecido bobo” (Noite de Reis, 1.5.91) para falar contra a loucura humana. “Eu devia ter liberdade / Contudo”, ele insiste, “com tanto privilégio como o vento, / De soprar em quem eu agrado” (Como Gostais, 2.7.47-9). Ele adverte seus alvos pretendidos que eles farão bem em atuar sem perturbações perante as farpas dele, para que eles não traiam suas próprias idiotices ao reagirem raivosamente e pessoalmente; se eles podem fingir parecerem “insensíveis” (55), os observadores podem supor que eles não são contaminados pela acusação. Jacques quer, como um satírico, unir forças com o bobo profissional, porque o bobo é muito livre para dizer qualquer coisa que pensar. “Invista-se na minha miscelânea”, Jaques proclama, “dê-me saída / Para falar minha mente, e eu irei de qualquer forma / Limpar o sujo corpo do infectado mundo, / Se eles pacientemente receberem meu remédio” (58-61). Esse é o manifesto do satírico Romano; as ideias são reconhecidamente aquelas de Horácio, Juvenal e Persius. Shakespeare, através de Jaques, habilidosamente sumariza a antiga e imemorial defesa da sátira literária: ela realiza uma função socialmente útil ao expor à loucura humana. É um “remédio” designado para “limpar” o “mundo infectado”.

            A defesa da sátira de Jaques afirma que ela é uma arte moral, não somente porque age em nome da sociedade geralmente mas porque ela ataca os abusos que são pecaminosos. Jaques oferece exemplos. Ele irá gritar alto contra o orgulho, especialmente à extravagância nas vestes: ele irá atacar qualquer “mulher da cidade” ou esposa de algum dignitário cívico que presumivelmente sustenta “O custo dos príncipes em ombros indignos” (70-6), isto é, desperdiçando dinheiro em refinamentos como se fosse uma aristocrata. A observação beira friamente o esnobismo social: as esposas da cidade não devem vestir-se acima de sua posição. Seus maridos não são exceção, é claro. Jaques pensa igualmente de qualquer pessoa na “mais básica função” (baixa classe social) que protesta que sua “bravura” ou esplendor nas vestes “não é meu custo” (isto é, não foi comprada nas minhas custas e não tem, por isso, relação com meu negócio como satirista), mas quem então comporta-se desse modo para deixar claro que o que o satirista diz é verdade: ele “adapta / Sua loucura ao caráter do meu discurso” (79-82). Parte da auto-justificação de Jaques, em outras palavras, é que quando os alvos da sua sátira comportam-se de forma a proclamar suas culpas, eles podem não ter resposta lógica àqueles que os criticam. Deixe o sapato servir a quem o calça.

            A última e talvez mais importante defesa de Jaques de sua arte como satirista é que ele não ataca indivíduos. Ele molda um retrato genérico da loucura humana e então permite a seus leitores ou ouvintes determinarem a adequação a qualquer caso hipotético. “O que então?” ele pergunta, quando ele fez um genérico esboço do personagem da “mulher da cidade” ou a de “mais básica função”, sem dar nenhum nome. “Deixe-me ver em que / Minha língua o ofendeu”, ele continua. “Se eu fiz o certo, / Então ele o ofendeu. Se ele é livre, / Minha advertência voa, sem destino, / Sem ninguém que a queira” (83-7). A verdadeira sátira aflige somente aqueles os quais o próprio comportamento conforma-se ao tipo satírico. Contrariamente, qualquer um que é “livre” da loucura em questão é por esse fato intocável. Isso, novamente, é teoria clássica sobre a sátira. Ela aparece em Horácio e também em sátiros posteriores, incluindo Alexander Pope no século dezoito. O gênio de Shakespeare e imparcialidade como escritor o possibilita a condensar as complexidades do pensamento crítico da literatura clássica em um verso denso mas elegantemente lúcido.

            Ao mesmo tempo, Shakespeare não perde à oportunidade para uma resposta inteligente. Duque Senior gosta e mesmo admira Jaques, mas tem uma explicação inteiramente diferente do que motiva o satirista: a sátira pode ser uma maneira de retaliar inimigos pessoais, e é também frequentemente a expressão de alguém culpado de falhas morais que agora fixa em outros como uma forma de defesa pessoal. “Que vergonha!” Duque Senior ralha com Jaques, talvez com bom-humor, mas com vigor entretanto. “Eu bem sei o que faria”, ele continua:

                                   Ia pecar, pra punir o pecado.

                                   Pois você mesmo foi um libertino,

                                   Tão sensual quanto o cio animal,

                                   E toda bolha e casca e carga má

                                   Que apanhou em sua vida de devasso,

                                   Iria vomitar no mundo inteiro.

                                                                                  (2.7.62-9)

O fato que Jaques não dá evidência na peça de um comportamento libertino, pode sugerir que a ilustração de Shakespeare do “satirista” aqui é genérica. Na visão do Duque Senior, satiristas são motivados por uma desconfortável consciência de seus próprios costumes libertinos e assim são todos ávidos em ver e condenar o comportamento libertino nos outros. O demônio ama companhia.

            O debate em Como Gostais termina num empate, como é usualmente o caso em qualquer lugar que haja um tratamento dialético, por Shakespeare, de assuntos controversos. A sátira era certamente um assunto controverso quando essa peça foi montada pela primeira vez, em 1599. Uma onda de poemas satíricos romanos alcançou os quiosques dos livreiros em torno dessa época, incluindo o Virgidemiae (1597) de Joseph Hall e As Metamorfoses da Imagem de Pigmalião (1598), de John Marston, assim como peças satíricas que incluíam Todo Homem em seu Humor (versão in quarto, 1598) e Todo Homem Fora de seu Humor (quarto, 1599) ambos de Jonson. Também o Poetaster, de Jonson e Thomas Dekker e Satiromastix, de John Marston, ou A Soltura do Poeta Humorístico, apareceram logo em 1601. Algumas dessas eram altamente e obviamente pessoais. Jonson estava no centro do rebuliço. Shakespeare pode ter feito alguma crítica subentendida a Jonson na caracterização de Aquiles e Ajax, em Tróilo e Créssida, mas em geral Shakespeare se distanciava da sátira franca. O que ele pensava dela como um gênero literário e dramático?

            Como Gostais pode oferecer pistas. Shakespeare, como vimos, apresenta ambas, a defesa da sátira e a crítica dela com profundidade e simpatia. Ao mesmo tempo, ele arranja o debate entre Jaques e o Duque Senior no contexto maior do Ato 2, cena 7, na Floresta de Arden. Muito está acontecendo. O debate sobre a sátira é imediatamente seguido pelo surgimento repentino do jovem Orlando, faminto e desesperado para salvar à vida de seu velho servo, Adão, que está próximo à morte. Com a espada nas mãos, Orlando está preparado para usar de violência para alcançar seus fins. Porém sua hostilidade encontra-se com a compaixão e a generosidade. “Do que você gostaria?” Pergunta-o Duque Senior. “Sua gentileza deve forçar / Mais do que sua força nos move à generosidade” (2.7.101-2). Orlando e Adão recebem o cuidado que necessitam, e tornam-se parte da comunidade da floresta. Ademais, o incidente incita o Duque Senior a pensar mais amplamente o porquê dos seres humanos necessitar cuidar uns dos outros. Duque Senior e seus companheiros conheceram o que é sofrer. Aquele conhecimento cria neles uma esperança de um mundo melhor de valores comunais compartilhados:

                                   Verdade é que vimos dias melhores,

                                   E ouvimos sinos santos nas igrejas,

                                   Festejamos com os bons, e enxugamos

                                   Lágrimas que a piedade fez cair;

                                   Portanto sente-se, com gentileza,

                                   E ordeno que se sirva do que temos

                                   Pra atender sua necessidade.

                                                                                              (2.7.119-25)

Jaques, por sua parte, usa a ocasião para meditar sobre as Sete Idades do Homem, da infância e juventude até a velhice e a senilidade, tomando uma visão mais satírica que a vida é basicamente um pouco mais que um processo existencial de envelhecimento. O debate continua. Ainda que as ideias de compaixão, perdão, e comunidade, finalmente prevaleçam no mundo das comédias românticas de Shakespeare. Isso não é absolutamente a resposta final de Shakespeare, pois algumas visões fortemente pessimistas ainda serão enfrentadas nas grandes tragédias dos próximos anos. Ainda, nesse ponto de 1599, as atrações de um ponto de vista satírico finalmente geram às consolações de uma filosofia mais caridosa.

            Mesmo se ele é relutante de colocar-se à vista como um teórico literário, então, Shakespeare apresenta cumulativamente em sua obra uma visão crítica compreensível de sua arte. A poesia e o drama podem e devem servir a um propósito moral maior, não através de sermões dogmáticos mas através da apresentação de exemplos dramáticos vívidos. A arte desse tipo exaltada pode melhorar muitas complicações e imperfeições da vida, e pode sobreviver aos revezes do tempo. Consequentemente, o drama e a atuação devem evitar os apelos baratos ao gosto popular. Elas devem lisonjear mesmo os “groundlings” que vão ao delírio em “shows inexplicavelmente bobos e barulhos” para colocar suas visões para cima quando eles vêm assistir a peças. A arte dramática mais verdadeira é aquela que busca e ganha a aprovação daqueles que realmente entendem o que é a arte. Presumivelmente, Shakespeare não quer dizer que o artista deve escrever somente para a corte e para aqueles que são treinados pela universidade; ele próprio não frequentou uma universidade, e implicitamente permanece como uma prova viva que alguém pode ser uma pessoa da mais alta seriedade artística através da auto-educação.

            De fato, Shakespeare mostra pouca simpatia pelas “regras” clássicas de tempo, lugar e ação que eram as favoritas dos eruditos com treinamento clássico e os dramaturgos. Claramente, ele pode seguir às regras sem esforço e brilhantemente quando a história parece necessitá-las, mas ele é sobretudo um praticante de abordagens não-doutrinárias à estrutura dramática. Similarmente, ele dá insuficiente atenção a Aristóteles e à tradição neo-Aristotélica de interpretação crítica. Ele aborda o gênero de maneira variável, misturando comédia e tragédia quando apropriado e usando (mesmo ajudando à inventar) formas genéricas como as peças de história Inglesas e a tragicomédia que desafiam às limitações neo-Aristotélicas do gênero dramático da comédia e da tragédia. Suas tragédias às vezes emprestam-se à ideia de Aristóteles de hamartia do herói trágico, mas às vezes não o fazem. Apesar de não ser o que chamaríamos de um escritor satírico, Shakespeare certamente conhecia como usar a sátira, e ele dá ouvido respeitoso às defesas Horacianas dela. Sobretudo, ele é um pragmatista justo, colocando as ideias rivais sobre a arte em debate uma contra a outra. Essas são, talvez, algumas das ideias sobre arte com as quais Shakespeare conscientemente armou a si mesmo conforme ele se preparava para enfrentar os temas céticos que irão emergir com crescente força na segunda metade da sua carreira de escritor.

[:fr]

Tradução do Quarto Capítulo de: As Ideias de Shakespeare, Mais Coisas entre Céu e a Terra, David Bevington, 2008.

4

Apresentar um Espelho à Natureza

As Ideias de Shakespeare sobre Escrita e Atuação

            Um conjunto de ideias que Shakespeare precisava considerar, conforme aventurava-se com crescente audácia nos temas filosóficos do ceticismo e da dúvida, tem a ver com a natureza da poesia e do drama. Quais são os propósitos artísticos e morais da poesia e do drama, e como o poeta e o dramaturgo seguem suas funções de fornecedores da sabedoria moral? As declarações de Shakespeare acerca de seu ofício como escritor, ambos implícito e explícito, toma como dado que a poesia e o drama servem como importantes guias da conduta humana. Nessa hipótese, Shakespeare segue a linha dos teóricos antigos e da Renascença, de Aristóteles e Horácio a Philip Sidney e Ben Jonson. A ideia está no coração da Defesa da Poesia (1595) de Sidney: a poesia ultrapassa ambas a história e a filosofia, na visão de Sidney, pois ela ilumina poderosamente grandes verdades com apimentados exemplos, assim evitando à incapacitante particularidade da história por um lado e às insossas abstrações da filosofia por outro.

            Para Shakespeare, o poder da arte é justamente tão importante para o dramaturgo e ator quanto o é para o poeta. O que significa dizer que a atuação é uma imitação da natureza? Por que a imitação desse tipo é tão importante para nós que pode afetar a vida das pessoas, para melhor ou pior? Quais estilos de atuação podem melhor alcançar à função do teatro de oferecer um espelho à natureza? Essas coisas parecem importar sobremaneira a Shakespeare, e particularmente quando ele escreve seus Sonetos e Hamlet (cerca de 1599-1601). Noções implícitas sobre a natureza da arte dramática são encontradas ao longo de todo o cânon, é claro, mas verbalizações explícitas estão especialmente em evidência por volta da virada do século. Os Sonetos são difíceis de serem datados individualmente, mas alguns sonetos chaves são plausivelmente do final dos anos 1590 ou início dos 1600, e então também podemos assumir que Shakespeare esteve pensando sobre sua arte por algum tempo. É como se Shakespeare avaliasse cuidadosamente seu método artístico conforme ele deixa de escrever comédias românticas e peças de história Inglesa para peças de gênero mais problemático, como Tróilo e Créssida (1601) e as grandes tragédias. De qualquer forma, esse parece um momento adequado para nós olharmos para a visão de Shakespeare de seu próprio ofício.

            Apesar de Shakespeare nunca ter escrito um ensaio literário ou um prefácio para uma peça ou poema expressando suas visões sobre o que significa ser poeta e dramaturgo, e mesmo que nós não tenhamos nenhuma correspondência preservada sua ou arquivos de conversas literárias, podemos intuir muito das passagens em seus poemas e peças onde os tópicos da escrita e atuação aparecem. Como sempre, temos que ser cuidadosos em não atribuir a Shakespeare os pensamentos de seus personagens, mas podemos identificar posições que são colocadas em debate. Então, também, certos temas sobressaem de forma a sugerirem que eles são de alguma importância para seu autor.

            Os Sonetos parecem profundamente interessados no fenômeno da fama alcançada pela escrita, e fama alcançada através de ser descrito por outrem. Essas são ideias comuns, que se voltam para o mundo clássico, então não se deve colocar muita ênfase na individualidade da visão, mas elas insistentemente se apresentam entre os temas centrais dos Sonetos. Um exemplo bem conhecido é o do Soneto 55:

Nem o mármore nem os dourados monumentos

De príncipes, devem sobreviver a esse poderoso verso

Mas você brilhará mais forte nesses conteúdos

Do que a não cuidada rocha empoeirada pelo lascivo tempo.

A melhor proteção contra a devastação do tempo, esquecimento, e a guerra, o poeta segue para nos assegurar, é a lembrança literária: “seu louvor deve ainda encontrar espaço / Mesmo nos olhos de toda posteridade / Que desgastará esse mundo até à danação final”. “Seu” aqui pode significar o jovem cavalheiro a quem os Sonetos são endereçados geralmente, e nós como leitores.

            Vários dispositivos desse soneto são notáveis. O poeta louva os méritos da poesia sobre monumentos de rocha, que podem parecer duráveis mas são de fato sujeitos à decomposição e abandono. Um problema com os monumentos de mármore é que eles são brevemente esquecidos, “empoeirado pelo lascivo tempo”, “não cuidado”, ou eles serão anulados e destruídos. A poesia, por outro lado, durará não somente por séculos mas para sempre. A guerra é emblemática dos processos os quais o declinante Tempo irá inevitavelmente “queimar / O registro vivo da sua memória” ao menos que ela seja redimida pela poesia. O poeta enfatiza repetidamente às vantagens da poesia para a pessoa assim celebrada: essa pessoa irá “viver nisso” até “o julgamento que te faz levantar”, isto é, até o dia do Juízo Final no fim do próprio tempo. Simultaneamente, o soneto implica que a poesia também irá imortalizar o autor. O soneto é reflexivo sobre si mesmo: conforme o lemos, lembramos das palavras de William Shakespeare e vemos nesse soneto uma demonstração de como, de fato, a poesia pode alcançar um tipo especial de imortalidade para quem o produz. O criador de sonetos está também implicitamente orgulhoso de um coleguismo entre poetas e amantes da poesia que podem desprezar “os dourados monumentos / de Príncipes”. As realizações de homens orgulhosos e poderosos (como Alexandre, ou Júlio César) inevitavelmente decaem, como também todas as coisas desse mundo ordinário. A poesia é de uma ordem maior. Ela compartilha com a religião a verdade eterna que pode rir com gentil desdém do mero mundano.

            A poesia é uma defesa contra o envelhecimento, não num sentido de retardar o processo biológico, mas de ensinar-nos a colocar nossa confiança nos valores eternos do verdadeiro amor e amizade. Guardar-se contra o tempo que se aproxima com rapidez quando o caro amigo do poeta será, como o próprio poeta, “Com a mão injuriosa do Tempo esmagado e esgotado” e sua face cheia “Com linhas e rugas”, o poeta fortifica-se a si mesmo com a convicção que o Tempo “nunca cortará a memória / A beleza de meu doce amor”: “Sua beleza deve ser vista nestas brancas linhas, / E elas devem viver, tanto quanto ele nelas permanecerá verde” (Soneto 63). A poesia pode eternizar a beleza do tipo que não pode fenecer. Novamente, no Soneto 65, a resposta para o apavorante desafio posto pela “triste mortalidade”, contra a qual “o latão, nem a rocha, nem a terra, nem o mar ilimitado” podem resistir por muito, é a poesia, e a poesia somente. Nada pode impedir o “ligeiro passo” do tempo, “ao menos que esse milagre tenha poder, / Que em tinta preta meu amor possa permanecer brilhante”. A ênfase na “tinta preta” em ambos os sonetos mostra a importância do tema paradoxalmente: a poesia é imortal, e ainda assim é criada por um mero mortal que escreve com uma substância fluida que parece quase uma sujeira. O ato físico de escrever, e o papel na qual as palavras aparecem, são efêmeros, mas as ideias e imagens contidas nessas palavras não o são.

            Por toda a característica modéstia do poeta-falante sobre sua própria habilidade como poeta, ele não se envergonha perante o poder da poesia ela mesma e sua habilidade de conceder fama através da escrita. “Seu nome a partir de agora, vida imortal deve ter”, ele assegura a seu amigo, “Embora eu, uma vez que parta, todo o mundo deve morrer.” “Você ainda viverá – tal virtude tem minha pena – / Onde a respiração mais respira, mesmo nas bocas dos homens” (Soneto 81). Quando o poeta sente que seu gênio está declinando ou que ele está gastando seus esforços em “alguma música inútil”, ele implora à Musa para vir em sua assistência para o propósito maior de comemorar o amigo. O poeta fala a sua Musa como se ele, o poeta, fosse apenas um instrumento o qual à humilde pena é ensinada ambos “aptidão e argumentos” pelo poder e a “fúria” da inspiração. Somente à Musa, então, pode fazer o que a poesia deve fazer: “Dar a meu amor a fama, mais rápido que o Tempo desgasta à vida; / Então tu prevenirás sua foice e a desonesta faca” (Soneto 100).

            O poeta-falante dos Sonetos é sensível às complexas relações entre arte e mero artifício. Como Sir Philip Sidney, em sua sequência de sonetos chamada Astrophel and Stella, o falante dos sonetos de Shakespeare recusa insistentemente em seguir as fracas convenções da prática de sonetos – as quais, por volta de 1590, atraíam muitos seguidores e imitadores. “Os olhos de minha amante não se parecem com o sol”, ele proclama, aludindo ao modo na qual muitos sonetos reiteram aquela comparação clichê. “O coral é muito mais vermelho do que o vermelho dos lábios dela.” Os seios dela não são brancos como a neve, o cabelo dela é crespo e negro, as bochechas não relembram rosas de damasco, a respiração dela não é perfumada, o discurso dela não é música, e a maneira dela de andar é mais mundana do que divina. Shakespeare está aqui satirizando não somente o desfile de imagens inertes e previsíveis, mas também às convenções do soneto em ostentar, ou catalogar os charmes de uma dama, expressos como se eles fossem insígnias heráldicas. “E ainda, pelos céus, penso que meu amor é tão raro / Quanto qualquer dama desmentida com falsas comparações”, ele conclui (Soneto 130). A poesia deve evitar clichês porque eles degradam o tema, substituindo o vulgar e esperado por imagens que são frescas e persuasivas.

            O conselho aqui é próximo àquele de Rosalinda, em Como Gostais, quando ela aconselha Orlando a abster-se das fórmulas vazias no cortejo, como por exemplo dizer que ele morrerá por amor se sua paixão não for retribuída. “Não, por fé, morra por procuração”, ela o aconselha. “O pobre mundo tem quase seis mil anos, e em todo esse tempo não houve qualquer homem que morreu, nomeadamente, por amor.” O exemplo dela inclui Tróilo, que “fez o que podia para morrer” de amor sem ter sucesso nessa empreitada, apesar de ele ser “um dos padrões do amor”, e Leandro, que morreu não por que estava doente de amor (como os “tolos cronistas daquela época” continuavam insistindo) mas porque teve câimbra enquanto nadava o Dardanelos para alcançar sua amada Hero de Sestos. “Essas são todas mentiras”, Rosalinda conclui (4.1.89-102). Orlando seria bem aconselhado em evitar o antiquado voto de amar “Sempre e um dia”. “Diga “um dia,”” sem o “sempre”, Rosalinda insiste (138-9). O amor necessita ser realístico em suas expectativas; assim também a poesia de amor. Julieta está com a mesma mente em Romeu e Julieta quando ela pede a Romeu não jurar “pela lua, a inconstante lua, / Que mensalmente altera-se em sua órbita circular, / Para que teu amor não se prove igualmente variável” (2.2.109-11). Como no Soneto 130, a ideia aponta para a necessidade de franqueza em ambos os relacionamentos humanos e na arte. Ao mesmo tempo, estamos constantemente conscientes, conforme lemos esse soneto ou qualquer outro, de como são estudadamente artificiais as convenções da escrita de sonetos, com suas formas de estrofes altamente estruturadas e o padrão de rima. A escrita precisa aprender a criar uma aura de genuinidade através do uso criativo da convenção poética.

            Às vezes, o poeta-falante dos Sonetos é capaz de uma dolorosa auto-degradação em sua arte, ou ao menos em sua profissão. O Soneto 111 começa como se segue:

                        Ó, por mim, desprezas à Sorte,

A deusa culpada de meus malfeitos,

Que nada melhor proveu para minha vida

Do que meios públicos que procria maneiras públicas.

Então sobrevém que meu nome receba uma marca,

E quase de imediato minha natureza se subjuga

Ao que é objeto do trabalho, como à mão do tintureiro.

Se isso é ao menos em parte autobiográfico, ele parece sugerir que o poeta-falante lamenta às circunstâncias que o deixaram com pouca escolha além de colocar a si mesmo às vistas do público de uma forma que cria “maneiras públicas” em si mesmo e incorre em desgraça por algo vergonhoso e sujo, como o tintureiro o qual as mãos estão manchadas pela tinta que manipula. Isso pode referir-se à atuação, que é necessariamente pública, e que carrega com ela (naquela época e hoje) uma reputação de uma vida boêmia. Atuar, nessa visão, é algo aventureiro e descarado. O ator inspira sua plateia com sua habilidade na representação, enquanto que, ao mesmo tempo, faz uma exposição de si mesmo. Essas dolorosas contradições aplicam-se ao dramaturgo também? A própria natureza do escritor está em perigo de ser diminuída pelo meio no qual ele trabalha, nomeadamente, a linguagem da poesia e o mundo do teatro comercial? Quando o poeta-falante reclama a seu amigo, “Nossa, isso é verdade, fui de um lado para o outro / E fiz de mim mesmo uma mixórdia para o público” (Soneto 110), ele soa novamente a nota de auto-degradação ou mesmo de auto-abominação por uma profissão na qual o falante tem “Ferido meus próprios pensamentos, vendendo barato o que é mais querido”.

            Ainda em outro lugar Shakespeare soa como se considerasse a atuação e a escrita de peças como as profissões mais nobres, e as mais capazes de oferecer a um mundo carente de perspectivas artísticas. Em nenhum lugar essa admiração é mais eloquentemente expressada que no conselho de Hamlet aos atores que visitaram Elsinore e que estão prestes à encenar às ordens de Hamlet. Evitar à atuação forçada, ele os adverte: “não ultrapassar a modéstia da natureza, porque o exagero é contrário aos propósitos da representação, cuja finalidade sempre foi, e continuará sendo, como que apresentar o espelho à natureza, mostrar à virtude suas próprias feições, à ignomínia sua imagem a ao corpo e idade do tempo a impressão de sua forma.” (Hamlet, 3.2.19-24). Esses são objetivos morais elevados. O próprio propósito da mimésis, Hamlet parece argumentar, é instruir através da ilustração e do exemplo. O espelho da arte nos mostra o que somos: ele nos previne dos modelos negativos e encoraja à conduta virtuosa. Atores são “as crônicas abstratas e breves do tempo” (2.2.524). Essa não é uma visão redutiva ou utilitária da arte, porque a arte necessita ser eloquente e bela para inspirar o comportamento correto, mas essa visão parece desconcertada pela proposição que, em seu melhor, a arte tem uma função didática.

            De fato, isso prova-se no presente exemplo. O propósito de Hamlet ao adicioná-lo em “O Assassinato de Gonzago” é de testar a consciência do Rei Claudio ao mostrá-lo uma representação do ato homicida que Hamlet acredita que Claudio cometeu. Ele ouviu “Aquela culpada criatura sentada perante uma peça / Sendo pela própria esperteza da cena / tão golpeado na alma que brevemente / Eles proclamaram suas malfeitorias” (2.2.590-3). Claudio responde como o esperado. Quando a performance de “O Assassinato de Gonzago” alcança o ponto crítico na qual o sobrinho do Rei, Luciano, está quase para aplicar veneno nos ouvidos de seu dormente tio, Cláudio não pode mais sustentar. Ele levanta-se e faz uma saída impetuosa, para a consternação de todos os presentes menos Horácio e Hamlet. Este, tendo preparado essa “peça ratoeira”, está agora pronto para “tomar à palavra do fantasma por mil quilos” (3.2.235, 258-85). Hamlet testou e verificou a verdade sobre o que o fantasma de seu pai disse sobre o assassinato do velho Hamlet pelo seu irmão. A sequência também confirmou em ação a teoria de Hamlet sobre a eficácia da arte dramática em despertar à consciência. “O Assassinato de Gonzago” mostra precisamente o que Hamlet queria dizer por apresentar “o espelho à natureza”. A ideia é profundamente idealística na sua visão da escrita: assim como a arte pode eternizar a fama, ela também pode mudar nossos corações e ajudar-nos a combater nossas próprias naturezas pecaminosas.

            Esse alto propósito moral explica por que, na visão de Hamlet, a atuação deve “adquirir e gerar uma temperança que lhe dará sutileza”. Hamlet prossegue por um tempo em sua insistência que os atores não devem “bocejar” seus discursos como se eles fossem os pregoeiros da cidade, ou ver o ar com suas mãos, ou “rasgar uma paixão aos farrapos, aos trapos, dividindo os ouvidos da plateia, que na maior parte não é capaz de nada exceto inexplicáveis shows de ignorância e barulho”. Eles precisam tomar cuidado para não exceder Herodes pelo discurso, ou fazer piadas inoportunas para que os “incompetentes riam” – uma falta que “não pode causar senão desgosto ao criterioso, e a censura deste deve constituir na vossa estima mais do que um teatro lotado pelos outros” (3.2.1-28). Especialmente os bobos devem evitar à tentação de improvisar alguma matéria frívola e então rir de sua própria tirada “a fim de fazer rir também certo tipo de néscios espectadores, conquanto nesse ínterim algum ponto importante da peça devesse ser valorizado” (39-43). A boa atuação tem como alvo a representação, o que alguém vê num espelho real, sem distorção. A reforma do estilo de atuação (36-8) é necessária para evitar os abusos da atuação incompetente, que são geralmente, um resultado combinado de mal gosto da parte de alguns espectadores, e a disposição da parte de muitos atores em prover para um apetite de paixões triviais e “turbulentas”.

            A visão elevada de Hamlet da arte dramática, então, caminha lado a lado com uma visão intelectualmente aristocrática de que constitui um espectador adequadamente educado. Shakespeare ousa a conceder a Hamlet que se refira aos seus espectadores como “groundlings” – um termo empregado primeiramente por Shakespeare nesse sentido (e ainda em uso hoje) que descreve àqueles que estão no “pátio” de três lados do palco público do teatro Elisabetano. Muitos desses que ouviram o discurso de Hamlet na produção original em algum momento por volta de 1600 devem ter sido groundlings eles próprios, pelo menos no sentido prático. Hamlet está insultando-os? Mais provavelmente, ele está apelando para os melhores instintos críticos destes mandando-os juntar-se ao grupo seleto daqueles que têm uma compreensão madura do que o drama deve sobretudo ser. Em todos os eventos, ele apela ao drama como arte elevada. O drama deve “Adequar à ação à palavra, a palavra à ação” (3.2.17-18). Esse conselho aplica-se ao dramaturgo, assim como aos atores os quais Hamlet está endereçando.

            De uma maneira similarmente esotérica, Hamlet descreve aos atores um discurso dramático que ele ouviu uma vez. Ele nunca foi encenado, “ou se foi, não mais que uma vez, eu me lembro, não agradou a milhões; era caviar ao público” – isto é, era um prato escolhido, muito elegante para os gostos plebeus vulgares (2.2.434-7). Novamente, Hamlet está confrontando seus espectadores que ficam próximos ao palco, ou ele os pede para medirem e elevarem seus próprios gostos na literatura dramática por esse alto padrão? Em qualquer caso, a peça foi, na própria visão de Hamlet e na visão de outros “os quais os julgamentos nessas matérias gritam sobre o meu”, uma excelente peça, “bem digerida nas cenas, realizada com tanta modéstia quanto sagacidade”, e com “nenhuma salada nas linhas para deixar o assunto temperado” ou alguma “matéria na frase que podia denunciar o autor da afetação” (437-43). Hamlet parece ter a intenção de enaltecer uma obra que era muito sofisticada para os espectadores ordinários; seu elogio é direcionado para os poucos escolhidos os quais os gostos impecáveis os autoriza a serem juízes do mérito literário. A peça que Hamlet relembra era tão intelectual, de fato, que ela falhou no palco se um dia foi montada – uma descrição que estranhamente adequa-se à história de Tróilo e Créssida de Shakespeare, com sua sinopse de publicação em 1609 fazendo propaganda da obra como “nunca obsoleta com o palco, nunca aplaudida pelas garras e palmas dos vulgares, e ainda passando totalmente pelas palmas cômicas” (mesmo que outra versão da peça, na página-título do quarto de 1609, declare que ela foi “atuada pelos Servos da Majestade do Rei no Globe”) Por que essa insistência no refinamento intelectual às custas do entretenimento teatral popular? O relato que Hamlet acaba de receber de Rosencrantz e Guildenstern, sobre uma guerra de poetas na qual as companhias de atuação de adultos estão perdendo espaço para companhias de meninos atores, aparentemente com referência à cena teatral de Londres por volta de 1600-1, e aparecendo apenas no texto do Fólio de Hamlet (2.2.338-62), adiciona à sensibilidade de Hamlet que o teatro tem uma séria obrigação de manter o maior padrão possível de excelência artística.

            A amostra de Hamlet de alta arte dramática está no assassinato do Rei Príamo de Troia pelo Grego Pyrrhus (ou Neoptolemus), filho de Aquiles, e o grito apaixonado da Rainha Hécuba “Quando ela vê Pyrrhus fazer o esporte malicioso / De picar com sua espada os membros de seu marido” (2.2.450-518). A passagem é deliberadamente clássica, sendo derivada no principal da descrição de Virgílio da queima de Troia na Eneida, Livro II. Ela pode também fazer uma amarga homenagem à Dido, Rainha de Cartago, uma peça escrita por Christopher Marlowe em colaboração com Thomas Nashe em algum momento antes da morte de Marlowe em 1593. A peça evoca nostalgia por um mundo passado de tragédia clássica, em sua dramatização de um mito sempre recontado, sua dicção poética e o verso branco cuidadosamente controlado, suas longas frases que relembram Sêneca e as sentenciosas moralizações, seus focos em momentos de intensa paixão trágica, seus pronunciamentos estoicos sobre a Fortuna, e seu reconhecimento da presença dos deuses. Seu recital na ocasião presente desagrada Polônio como “muito longa”, assim dando a Hamlet uma outra oportunidade de expressar sua preferência por auditores com um gosto educado; como ele diz sobre Polônio aos atores, “Ele é para uma dança, ou uma fábula obscena, senão dorme” (2.2.498-501). O estilo arcaico usado para descrever o triste destino de Príamo e Hécuba não é o idioma usual de Shakespeare, de fato, mas ele habilidosamente serve um propósito dramático de definir o gosto de Hamlet como qualquer coisa exceto inculto.

            Podemos ouvir a própria voz de Shakespeare escondendo-se por detrás de Hamlet? O compromisso vivaz de reforma do teatro, o sólido conselho sobre adequar à ação à palavra, etc., soam tão irrepreensíveis e consideravelmente verdadeiros que nós somos tentados a ver Hamlet como um tipo de porta-voz do autor. O apelo para audiências sofisticadas é talvez consistente com os objetivos da companhia de atuação de Shakespeare, cujos valorosos convites para atuar na corte, e que conforme passava-se a primeira década do século dezessete escolhia cada vez mais atuar indoor, no Teatro Blackfriars, perante audiências cortesãs e sofisticadas. Ao mesmo tempo, parte do gênio de Shakespeare era, e é, que ele sabia como agradar dos reis aos bobos. O discurso em Hamlet sobre os propósitos e estilos artísticos da arte dramática deve, talvez, ser considerado na luz do debate na qual Hamlet é um falante particularmente eloquente.

            Geralmente, Shakespeare teve a reputação, em seus próprios dias e nas gerações futuras, de ser um escritor de viés mais popular e romântico, do que o estilo preferido pelos neoclassicistas na Inglaterra e no Continente, especialmente em França e Itália. Apesar de Shakespeare não expor suas próprias preferências em muitas palavras, sua prática literária confirma à impressão geral. Ele não mostra consistente consideração pelas chamadas unidades de tempo, lugar e ação, que eram partes tão essenciais da tradição crítica neo-Aristotélica. A Comédia dos Erros (cerca de 1589-94), certamente, segue uma estrutura de cinco atos como aquela de sua principal fonte, o Menaechmi de Plauto, ou Gêmeos. Sua ação ocorre principalmente dentro ou perto da casa de Antífolo de Éfeso, assim como numa rua e um monastério próximo. Os Cortesãos habitam na vizinhança. Uma entrada “da baía” (4.1.84) e saída “para o monastério” e “para a Abadessa” (5.1.37,282) reforçam à impressão da localização de uma rua simples na cidade de Éfeso. A última ação dura somente um dia; o enredo é simples. Shakespeare evidentemente foi um aprendiz da tradição clássica nesta peça primitiva. Ele certamente sabia o que eram as unidades. Ele seguiu-as bem na A Tempestade, o coroamento de sua carreira com um dramaturgo em 1611 ou perto disso. Sua ação é limitada à ilha e a algo menos do que os “dois dias” os quais Próspero promete libertar Ariel (1.2.301-2, 424-5); aparentemente, a história inteira desdobra-se em aproximadamente “três horas” (5.1.136, 188, e 225; veja também 1.2.241 e 5.1.4-5). A história do que se deu por volta de “doze anos” atrás em Milão (1.2.53), quando Miranda era um bebê, é contada em estilo neoclássico adequado para um flashback. De fato, A Tempestade usa enredos múltiplos, especialmente em seu ridiculamente cômico subenredo da conspiração de Calibã, Stéfano e Trínculo, mas o todo continua graciosamente unificado.

Por outro lado, Antônio e Cleópatra (1606-7) move-se por todo o Mediterrâneo médio e oriental, de Roma ao Egito e novamente de volta, assim como para Medina na Sicília (2.1), Misenium, perto de Nápoles, no sul da Itália (2.6), um local no Oriente Médio perto do nordeste do Irã dos tempos modernos (3.1), Atenas (3.4) e Actium, no noroeste da costa da Grécia (3.7-10). Nem todas essas localidades são nomeadas especificamente na peça, mas os grandes movimentos geográficos são essenciais à história. A passagem do tempo, apesar de não registrado em datas específicas, estende-se do encontro de Antônio e Cleópatra no Rio Cydnus no sudeste da moderna Turquia, em 41 a.C, até a derrota deles na batalha de Actium, em 31 a.C, e a morte de ambos no Egito no próximo ano. A peça é composta por quarenta e três cenas separadas, se por “cenas” queremos dizer de sequências de ação marcadas por um palco sem elementos cênicos. Algumas, durante à batalha de Actium, são breves. Algumas das peças históricas de Shakespeare não são menos épicas em suas reviravoltas cronológicas. As três peças sobre Henrique VI estendem-se cumulativamente da morte de Henrique V em 1422 àquela de Henrique VI em 1471, e move-se por toda Inglaterra e França; somente em 1 Henrique VI, a ação ocorre em Orleans, Auvergne, Rouen, Paris, Bordeaux, Angiers e Anjou, assim como em Londres e Westminster. A multiplicidade da ação é uma marca registrada das peças históricas.

Mesmo nas tragédias organizadas mais concisamente, tempo e localidade não obedecem às restrições neoclássicas. O enredo de Hamlet deve dar tempo para Hamlet ser posto num navio rumo à Inglaterra, evadir seus acompanhantes ao embarcar num navio pirata durante a luta do ataque dos piratas, e fazer seu caminho de volta à corte Dinamarquesa depois de ter trocado às instruções do pacote diplomático de Rosencrantz e Guildenstern, que seguem seu caminho à Inglaterra (4.6.15-29, 5.2.12-25). Otelo muda a localização de Veneza, no ato 1, para Cyprus até o final da ação – uma impropriedade dramática de acordo com a prática neoclássica que Giuseppe Verdi resolveu em seu Otello (1887) ao começar sua ópera em Cyprus, muito como John Dryden tornou clássica sua versão de Antônio e Cleópatra, entitulada Tudo por Amor (1678), ao localizar a peça inteira no Egito e contando toda a história anterior através das recordações dos personagens. Rei Lear move-se da corte Inglesa para à Escócia (Albany) e então para Gloucestershire e Dover, num período de alguns meses pelo menos e com o emprego (raro na tragédia) de um enredo duplo. A ação de Macbeth deve dar tempo, seguindo o assassinato de Duncan, para a desafeição crescer perante o cada vez mais tirânico reinado de Macbeth e para um exército de resistência organizar-se com suporte Inglês.

Um motivo geográfico comum das comédias românticas é uma jornada, usualmente de alguma civilização central para um mundo silvestre ou mágico, onde estranhas transformações podem ocorrer. Os jovens amantes de Sonho de uma Noite de Verão escapam da dura lei Ateniense para a floresta ou bosques, onde permanecem fascinados pela mágica das fadas até à ação final na corte do Duque Teseu. Os Dois Cavalheiros de Verona oscila entre Verona, Milão e uma floresta em Mântua repleta de salteadores. Rosalinda e Célia, em Como Gostais, escolhem o banimento da corte hostil do Duque Frederick a uma mais amigável Floresta de Arden, que pode ser localizada em França (Ardenne), ou em Warwickshire, ou em um mundo da imaginação do artista. Bassânio, em O Mercador de Veneza, viaja do mundo legalista de Veneza para Belmont, que o próprio nome indica uma beleza quieta e um retiro do mundo Veneziano do conflito comercial. Essas são jornadas para o que Northrop Frye rotulou como o “mundo verde” da comédia romântica shakespeariana. As relocações geográficas trazem consigo uma perspectiva visionária do mundo das fadas, pastores, goblins e até mesmo monstros. Os últimos romances de Shakespeare retornam enfaticamente ao motivo da jornada imaginativa: Péricles perambula por todo o Mediterrâneo, Cimbelino viaja da Inglaterra para Roma e ao montanhoso Gales e O Conto do Inverno move-se da Sicília ao fantasioso mundo pastoral da Boêmia. Mesmo A Tempestade, apesar de localizada por toda a ilha, encarna essa mesma jornada numa narrativa que justapõe o sombrio mundo político de Milão e Nápoles com uma ilha desabitada existente apenas na imaginação do artista nessa peça.

Uma forma de ganhar uma perspectiva na jovial desconsideração de Shakespeare pelas unidades clássicas é compará-lo com Ben Jonson, e com o que Jonson falou sobre Shakespeare. Apesar de Shakespeare não falar nada para os arquivos, Jonson raramente é silencioso perante Shakespeare. Podemos reconstruir uma conversa entre esses dois homens à partir das várias notas de Jonson e das não expressas mas implicadas persuasões literárias de Shakespeare, como vistas em suas obras? Jonson era o mais novo dos dois, nascido em 1572, oito anos depois de Shakespeare. Jonson sobreviveu a Shakespeare vinte e dois anos, morrendo em 1637. Jonson assim tem uma ampla oportunidade de refletir sobre as realizações de Shakespeare como um dramaturgo e poeta. Ademais, Jonson clamou para si o papel de principal crítico literário e erudito da Inglaterra. Suas conversas com William Drummond of Hawthornden em 1618 são apimentadas com pronunciamentos sobre escritores da Inglaterra, incluindo Sir Philip Sidney, Edmund Spenser, Samuel Daniel, Michael Drayton, John Donne e Shakespeare. Nos materiais introdutórios a suas próprias peças e em outros escritos, Jonson enunciou uma abrangente teoria neoclássica para julgar às realizações literárias de sua geração. Ele próprio era instruído em Latim e apenas numa extensão menor em Grego.

O mais generoso elogio de Jonson a Shakespeare como um escritor está em seu tributo “À memória de meu querido, o autor, Mr. William Shakespeare, e o que ele nos deixou”, publicado na primeira edição completa das peças de Shakespeare, o chamado Primeiro Fólio, em 1623. Jonson livremente confessa que os escritos de Shakespeare “são tais / Que nenhum homem ou musa pode elogiar muito”. Shakespeare é a “alma da época”, “O aplauso, deleite, a maravilha de nosso palco”. Jonson não irá alojar Shakespeare mesmo entre os maiores poetas da Inglaterra, nomeadamente Chaucer, Spenser e Francis Beaumont; Shakespeare está só numa categoria. Ele é “um monumento sem uma tumba”, isto é, não precisando de nenhum monumento funeral para garantir sua imortalidade, pois sua grandeza irá resistir “enquanto seu livro viver / E nós tivermos argúcia para ler e elogios para dar”. Em seus escritos Shakespeare de longe supera John Lyly ou o “esportivo Kyd” ou “a poderosa linha de Marlowe”. Para aumentar o padrão de comparação ainda mais, Jonson compara Shakespeare favoravelmente, como um escritor de tragédia, com os tragediógrafos gregos Ésquilo, Eurípides e Sófocles, e também com os romanos Marcus Pacuvius (cerca de 220-130 a.C), Lucius Accius (170-cerca de 86 a.C, um mais jovem contemporâneo de Pacuvius) e “ele morto de Cordova”, isto é, Sêneca, o Jovem (cerca de 4 a.C à 65 d.C), o mais conhecido dos dramaturgos Latinos trágicos na Renascença Inglesa. Para a comédia, Jonson tem um elogio ainda maior; Shakespeare não tem paralelos. “Deixe tu sozinho, na comparação / De tudo o que a insolente Grécia ou a arrogante Roma / Produziu, ou desde que das cinzas delas vem.” Mesmo o melhor dos escritores cômicos antigos, o Grego Aristófanes e os Romanos Terêncio e Plauto, não agradam mais plateias, mas estão “antiquados e abandonados” depois do fenomenal sucesso de Shakespeare. O Shakespeare de Jonson é assim “não de uma época, mas para todo o tempo”, o “Doce Cisne de Avon” que será exaltado como uma constelação celeste, brilhando como a “estrela dos poetas”, brilhando “influência” para “repreender ou encorajar o exausto palco”.

Por todo esse fervor no elogio, e sua nota de hipérbole que é apropriada a um poema comemorando alguém que está agora morto e definitivamente publicado, essa apreciação por Jonson está escrita de um ponto de vista neoclássico e, às vezes, crítico. Jonson ele mesmo está extraordinariamente presente no poema como um ditador literário. Ele aceita como sua a tarefa de julgar Shakespeare no rol dos grandes escritores da antiguidade e do presente. O cânon é intelectual e clássico. Implicitamente, Jonson parece maravilhar-se com o fenômeno de um escritor de Stratford-upon-Avon, o “Cisne de Avon”, que não apenas despontou entre a classe dos imortais mas os superou a todos, pelo menos na comédia. A observação é, ao mesmo tempo, uma marca de orgulho nas realizações da Inglaterra ao rivalizar os antigos (Triunfo, minha Bretanha, você tem um para mostrar / O qual todas as cenas da Europa mostrarão homenagem”) e um reconhecimento que a Inglaterra tem tido um caminho árduo para alcançar seus competidores. Jonson exibe sua própria cultura ao citar antigos dramaturgos que somente os eruditos conheceriam alguma coisa. Mesmo os escritores trágicos Gregos eram pouco conhecidos ou traduzidos na Inglaterra da Renascença, e Shakespeare quase certamente não os leu. Nem ele se refere a Pacuvius ou Accius. Mesmo o mais conhecido Sêneca pode ter alcançado a ele principalmente através das peças de Thomas Kyd e outros dramaturgos do palco popular; a única menção a Sêneca em toda a obra de Shakespeare é encontrada na expressão tola de Polônio que “Sêneca não poderia ser tão pesado, nem Plauto tão leve” (Hamlet, 2.2.400-1). As duas referências de Shakespeare a Aristóteles referem-se a escritos sobre ética e filosofia moral (A Megera Domada, 1.1.32, e Tróilo e Créssida, 2.2.166-7); nenhuma evidência aponta que ele tenha lido à Poética.

O poema comemorativo de Jonson é, assim, dirigido por um homem de imensa erudição para um que foi de algum modo autodidata, sem treinamento clássico. Jonson não consegue conter-se de observar que Shakespeare tinha um “pequeno Latim e menos Grego”; esse fato torna suas realizações como poeta e dramaturgo ainda mais surpreendentes. A observação também chama a atenção ao fato que Jonson ele próprio tinha em abundância o Latim e o Grego. Mesmo a concessão de Jonson que Shakespeare não era um mero filho da Natureza, ressalta o ponto que Shakespeare teve que aprender seu ofício pela aplicação diligente, como todo bom escritor deve fazer: “ele / Que deseja escrever uma linha viva deve suar” com vistas a “atingir o segundo calor / Sobre a bigorna das Musas”. Jonson insiste que “um bom poeta é feito, assim como nasce”. Jonson era sensível à acusação que ele trabalhou tão diligentemente em seus escritos; por isso que o Prólogo de seu Volpone (1605-6) é rápido em observar “É sabido que em cinco semanas o escreveu / Com suas próprias mãos” (16-17). Shakespeare, contrariamente, tinha uma reputação do fluxo fácil de sua escrita (veja abaixo). Adequadamente, Jonson faz um esforço consciente no poema comemorativo do Fólio para reapresentar Shakespeare o máximo que pode como seu [Jonson] próprio modelo de verdadeiro poeta.

O poema de Jonson reconhece somente dois tipos de drama: tragédia e comédia. O ator trágico pisa o palco com sua “bota” (o “coturno”) ou uma bota de amarras alcançando o meio ou mais até o joelho, simbolizando a alta seriedade do drama que retira suas linhas de histórias das lendas míticas sobre os azares dos príncipes. O ator cômico usa a “meia”, um sapato baixo ou sandália simbolizando o baixo status da comédia e seu engajamento com o burlesco do dia a dia dos plebeus. (O gênero conhecido como a peça Sátira não ocupa lugar nessa classificação dual.) Historicamente, a distinção entre os dois gêneros de drama foi plenamente delineada no palco clássico antigo: comédias, com seus coros de talvez vinte e quatro membros e uma estrutura episódica característica, eram apresentadas em Atenas em festivais da grande Dionysia e à Lenaea, enquanto as tragédias empregavam um coro menor e uma estrutura de performance mais firmemente organizada, também para a grande Dionysia e à Lenaea, porém como eventos separados. Os prêmios iam para a melhor comédia e para a melhor tragédia. Essa codificação das categorias continuou nos escritos de Aristóteles e da tradição Aristotélica. Jonson mede e elogia as realizações de Shakespeare nesses termos duais. A divisão em dois gêneros era comum na Renascença. Francis Meres, em seu Palladis Tamia, 1598, elogia Shakespeare como segue: “Como Plauto e Sêneca são considerados os melhores da comédia e tragédia entre os Latinos, assim Shakespeare entre os Ingleses é o mais excelente em ambos os tipos para o palco.”

Mas esse sistema classificatório adequa-se ao cânon de Shakespeare? Na taxonomia de Meres, as peças sobre Henrique VI são listadas como tragédias, assim como Ricardo II, Ricardo III e Rei João. Há explicação para o caso dessas três últimas peças serem classificadas como tragédias, certamente: Ricardo II era chamada “A Tragédia do Rei Ricardo o segundo” em sua folha de rosto de 1597 e Ricardo III era similarmente intitulado quando foi pela primeira vez publicada no mesmo ano, apesar de também encontrarmos títulos no Fólio como: “A Vida e Morte de Ricardo o Segundo” e “A Vida e Morte de Rei João” que coloca mais ênfase na natureza inconclusiva da história. Ricardo II é sobre a queda de Ricardo, mas é também sobre a elevação de Henrique Bolingbroke, Rei Henrique IV. As peças sobre Henrique IV desafiam à classificação bipartida da tradição clássica ainda mais inquisitivamente. Em quarto elas eram conhecidas como “A História de Henrique o Quarto” e “A Segunda Parte de Henrique o Quarto” em 1598 e 1600; no Fólio de 1623 a primeira parte é chamada “A Primeira Parte de Rei Henrique o Quarto”. Hotspur claramente morre naquela peça, mas, ao todo, a história é uma de sucesso para Henrique IV e para seu filho, o futuro Henrique V. Mesmo Falstaff é bem-sucedido na conclusão de 1 Henrique IV, e a peça ela própria contém algumas das melhores escritas cômicas de Shakespeare.

O Fólio de 1623 está dividido em três grupos: não comédias e tragédias, mas comédias, histórias e tragédias. Dez peças de um total de trinta e seis pertencem a um grupo chamado histórias. Cumulativamente, elas dramatizam a história da Inglaterra durante o reinado de Rei João, no início do século treze, e então continuamente do reinado de Ricardo II no final do século catorze até o reinado de Henrique VIII e o nascimento da futura Rainha Elizabeth em 1533. O que é a peça histórica como um tipo de gênero? Em um sentido seu significado parece claro o suficiente no “Catálogo” do Fólio, ou no índice: essas dez peças são todas sobre história Inglesa. Rei João, o monarca menos conectado com os outros cronologicamente, presumivelmente capturou à atenção de Shakespeare por causa da ambiguidade da reivindicação de João ao trono Inglês e por causa de suas disputas com a igreja Católica; as outras nove peças contam à história da Inglaterra durante as guerras civis que eventualmente levaram ao estabelecimento da dinastia Tudor. Mas o que isso diz sobre gênero? O que é a peça histórica estruturalmente e formalmente? Por que Macbeth e Rei Lear não são classificadas como peças históricas? Ambas lidam com reis da história Britânica ou de história lendária. O que significa que algumas peças de história Inglesa possam ser classificadas como comédias e outras como tragédias?

A peça de história Inglesa, então, é uma anomalia em termos das definições clássicas de gêneros dramáticos. Ela também representa uma das maiores realizações de Shakespeare. Ele teve um importante papel ao inventar o gênero, apesar de conhecer e fazer uso de alguns poucos experimentos anteriores de outros artistas, incluindo o anônimo As Famosas Vitórias de Henrique V (1583-8) e O Turbulento Reinado de Rei João (cerca de 1587-91). Ele foi claramente o praticante principal na escrita de peças de história Inglesa ao longo dos anos 1590. Sua abordagem no que constitui uma peça de história Inglesa é inteiramente pragmática. Ele escreveu essas peças como sequências; a forma e o conteúdo desenvolveram-se conforme ele avançava. Quando ele começou a escrever sobre Henrique IV e seu filho, ele pode ter planejado uma peça única até à morte do pai; se assim o foi, ele mudou de ideia conforme a escrevia, descobrindo que ele tinha muito o que dizer sobre Falstaff e Hal, e assim temos a história de Henrique IV em duas partes. A tradição conta que ele tirou um tempo para escrever uma peça (As Alegres Comadres de Windsor) sobre Falstaff apaixonado, por ordem da Rainha Elizabeth; disso não podemos ter certeza, mas ela assevera à reputação que Shakespeare detinha como improvisador. Ele parece que não teve compulsão em observar os gêneros da tradição clássica, tanto quanto não sentiu-se constrangido pelas chamadas unidades de tempo, lugar e ação. Uma peça bem-sucedida para ele parece ter sido qualquer coisa que funcionasse no palco para uma plateia.

Quando Polônio anuncia a Hamlet que chegaram atores à Elsinore, ele os elogia pelos muitos gêneros os quais eles distinguem-se. Eles são, Polônio diz, “Os melhores atores do mundo, tanto para tragédia, comédia, história, pastoral, pastoral-cômica, histórico-pastoral, trágica-histórica, trágica-cômica-histórica-pastoral, cena indivisível ou poema ilimitado” (Hamlet, 2.2.396-400). Shakespeare está rindo de si mesmo? Notamos que a lista começa com “tragédia, comédia, história”, as três categorias que serão posteriormente empregadas na publicação do Fólio de 1623. Ambas “pastoral” e “pastoral-cômica” são termos que podem ser aplicados a Como Gostais ou O Conto de Inverno. “Trágica-histórica” adequadamente descreve peças como Júlio César e Antônio e Cleópatra que perfazem grandes tragédias da história. Se “cena indivisível” significa uma peça que observa à unidade de lugar, então A Comédia dos Erros e A Tempestade, entre outras, adequam-se à descrição. Se “poema ilimitado” refere-se às peças que desconsideram às unidades de tempo e lugar, os exemplos no cânon de Shakespeare são quase – bem – ilimitados. Polônio é um mau crítico literário para fiarmo-nos em comentários perspicazes, mas sua miscelânea de categorias dramáticas parece instrutiva quando pensamos sobre os tipos do drama shakespeariano.

O rótulo “comédia” cobre um grande número de bênçãos. A comédia romântica sobre jovens apaixonados e suas estranhas aventuras errantes é matéria prima para as peças que Shakespeare estava escrevendo nos anos 1590; mas então, por volta do tempo de Hamlet, encontramos uma configuração de peças tão visivelmente discrepantes das normas da comédia romântica, que os críticos procuraram novos rótulos. O nome que mais prevalece para essas novas formas de comédias hoje é “comédia problema” ou “peça problema”. Medida por Medida (1603-4) descreve-nos uma Viena tão desorientada na devassidão sexual que o Duque ausenta-se da cidade, deixando no comando um deputado, Ângelo, que logo descobre que sua própria lascívia furiosa por uma jovem mulher determinada em ingressar num convento (Isabella) é tão ingovernável que ele a ameaça com a execução de seu irmão Cláudio com uma acusação por fornicação ao menos que ela consinta em fazer sexo com o deputado. A aparente concordância dela toma forma ao substituí-la por uma mulher que Ângelo havia rompido alguns anos atrás. Esse “truque da cama” resolve o problema, mas a um custo de meios eticamente duvidosos. Várias cenas da peça passam-se na prisão. Entre os mais altivos personagens estão os alcoviteiros, as meretrizes e clientes do antro criminoso de Viena. Mesmo os casamentos no final são bizarros.

Assim é o caso também em Tudo Está Bem Quando Termina Bem (cerca de 1601-5). Essa peça apresenta um jovem aristocrata, Bertram, que, desdenhosamente relutante em obedecer à ordem do Rei para que se case com uma jovem mulher de uma classe social inferior (Helena), que salvou a vida do Rei, foge para as guerras na companhia de um interessante malandro chamado Parolles. Helena, como Isabella em Medida por Medida, é motivada pelo expediente eticamente duvidoso do truque da cama: quando Bertram persegue a filha de uma viúva durante sua campanha militar em Florença, Helena arranja com a viúva para tomar o lugar da filha (Diana) na noite do planejado acordo sexual secreto. Bertram aprende uma lição sobre a obrigação que os homens devem sentir ao reconhecerem às consequências de suas agressões sexuais, e tudo termina bem, como o título da peça promete, mas não sem ter levantado questões problemáticas sobre a falha humana. Como uma comédia a peça é incomum, pela atenção simpática que dá a figuras mais velhas como a mãe de Bertram e “um velho senhor” chamado Lafew, que repetidamente expressam seus desapontamentos com as pessoas jovens e especialmente com jovens homens. Essa não é uma comédia sobre os inebriantes prazeres e riscos do amor jovem.

Ambas Medida por Media e Bem Está estão incluídas entre as comédias no Fólio de 1623, desse modo expandindo nosso conhecimento do que Shakespeare poderia ter incluído sob aquele termo flexível. Tróilo e Créssida quebra o molde inteiramente. Seu local no Fólio de 1623 é inteiramente anômalo: ela está entre as histórias e as tragédias, quase inteiramente sem paginação, e não é listada no “Catálogo” ou índice. Evidentemente sua inclusão na impressão foi posterior, depois de uma tentativa abortada de imprimi-la depois de Romeu e Julieta, que a colocaria entre as tragédias. A peça é discutivelmente comédia ou história ou tragédia, ou todas as anteriores. É uma comédia sombria, no espírito de suas companheiras “peças problemas”, apresentando um par de amantes o qual o breve caso termina abruptamente por causa de uma guerra absurda entre Gregos e Troianos e pelas falhas dos próprios amantes. É uma peça histórica pois faz a crônica da mais famosa – e infame – guerra da história. É uma tragédia em sua dramatização das mortes de Pátroclo e especialmente Heitor. Sobretudo, talvez, é uma sátira. Suas vozes córicas, especialmente àquelas de Pândaro e Tersites, aponta-nos em tom malicioso como “a lascívia come-se a si mesma” (5.4.35). Como Tersites diz, como forma de sarcástica caracterização da guerra, “Todo o argumento é uma meretriz e um corno, uma boa disputa para atrair invejosas facções e sangrar até a morte” (2.3.71-3). Tróilo e Créssida parece não ter sido um sucesso no palco de seus próprios dias, o que é bem possível, pois foi percebida como muito vanguardista.

As últimas comédias de Shakespeare estendem ainda mais os limites do que aquele termo pode significar. Péricles (cerca de 1606-8) não foi incluída no Fólio de 1623, talvez porque os editores sensivelmente consideravam-na parte romance e parte tragicomédia: “romance” no sentido que ela toma seu herói de muitas aventuras “românticas” do tipo das encontradas em várias fábulas de viagens para terras longínquas, terminando finalmente em reunião com os familiares, e “tragicomédia” no sentido de uma mistura de elementos trágicos e cômicos. Do lado trágico há a aparente morte da esposa de Péricles, Thaísa e os encontros ameaçadores de sua filha Marina com madrastas perversas, piratas e cafetões; do lado cômico estão as deliciosas cenas de bordéis e os momentos de afetuosa felicidade quando pai, filha e esposa finalmente estão juntos novamente.

Cimbelino (cerca de 1608) é discutivelmente outra tragicomédia, tão próxima à tragédia, de fato, que os editores do Fólio de 1623 decidiram imprimi-la entre as tragédias, como a última peça do volume. É possível ver o porquê de os editores a colocarem ali. Não somente é uma peça muito grande, em terceiro lugar após Hamlet e Ricardo III, e passa-se numa Bretanha mítica e pré-histórica no viés de Rei Lear. Como Otelo, habita por algum tempo nas agonias do ciúme sexual. O impetuoso ciúme de Póstumo Leonato na aparente infidelidade de sua esposa Imogênia, e então o remorso suicida dele ao supor que foi bem-sucedido em tê-la assassinado, são as matérias do drama trágico do qual ele é salvo somente pelo auxílio providencial do romance tragicômico. A morte grotesca por decapitação do indesejado cortejador de Imogênia, Cloten, e a confissão cheia de horrores de leito de morte da mãe de Cloten, a Rainha, são o tipo de coisa que alguém espera encontrar em uma tragédia. Ainda que elas encontram-se aqui.

Os ataques de ciúmes de Leontes contra sua rainha inocente, Hermione, em O Conto de Inverno (cerca de 1609-11), são similarmente trágicos em suas intensidades, e com dolorosos efeitos. Novamente somos confrontados com a morte numa peça publicada entre as comédias. O jovem príncipe, Mamillius, está tão devastado pelo julgamento público de sua mãe por adultério que ele morre de angústia e choque. Hermione também aparenta morrer pelo seu suplício e, de fato, nós como plateia somos levados à acreditar que ela realmente está morta. Leontes está emocionalmente inconsolável com culpado remorso quando compreende muito tarde o que fez. O resultado é que a primeira metade dessa peça seria completamente trágica, se não fosse algumas dicas que tudo irá eventualmente ficar bem. A mudança entre as duas metades da peça é especialmente marcada. O Tempo como um Coro nos leva dezesseis anos à frente e para o mundo pastoral da Boêmia onde Perdita, abandonada pelo rei seu pai a um destino cruel de ser deixada numa praia distante, cresce entre pastores e pastoras. A atmosfera festiva de primavera da Boêmia não poderia ser mais diferente do que o mundo decaído da Sicília de Leontes. Aqui na Bohemia o romance floresce entre Perdita e o principesco filho (Florizel) de um amigo afastado de Leontes, Polixenes. Eventualmente os jovens amantes vão para a Sicília e para a reunião entre pai e filha, e então, em uma das maiores surpresas teatrais de Shakespeare, a uma reunião com a supostamente morta Rainha Hermione.

O Conto de Inverno é assim uma ilustração distintiva do que significa uma “tragicomédia”. Ela encarna uma dramaturgia que Shakespeare compartilhava com outros dramaturgos de Londres na última metade da primeira década do século dezessete, notavelmente John Fletcher. Plateias em ambos os teatros públicos e indoors poderiam estar buscando o tipo de realização meta-teatral que encontramos nessas peças. O Conto de Inverno, saltando uma geração inteira no tempo, tão característico do gênero, relembra um tratamento similar do tempo em Péricles (na qual à Marina deve ser permitido crescer de um bebê recém-nascido a uma jovem mulher na idade de casar) e em A Tempestade, onde o intervalo de doze anos desde à infância de Miranda, é apresentado através da recordação narrativa, em vez de uma encenação sequencial, assim que, em relação a isso, A Tempestade é mais uma comédia romântica no viés de O Mercador de Veneza ou Muito Barulho por Nada. Mesmo nessas comédias românticas encontramos elementos de tragicomédia: no Mercador, a própria vida de Antônio está aparentemente em risco na faca vingativa de Shylock, e em Muito Barulho, a falsa acusação de traição imputada contra Hero é séria o bastante para ameaça-la a comprometer a vida a um convento religioso. As assim chamadas tragicomédias posteriores são diferentes em grau das primeiras comédias românticas, não realmente em tipo. Bem Está, apesar de ser usualmente classificada como uma peça problema, contém elementos tragicômicos em seu lamento pelo estado decaído da natureza humana e sua enigmática e quase mágica resolução. Como um escritor cômico, Shakespeare resiste à classificação fácil a quaisquer “regras” clássicas.

As ideias de Shakespeare sobre a comédia, então, parecem tão variadas como as cores do arco-íris. E sobre a tragédia? Aqui novamente encontramos uma resoluta recusa da parte de Shakespeare em conformar-se com qualquer tipo de partido. Um exemplo de sua aparente irregularidade intencional é a inclusão da comédia em suas tragédias. De acordo com os modelos clássicos, essa é uma quebra do decoro, e como resultado, Shakespeare tem sido frequentemente atacado com violência pelos eruditos com formação clássica quando, por exemplo, ele traz ao palco em Otelo vários músicos palhaços que com mau gosto comparam o “vento” dos seus instrumentos com a flatulência, e coisas similares, justamente quando Iago nos colocou em alerta que ele irá envenenar à mente de Otelo com pensamentos ciumentos sobre sua esposa (3.1.1-31). Num viés similar, muitos críticos questionaram à sabedoria de introduzir um porteiro bêbado em Macbeth para fazer troça dos fazendeiros gananciosos, tecelões Ingleses desonestos, e assim por diante, apenas alguns momentos depois de Macbeth ter assassinado seu convidado régio (2.3.1-20). O rapaz bufão que traz as víboras ocultas numa cesta de figos para Cleópatra quando ela prepara-se para morrer (Antônio e Cleópatra, 5.2.241-79) é outro exemplo. Clichês sobre um “alívio cômico” dificilmente responderão às sérias objeções: Por que a tragédia necessita de um alívio cômico? Por que quebrar o ânimo da ansiedade histérica e da culpa? Ainda que um propósito artístico possa usualmente ser intuído. O porteiro de Macbeth troça sobre temas sérios de “equívocos” diabólicos (uma prática Jesuíta de justificar uma mentira ao guardar na mente uma reserva secreta de algum sentido na qual à expressão poderia ser verdadeira) e fogos infernais, tudo isso nos relembra do pré-concebido destino de Macbeth para “ir pelos caminhos das prímulas, até a eterna fogueira” (18-19). A conversa de Cleópatra sobre “o belo verme do Nilo” que “mata e não dói” é altamente informativo do estado da mente dela conforme se prepara para cometer suicídio da forma menos dolorosa possível. Se esses argumentos de relevância nessas passagens são sempre convincentes ou não, o ponto aqui é que Shakespeare parece não encontrar problema ao misturar comédia com tragédia.

Então, também, Romeu e Julieta contém algumas das mais deliciosas cenas engraçadas que Shakespeare já escreveu. Talvez a peça é um “comi-tragédia”; seu final é muito triste. Hamlet é brilhantemente engraçado em suas tiradas satíricas dirigidas à Polônio como um peixeiro, ou dos destinos irônicos dos advogados e grandes proprietários de terras que os esqueletos irão, ao seu tempo, terminar nas mãos de um coveiro. “Por que aquele não pode ser o crânio de um advogado? Onde está sua essência agora, suas sutilezas, seus casos, suas estabilidades e seus truques? (Hamlet, 5.1.98-100). Cleópatra em Antônio e Cleópatra compete com Falstaff como uma das mais fascinantes criações cômicas de Shakespeare. As cenas nas quais, durante as longas ausências de Antônio, ela consola-se lentamente ao torturar o pobre Mardian sobre o fato de este ser eunuco, ou obscenamente imaginar o que seria ser um cavalo e assim “carregar o peso de Antônio” (1.5.22), ou voar num frenesi contra o mensageiro que a trouxe novidades sobre o casamento de Antônio com Otávia e então ouvir complacentemente quando o informado mensageiro reporta-a às características não atraentes da rival, são simplesmente deliciosas. Se Shakespeare não hesita ao introduzir elementos trágicos nas comédias românticas e tragicomédias, o mesmo é verdade ao reverso, sobre o uso de elementos cômicos na tragédia. Seus trocadilhos notavelmente inventivos, o qual o Dr. Johnson uma vez chamou de “fatal Cleópatra” tentando Shakespeare para longe da alta arte, é talvez outro exemplo de sua visão inclusiva da interconexão dos gêneros dramáticos que poderia encontrar um propósito ocasional para o riso na tragédia.

Abordagens puristas clássicas à tragédia shakespeariana procuraram diligentemente pela falha trágica nos heróis trágicos de Shakespeare. Em último caso, a Poética de Aristóteles define o mais alto tipo de tragédia como aquela que um nobre e valoroso protagonista é diminuído não simplesmente pelo destino, mas pela a hamartia, variadamente definida como falha trágica ou, mais apropriadamente, erro trágico. (A palavra em Grego antigo vem de hamartanien, significando perder a marca, errar.) Aristóteles está pensando sobretudo no Édipo Rei de Sófocles como o exemplo perfeito do que ele quer dizer. Mesmo aqui o desacordo crítico persiste como o que a hamartia de Édipo pode ser – orgulho, angústia, blasfêmia, ou o erro fatal de assassinar seu pai e casar-se com sua mãe, atos decretados pelo destino como inevitáveis. Em todo caso, a consequência para a tradição crítica neo-Aristotélica é que hamartia cresceu em importância como um dos componentes principais do herói trágico. Os intérpretes aristotélicos na Europa Ocidental estavam aptos para ver a hamartia de uma perspectiva Cristã como algo próximo do pecado. Isso é quase certamente uma leitura incorreta de hamartia, que tem a ver com poluição ou violação de maneiras ofensivas aos deuses em vez de uma culpa pecaminosa, mas as formas dos Europeus Ocidentais de leitura de Aristóteles na Idade Média eram comprometidas em buscar por equivalentes culturais, e a Europa Ocidental era, e ainda é, geralmente, uma cultura culpada.

Externamente ao menos, Otelo e Macbeth parecem incorporar um dispositivo estrutural que relembra à hamartia. Otelo é um nobre Mouro de extraordinária relevância, devotado ao amor por Desdêmona, assim como esta o é por ele. Seu erro trágico parece ser um ciúme estimulado com dificuldade, mas aterrorizante em seu poder uma vez desperto. Ele no final aceita completamente sua responsabilidade por ter assassinado uma esposa inocente por raiva ciumenta; ele foi provocado a isso pelo talentoso e astuto tentador, Iago, mas Otelo sabe que a culpa repousa fundamentalmente em si mesmo. Ele é, em sua análise final, “alguém que amou não sabiamente mas muito”, “alguém não facilmente ciumento mas, sendo forjado, / Perplexo ao extremo” (5.2.354-6). Ele pede somente que os demônios possam chicoteá-lo “Da possessão desse espetáculo divino”, soprando-o “sobre os ventos”, assando-o “no enxofre” e lavando-o “em profundos poços de líquido fogo” (286-9). O significado da tragédia dele parece inteligível, e é de fato próxima à ideia de Aristóteles que a tragédia é mais significante quando encontra uma conexão entre causa e efeito, entre a má sorte e o sofrimento. Otelo merece pelo menos a punição de ter perdido Desdêmona para sempre através de sua própria ação ignorante. A ideia é coberta com valores Cristãos aqui; Otelo e Emília ambos consideram Iago como um tipo de “demônio” (5.2.135, 294-5) que prevaleceu sobre Otelo através de tentação insidiosa e destruiu por um tempo sua fé na bondade de Desdêmona. Que Otelo recupere sua fé na bondade dela também dá significado a essa tragédia; Otelo destruiu sua própria felicidade e vê que ele deve sofrer justamente por isso, mas também vê que a bondade de Desdêmona é eternamente verdadeira. Ela é, como Emília diz, “a mais angelical” (134).

Macbeth é similarmente eloquente nas importantes consequências espirituais do assassinato que contempla e então comete, e em seu próprio fardo irresistível de culpa. Mesmo se essa tradução em termos Cristãos perde o foco no significado Grego de hamartia, a associação entre causa e efeito não é menos proeminente. “e a Justiça / Conduz o cálice que envenenamos / Aos nossos lábios” (1.7.10-12), ele considera em solilóquio quando o momento dele assassinar o Rei Duncan aproxima-se rapidamente. Duncan está no castelo de Macbeth em dupla confiança: como o rei a quem Macbeth deve lealdade e como convidado a quem Macbeth deve uma obrigação sagrada como hospedeiro e guardião.

                       Duncan, além do mais, tem ostentado

                       Seu poder com humildade, e vivido

                       Tão puro no alto posto, que seus dotes

                       Soarão, qual trombeta angelical,

                       Contra o pecado que o destruirá;

                       E a Piedade, nua e recém-nata,

                       Montada no clamor, ou os querubins

                       A cavalgar os correios dos céus,

                       A todo olhar dirão o feito horrível,

                       Fazendo a lágrima afogar o vento.

                                                                      (Macbeth, 1.7.16-25)

Macbeth está assim totalmente consciente que ele está prestes a cometer um pecado hediondo, contra a decência humana, contra os céus. As únicas coisas impulsionando-o a seguir em frente são sua “Excessiva ambição” (27) e as sugestões das Estranhas Irmãs e sua esposa. Sua hamartia é fácil de identificar e de nomear em termos Cristãos: ela é uma ambição pecaminosa, o mau tentador de Satã ele próprio. Por toda sua maravilhosa complexidade poética, Macbeth parece um caso de crime e punição.

            Outras tragédias de Shakespeare, entretanto, não estão tão abertas para análises neo-Aristotélicas, e sugerem que Shakespeare com frequência pensava à tragédia em termos impressionantemente diferentes. Hamlet é frequentemente (muito frequentemente) analisado como vitimado por sua indecisão: sua suposta hamartia é uma propensão para o atraso. Correto até certo ponto, Hamlet censura a si mesmo por não ter agido mais rapidamente e decisivamente em resposta ao comando do fantasma de seu pai para “Vingar esse proibido e o mais não natural assassinado”. “Apressa-me a sabê-lo”, Hamlet replica, “que eu, com asas tão ligeiras / Como a meditação ou os pensamentos de amor, / Possa arrebatar minha vingança” (Hamlet, 1.5.26-32). Ainda que uma leitura mais abrangente da peça nos encoraja a considerar que essa ação rápida é na maioria das vezes precipitadamente inapropriada, como quando Hamlet mata Polônio nos aposentos de sua mãe, logicamente assumindo que Cláudio devia estar escondido por detrás do arrás quando de fato não o estava. O resultado é uma morte desnecessária que faz Hamlet viajar para a Inglaterra e coloca em movimento todo o final trágico da peça, incluindo o retorno do furioso Laertes para vingar a morte de seu pai. Laertes não hesita, e adequadamente termina sendo o assassino de Hamlet de forma desleal pois Laertes não sabia o suficiente para compreender que o real vilão no caso é Cláudio. Contrariamente, a decisão final de Hamlet em deixar as coisas nas mãos da Providência traz um final mais satisfatório que Hamlet ou qualquer outra pessoa podia planejar: o assassinato de Cláudio, e uma morte nobre para o Príncipe Hamlet, reconciliado com sua mãe no leito de morte e aliviado do fardo de viver num mundo tão problemático. Aqui de fato há “uma consumação / Devotamente desejada” (3.1.64-5).

            Se uma propensão ao atraso não é uma resposta satisfatória para a busca da hamartia de Hamlet, então qual é uma boa resposta? Talvez a melhor ideia é colocar de lado essa questão inteiramente, e pensar em Hamlet em vez disso como um bom homem que deve pagar o preço das corrupções manifestas do mundo. Ele é muito honesto para esse mundo. Quando ele está impaciente e difícil, como frequentemente é o caso, ele o é com aqueles que considera como bobos, como Polônio, ou oportunistas, como Rosencrantz e Guildenstern, ou vilões, como Cláudio. Com sua mãe ele é duro, mas isso porque ele verdadeiramente deseja salvá-la do que vê como os efeitos enfraquecedores da vida pecaminosa dela com Cláudio. Ele está profundamente arrependido pela morte infeliz de Ofélia, e prontamente pede perdão ao irmão dela. Com Horácio ele é um amigo amável e leal. Hamlet finalmente realiza o que seu pai o ordenou, ainda que de uma maneira que o absolve de assassinato a sangue frio. Ele morre, e será enterrado com todos os ritos funerais pertencentes a um soldado, pois, como Fortinbrás diz, ele é um homem confiável, se fosse rei, “Provar-se-ia o mais régio” (5.2.398-400). Horácio oferece a seu moribundo amigo um longo “Boa noite”, adicionando “E o voo dos anjos te cantem até o final!” (361-2). Hamlet é um herói trágico em um mundo que não sabe o que fazer com esses heróis até ser tarde demais, até as corrupções desse mundo terem cobrado seus tributos.

            Romeu e Julieta é outra tragédia que não cede bem a uma insistência categórica num erro trágico. Romeu e Julieta não são nem protagonistas trágicos no sentido Aristotélico normal: eles não têm estatura heroica ou mítica, como Édipo ou Medeia, mas em vez disso são simpáticos, jovens ordinários que se apaixonam como os personagens centrais de uma comédia romântica. Apesar de desesperadamente ansiosos em serem unidos como marido e mulher, qualquer tentativa de encontrar o significado da tragédia deles no ímpeto exagerado é claramente inadequada. O problema deles é que o mundo das amargas rivalidades familiares não permitirá que eles sejam felizes juntos. Mesmo quando seus pais podem estar dispostos a esquecer o feudo Capuleto-Montague, o espírito de vingança é muito forte. Os desentendimentos contribuem para o desastre: podemos entender o porquê de Julieta não poder contar a seus pais que ela casou-se com Romeu. Má sorte e um momento infeliz atuam quando a nota do Frei Laurence ao banido Romeu malogra. Num momento crucial, Romeu detém alguma responsabilidade pela tragédia por causa de sua decisão precipitada de matar Tybalt em vingança pela morte de Mercutio; Romeu sucumbe aos instintos masculinos da vingança de uma maneira que ele rapidamente lamenta. Porém mesmo aqui, alguém dificilmente pode argumentar que essa peça é centrada na hamartia. Em vez disso, como Capuleto diz, Romeu e Julieta são “Pobres sacrifícios de nossa inimizade” (5.3.304).

            Mais exemplos podem ser citados. Rei Lear e Gloucester em Rei Lear são ambos anciões tolos que fazem desastrosas escolhas, mas julgá-los como autores de suas próprias infelicidades é escolher o lado de Goneril, Regan e Edmundo. Os velhos homens são, como Lear diz de si mesmo, “Sou pecador / Contra quem outros pecaram.” (3.2.60). Júlio César faz um certo sentido em termos Aristotélicos, não surpreendentemente, pois ela é baseada na antiga história clássica, mas mesmo aqui a ênfase dramática é mais no gasto irônico do que em relação a César e Brutus e Cássio serem punidos pela húbris [orgulho excessivo]. Antônio e Cleópatra inverte às restrições da definição trágica clássica através de seu final triunfante na qual Cleópatra retira de Otávio César a oportunidade de mostrá-la em Roma como sua prisioneira. As ideias de Shakespeare sobre a tragédia são tão pragmaticamente derivadas e variadas quanto as peças as quais elas são designadas.

            As críticas apontadas a Shakespeare por Ben Jonson são, novamente, uma forma útil de avaliar às ideias literárias de Shakespeare da perspectiva oposta de um auto-proclamado escritor e teórico neoclássico. Juntamente com o elogio que já examinamos, Jonson tem vários comentários adversos à oferecer. Ele reclama com William Drummond de Hawthornden, em 1618, que Shakespeare “procurava arte”, como poderia ser visto quando “trouxe vários homens dizendo que eles tinham sofrido um naufrágio na Boêmia, onde não há mar por perto em algumas centenas de milhas”. É presumível que Jonson tinha em mente O Conto do Inverno, onde a Boêmia é mencionada várias vezes (e em nenhum lugar mais em Shakespeare), e onde de fado a bebê Perdita é deixada em uma região deserta da costa. Shakespeare está seguindo sua fonte, o Pandosto, de Robert Greene, ao dar uma costa marítima a um país que é tradicionalmente localizado na Europa central. A impaciência de Jonson aqui com a inexatidão é consistente com sua troça a Shakespeare pelos perceptivos anacronismos em Júlio César, ao equipar as ruas da cidade de Roma com “muros e muralhas”, “torres e janelas”, e mesmo “topos de chaminés” (1.1.38-9) como se a Roma antiga fosse uma Londres do século dezesseis, e de provê-la com um relógio pendular (2.1.192) em desleixada desconsideração pelo fato que o relógio mecânico não havia sido inventado até por volta de 1300. O ponto mais amplo de Jonson é que Shakespeare escreve muito rapidamente. “Os atores às vezes mencionam que é uma honra para Shakespeare, que em sua escrita, quaisquer coisas que ele escreve jamais borram uma linha”, Jonson nota em Timber, ou Descobertas. “Minha resposta tem sido, antes ele tivesse borrado mil.”

            Jonson também objeta vigorosamente contra a maneira livre e fácil de Shakespeare em relação à probabilidade no palco e com as unidades de tempo, lugar e ação. No prólogo da edição de 1616 do seu Todo Homem e Seus Humores, Jonson ataca às peças de história Inglesa nas quais os combatentes, “com três espadas enferrujadas, / E a ajuda de algumas palavras gigantescas, / Lutam sobre a longa discórdia de York e Lancaster / E da coxia trazem ferimentos e cicatrizes”. Esse mesmo prefácio segue ao preferir peças “Onde nem o Coro sopra-te pelos mares, / Nem o rangido do trono vem abaixo, para os meninos agradar, / Nem o sagaz busca-pé é visto como assustador / Às damas, nem as roladas balas ouvir / Para dizer que troveja, nem tempestuosos tambores / rufam para dizer-te quando a tempestade chega.” A Indução de Feira de Bartholomew (edição de 1631) compara o próprio mundo teatral de Jonson com as improváveis fantasias do drama romântico: “Se nunca houver um servo-monstro na feira, quem pode ajudá-lo, ele (Jonson) diz, nem um ninho do grotesco? Ele é relutante em fazer a natureza receosa em suas peças, como àqueles que geram estórias, tempestades e tais farsas, para misturar sua cabeça com os calcanhares de outros homens.”

            Todas as críticas apontam para Shakespeare como o principal ofensor entre os dramaturgos de Londres, mesmo quando Shakespeare não é especificamente mencionado pelo nome. A luta pela “longa discórdia de York e Lancaster” não pode ter outro alvo sério, desde que Shakespeare escreveu oito peças históricas sobre esse tema. O Coro soprando as plateias para além-mar soa como o Coro em Henrique V, que promete à plateia “daqui até França vamos conduzi-los em segurança, / E trazê-los de volta” (2 Coro, 37-8), embora outros dramaturgos também empregaram, às vezes, a mesma tática. Trovões anunciando a chegada de uma tempestade marca à cena de abertura de A Tempestade: “Ouve-se um tempestuoso barulho de trovão e relâmpagos”, seguido por “Entram Marinheiros molhados.” O “trono rangente” que descia por roldanas e cordas de um alçapão nos “céus” acima do palco é um proeminente dispositivo em Cimbelino: “Júpiter desce em raios e trovões, sentado sobre uma águia” (5.4.92). No Ato 4 de A Tempestade, “Juno desce” (72) para agraciar o casamento de Miranda e Ferdinand. “Trovões e raios” (1.3) assustam os habitantes de Roma nas vésperas do assassinato de Júlio César. “A Tempestade continua” repetidamente soa em Rei Lear conforme o velho rei aventura-se no “tempo horrível” do Ato 3, cenas 1 e 2. Rojões e fogos de artifício podem ter se tornado úteis quando, no cerco a Harfleur em Henrique V, “o ágil canhoneiro / Com o longo acendedor agora o diabólico canhão toca, / E abaixo vai tudo ante ele”, com o acompanhamento da direção de palco, “Alarmes, e as câmaras explodem” (3 Coro, 32-4). Outras cenas de batalha provêm oportunidades similares. Shakespeare se desculpa, através de seu Coro, por dar essa temerosa e inadequada representação da grande vitória de Henrique V em Agincourt, “Onde – ó, que pena! – devemos muito desgraçar / Com quatro ou cinco floretes vis e esfarrapados, / Certamente dispostos à doença na briga ridícula, / O nome de Agincourt” (4 Coro, 49-52). Jonson não poderia ter dito melhor. E para servos-monstros, “estórias, tempestades e tais farsas”, não precisamos olhar para outro lugar senão A Tempestade; O próprio uso por Jonson da palavra “tempestade” torna claro o objeto da sua ira crítica.

            O próprio credo literário de Shakespeare, apesar de nunca enunciado em muitas palavras, parece abundantemente claro na prática: ele descorda de Jonson ponto por ponto. A Tempestade observa as unidades de tempo, lugar e ação, como se Shakespeare estivesse dizendo a Jonson e outros críticos com o mesmo julgamento, em seu adeus aos palcos, Veja, eu posso perfeitamente bem observar as unidades dramáticas quando quero. Ainda mesmo aqui, Shakespeare traz um “servo-monstro” na pessoa de Calibã, e tais “farsas” como “várias formas estranhas trazendo um banquete” enquanto “Solene e estranha música” é emitida de algum lugar presumivelmente escondido. Próspero aparece “no topo, invisível” (3.3.17-19), querendo dizer no alto do teatro, usando uma roupa “invisível” como aquela de Puck e Oberon em Sonho de uma Noite de Verão. Alguém pode imaginar o desdém de Jonson por essas roupas “invisíveis”. Como alguém poderia ver uma pessoa “invisível”? Ainda que Shakespeare impenitentemente traga fantasmas, espíritos, bruxas ou estranhas irmãs, etc., que são capazes de aparecer para alguns humanos enquanto não para outros. O fantasma do pai de Hamlet visita Hamlet nos aposentos de sua mãe porém não deseja ser visto por Gertrudes (Hamlet, 3.4). O fantasma de Banquo aparece para Macbeth sem ser visto por nenhuma outra pessoa na mesa do banquete (Macbeth, 3.4). Os móveis podem parecer voar através do ar: quando na A Tempestade Ariel aparece “como uma harpia” para repreender Alonso, Antônio e Sebastian sobre suas traições, ele “bate suas asas na mesa, e com uma truque exótico, o banquete desaparece” (3.3.52). Essa é uma mesa de banquete que as “formas estranhas” trouxeram imediatamente antes de provocar os desesperados Italianos com visões perturbadoras, incitando mesmo os vilões a reconhecer, “Agora eu acreditarei / Que existem unicórnios; que na Arábia / Há uma árvore, o trono de fênix, uma fênix / Por essas horas reinando lá” (3.3.21-4). Shakespeare diverte-se na mágica do teatro, e não tem hesitação em chamar à atenção para suas próprias invenções teatrais pretensiosas. Jonson presumivelmente odeia cada minuto desse tipo de coisa.

            Shakespeare lida mais extensivamente com a teoria literária Jonsoniana no Ato 2, cena 7 de Como Gostais. O descontente satirista da peça, Jaques, acaba de encontrar-se com um bobo (Touchstone) na floresta, e está estourando de desejo em contar ao Duque Senior e aos seguidores do Duque o que o encontro com Touchstone inspirou Jaques a pensar. Jaques quer a licença de um “reconhecido bobo” (Noite de Reis, 1.5.91) para falar contra a loucura humana. “Eu devia ter liberdade / Contudo”, ele insiste, “com tanto privilégio como o vento, / De soprar em quem eu agrado” (Como Gostais, 2.7.47-9). Ele adverte seus alvos pretendidos que eles farão bem em atuar sem perturbações perante as farpas dele, para que eles não traiam suas próprias idiotices ao reagirem raivosamente e pessoalmente; se eles podem fingir parecerem “insensíveis” (55), os observadores podem supor que eles não são contaminados pela acusação. Jacques quer, como um satírico, unir forças com o bobo profissional, porque o bobo é muito livre para dizer qualquer coisa que pensar. “Invista-se na minha miscelânea”, Jaques proclama, “dê-me saída / Para falar minha mente, e eu irei de qualquer forma / Limpar o sujo corpo do infectado mundo, / Se eles pacientemente receberem meu remédio” (58-61). Esse é o manifesto do satírico Romano; as ideias são reconhecidamente aquelas de Horácio, Juvenal e Persius. Shakespeare, através de Jaques, habilidosamente sumariza a antiga e imemorial defesa da sátira literária: ela realiza uma função socialmente útil ao expor à loucura humana. É um “remédio” designado para “limpar” o “mundo infectado”.

            A defesa da sátira de Jaques afirma que ela é uma arte moral, não somente porque age em nome da sociedade geralmente mas porque ela ataca os abusos que são pecaminosos. Jaques oferece exemplos. Ele irá gritar alto contra o orgulho, especialmente à extravagância nas vestes: ele irá atacar qualquer “mulher da cidade” ou esposa de algum dignitário cívico que presumivelmente sustenta “O custo dos príncipes em ombros indignos” (70-6), isto é, desperdiçando dinheiro em refinamentos como se fosse uma aristocrata. A observação beira friamente o esnobismo social: as esposas da cidade não devem vestir-se acima de sua posição. Seus maridos não são exceção, é claro. Jaques pensa igualmente de qualquer pessoa na “mais básica função” (baixa classe social) que protesta que sua “bravura” ou esplendor nas vestes “não é meu custo” (isto é, não foi comprada nas minhas custas e não tem, por isso, relação com meu negócio como satirista), mas quem então comporta-se desse modo para deixar claro que o que o satirista diz é verdade: ele “adapta / Sua loucura ao caráter do meu discurso” (79-82). Parte da auto-justificação de Jaques, em outras palavras, é que quando os alvos da sua sátira comportam-se de forma a proclamar suas culpas, eles podem não ter resposta lógica àqueles que os criticam. Deixe o sapato servir a quem o calça.

            A última e talvez mais importante defesa de Jaques de sua arte como satirista é que ele não ataca indivíduos. Ele molda um retrato genérico da loucura humana e então permite a seus leitores ou ouvintes determinarem a adequação a qualquer caso hipotético. “O que então?” ele pergunta, quando ele fez um genérico esboço do personagem da “mulher da cidade” ou a de “mais básica função”, sem dar nenhum nome. “Deixe-me ver em que / Minha língua o ofendeu”, ele continua. “Se eu fiz o certo, / Então ele o ofendeu. Se ele é livre, / Minha advertência voa, sem destino, / Sem ninguém que a queira” (83-7). A verdadeira sátira aflige somente aqueles os quais o próprio comportamento conforma-se ao tipo satírico. Contrariamente, qualquer um que é “livre” da loucura em questão é por esse fato intocável. Isso, novamente, é teoria clássica sobre a sátira. Ela aparece em Horácio e também em sátiros posteriores, incluindo Alexander Pope no século dezoito. O gênio de Shakespeare e imparcialidade como escritor o possibilita a condensar as complexidades do pensamento crítico da literatura clássica em um verso denso mas elegantemente lúcido.

            Ao mesmo tempo, Shakespeare não perde à oportunidade para uma resposta inteligente. Duque Senior gosta e mesmo admira Jaques, mas tem uma explicação inteiramente diferente do que motiva o satirista: a sátira pode ser uma maneira de retaliar inimigos pessoais, e é também frequentemente a expressão de alguém culpado de falhas morais que agora fixa em outros como uma forma de defesa pessoal. “Que vergonha!” Duque Senior ralha com Jaques, talvez com bom-humor, mas com vigor entretanto. “Eu bem sei o que faria”, ele continua:

                                   Ia pecar, pra punir o pecado.

                                   Pois você mesmo foi um libertino,

                                   Tão sensual quanto o cio animal,

                                   E toda bolha e casca e carga má

                                   Que apanhou em sua vida de devasso,

                                   Iria vomitar no mundo inteiro.

                                                                                  (2.7.62-9)

O fato que Jaques não dá evidência na peça de um comportamento libertino, pode sugerir que a ilustração de Shakespeare do “satirista” aqui é genérica. Na visão do Duque Senior, satiristas são motivados por uma desconfortável consciência de seus próprios costumes libertinos e assim são todos ávidos em ver e condenar o comportamento libertino nos outros. O demônio ama companhia.

            O debate em Como Gostais termina num empate, como é usualmente o caso em qualquer lugar que haja um tratamento dialético, por Shakespeare, de assuntos controversos. A sátira era certamente um assunto controverso quando essa peça foi montada pela primeira vez, em 1599. Uma onda de poemas satíricos romanos alcançou os quiosques dos livreiros em torno dessa época, incluindo o Virgidemiae (1597) de Joseph Hall e As Metamorfoses da Imagem de Pigmalião (1598), de John Marston, assim como peças satíricas que incluíam Todo Homem em seu Humor (versão in quarto, 1598) e Todo Homem Fora de seu Humor (quarto, 1599) ambos de Jonson. Também o Poetaster, de Jonson e Thomas Dekker e Satiromastix, de John Marston, ou A Soltura do Poeta Humorístico, apareceram logo em 1601. Algumas dessas eram altamente e obviamente pessoais. Jonson estava no centro do rebuliço. Shakespeare pode ter feito alguma crítica subentendida a Jonson na caracterização de Aquiles e Ajax, em Tróilo e Créssida, mas em geral Shakespeare se distanciava da sátira franca. O que ele pensava dela como um gênero literário e dramático?

            Como Gostais pode oferecer pistas. Shakespeare, como vimos, apresenta ambas, a defesa da sátira e a crítica dela com profundidade e simpatia. Ao mesmo tempo, ele arranja o debate entre Jaques e o Duque Senior no contexto maior do Ato 2, cena 7, na Floresta de Arden. Muito está acontecendo. O debate sobre a sátira é imediatamente seguido pelo surgimento repentino do jovem Orlando, faminto e desesperado para salvar à vida de seu velho servo, Adão, que está próximo à morte. Com a espada nas mãos, Orlando está preparado para usar de violência para alcançar seus fins. Porém sua hostilidade encontra-se com a compaixão e a generosidade. “Do que você gostaria?” Pergunta-o Duque Senior. “Sua gentileza deve forçar / Mais do que sua força nos move à generosidade” (2.7.101-2). Orlando e Adão recebem o cuidado que necessitam, e tornam-se parte da comunidade da floresta. Ademais, o incidente incita o Duque Senior a pensar mais amplamente o porquê dos seres humanos necessitar cuidar uns dos outros. Duque Senior e seus companheiros conheceram o que é sofrer. Aquele conhecimento cria neles uma esperança de um mundo melhor de valores comunais compartilhados:

                                   Verdade é que vimos dias melhores,

                                   E ouvimos sinos santos nas igrejas,

                                   Festejamos com os bons, e enxugamos

                                   Lágrimas que a piedade fez cair;

                                   Portanto sente-se, com gentileza,

                                   E ordeno que se sirva do que temos

                                   Pra atender sua necessidade.

                                                                                              (2.7.119-25)

Jaques, por sua parte, usa a ocasião para meditar sobre as Sete Idades do Homem, da infância e juventude até a velhice e a senilidade, tomando uma visão mais satírica que a vida é basicamente um pouco mais que um processo existencial de envelhecimento. O debate continua. Ainda que as ideias de compaixão, perdão, e comunidade, finalmente prevaleçam no mundo das comédias românticas de Shakespeare. Isso não é absolutamente a resposta final de Shakespeare, pois algumas visões fortemente pessimistas ainda serão enfrentadas nas grandes tragédias dos próximos anos. Ainda, nesse ponto de 1599, as atrações de um ponto de vista satírico finalmente geram às consolações de uma filosofia mais caridosa.

            Mesmo se ele é relutante de colocar-se à vista como um teórico literário, então, Shakespeare apresenta cumulativamente em sua obra uma visão crítica compreensível de sua arte. A poesia e o drama podem e devem servir a um propósito moral maior, não através de sermões dogmáticos mas através da apresentação de exemplos dramáticos vívidos. A arte desse tipo exaltada pode melhorar muitas complicações e imperfeições da vida, e pode sobreviver aos revezes do tempo. Consequentemente, o drama e a atuação devem evitar os apelos baratos ao gosto popular. Elas devem lisonjear mesmo os “groundlings” que vão ao delírio em “shows inexplicavelmente bobos e barulhos” para colocar suas visões para cima quando eles vêm assistir a peças. A arte dramática mais verdadeira é aquela que busca e ganha a aprovação daqueles que realmente entendem o que é a arte. Presumivelmente, Shakespeare não quer dizer que o artista deve escrever somente para a corte e para aqueles que são treinados pela universidade; ele próprio não frequentou uma universidade, e implicitamente permanece como uma prova viva que alguém pode ser uma pessoa da mais alta seriedade artística através da auto-educação.

            De fato, Shakespeare mostra pouca simpatia pelas “regras” clássicas de tempo, lugar e ação que eram as favoritas dos eruditos com treinamento clássico e os dramaturgos. Claramente, ele pode seguir às regras sem esforço e brilhantemente quando a história parece necessitá-las, mas ele é sobretudo um praticante de abordagens não-doutrinárias à estrutura dramática. Similarmente, ele dá insuficiente atenção a Aristóteles e à tradição neo-Aristotélica de interpretação crítica. Ele aborda o gênero de maneira variável, misturando comédia e tragédia quando apropriado e usando (mesmo ajudando à inventar) formas genéricas como as peças de história Inglesas e a tragicomédia que desafiam às limitações neo-Aristotélicas do gênero dramático da comédia e da tragédia. Suas tragédias às vezes emprestam-se à ideia de Aristóteles de hamartia do herói trágico, mas às vezes não o fazem. Apesar de não ser o que chamaríamos de um escritor satírico, Shakespeare certamente conhecia como usar a sátira, e ele dá ouvido respeitoso às defesas Horacianas dela. Sobretudo, ele é um pragmatista justo, colocando as ideias rivais sobre a arte em debate uma contra a outra. Essas são, talvez, algumas das ideias sobre arte com as quais Shakespeare conscientemente armou a si mesmo conforme ele se preparava para enfrentar os temas céticos que irão emergir com crescente força na segunda metade da sua carreira de escritor.

[:de]

Tradução do Quarto Capítulo de: As Ideias de Shakespeare, Mais Coisas entre Céu e a Terra, David Bevington, 2008.

4

Apresentar um Espelho à Natureza

As Ideias de Shakespeare sobre Escrita e Atuação

            Um conjunto de ideias que Shakespeare precisava considerar, conforme aventurava-se com crescente audácia nos temas filosóficos do ceticismo e da dúvida, tem a ver com a natureza da poesia e do drama. Quais são os propósitos artísticos e morais da poesia e do drama, e como o poeta e o dramaturgo seguem suas funções de fornecedores da sabedoria moral? As declarações de Shakespeare acerca de seu ofício como escritor, ambos implícito e explícito, toma como dado que a poesia e o drama servem como importantes guias da conduta humana. Nessa hipótese, Shakespeare segue a linha dos teóricos antigos e da Renascença, de Aristóteles e Horácio a Philip Sidney e Ben Jonson. A ideia está no coração da Defesa da Poesia (1595) de Sidney: a poesia ultrapassa ambas a história e a filosofia, na visão de Sidney, pois ela ilumina poderosamente grandes verdades com apimentados exemplos, assim evitando à incapacitante particularidade da história por um lado e às insossas abstrações da filosofia por outro.

            Para Shakespeare, o poder da arte é justamente tão importante para o dramaturgo e ator quanto o é para o poeta. O que significa dizer que a atuação é uma imitação da natureza? Por que a imitação desse tipo é tão importante para nós que pode afetar a vida das pessoas, para melhor ou pior? Quais estilos de atuação podem melhor alcançar à função do teatro de oferecer um espelho à natureza? Essas coisas parecem importar sobremaneira a Shakespeare, e particularmente quando ele escreve seus Sonetos e Hamlet (cerca de 1599-1601). Noções implícitas sobre a natureza da arte dramática são encontradas ao longo de todo o cânon, é claro, mas verbalizações explícitas estão especialmente em evidência por volta da virada do século. Os Sonetos são difíceis de serem datados individualmente, mas alguns sonetos chaves são plausivelmente do final dos anos 1590 ou início dos 1600, e então também podemos assumir que Shakespeare esteve pensando sobre sua arte por algum tempo. É como se Shakespeare avaliasse cuidadosamente seu método artístico conforme ele deixa de escrever comédias românticas e peças de história Inglesa para peças de gênero mais problemático, como Tróilo e Créssida (1601) e as grandes tragédias. De qualquer forma, esse parece um momento adequado para nós olharmos para a visão de Shakespeare de seu próprio ofício.

            Apesar de Shakespeare nunca ter escrito um ensaio literário ou um prefácio para uma peça ou poema expressando suas visões sobre o que significa ser poeta e dramaturgo, e mesmo que nós não tenhamos nenhuma correspondência preservada sua ou arquivos de conversas literárias, podemos intuir muito das passagens em seus poemas e peças onde os tópicos da escrita e atuação aparecem. Como sempre, temos que ser cuidadosos em não atribuir a Shakespeare os pensamentos de seus personagens, mas podemos identificar posições que são colocadas em debate. Então, também, certos temas sobressaem de forma a sugerirem que eles são de alguma importância para seu autor.

            Os Sonetos parecem profundamente interessados no fenômeno da fama alcançada pela escrita, e fama alcançada através de ser descrito por outrem. Essas são ideias comuns, que se voltam para o mundo clássico, então não se deve colocar muita ênfase na individualidade da visão, mas elas insistentemente se apresentam entre os temas centrais dos Sonetos. Um exemplo bem conhecido é o do Soneto 55:

Nem o mármore nem os dourados monumentos

De príncipes, devem sobreviver a esse poderoso verso

Mas você brilhará mais forte nesses conteúdos

Do que a não cuidada rocha empoeirada pelo lascivo tempo.

A melhor proteção contra a devastação do tempo, esquecimento, e a guerra, o poeta segue para nos assegurar, é a lembrança literária: “seu louvor deve ainda encontrar espaço / Mesmo nos olhos de toda posteridade / Que desgastará esse mundo até à danação final”. “Seu” aqui pode significar o jovem cavalheiro a quem os Sonetos são endereçados geralmente, e nós como leitores.

            Vários dispositivos desse soneto são notáveis. O poeta louva os méritos da poesia sobre monumentos de rocha, que podem parecer duráveis mas são de fato sujeitos à decomposição e abandono. Um problema com os monumentos de mármore é que eles são brevemente esquecidos, “empoeirado pelo lascivo tempo”, “não cuidado”, ou eles serão anulados e destruídos. A poesia, por outro lado, durará não somente por séculos mas para sempre. A guerra é emblemática dos processos os quais o declinante Tempo irá inevitavelmente “queimar / O registro vivo da sua memória” ao menos que ela seja redimida pela poesia. O poeta enfatiza repetidamente às vantagens da poesia para a pessoa assim celebrada: essa pessoa irá “viver nisso” até “o julgamento que te faz levantar”, isto é, até o dia do Juízo Final no fim do próprio tempo. Simultaneamente, o soneto implica que a poesia também irá imortalizar o autor. O soneto é reflexivo sobre si mesmo: conforme o lemos, lembramos das palavras de William Shakespeare e vemos nesse soneto uma demonstração de como, de fato, a poesia pode alcançar um tipo especial de imortalidade para quem o produz. O criador de sonetos está também implicitamente orgulhoso de um coleguismo entre poetas e amantes da poesia que podem desprezar “os dourados monumentos / de Príncipes”. As realizações de homens orgulhosos e poderosos (como Alexandre, ou Júlio César) inevitavelmente decaem, como também todas as coisas desse mundo ordinário. A poesia é de uma ordem maior. Ela compartilha com a religião a verdade eterna que pode rir com gentil desdém do mero mundano.

            A poesia é uma defesa contra o envelhecimento, não num sentido de retardar o processo biológico, mas de ensinar-nos a colocar nossa confiança nos valores eternos do verdadeiro amor e amizade. Guardar-se contra o tempo que se aproxima com rapidez quando o caro amigo do poeta será, como o próprio poeta, “Com a mão injuriosa do Tempo esmagado e esgotado” e sua face cheia “Com linhas e rugas”, o poeta fortifica-se a si mesmo com a convicção que o Tempo “nunca cortará a memória / A beleza de meu doce amor”: “Sua beleza deve ser vista nestas brancas linhas, / E elas devem viver, tanto quanto ele nelas permanecerá verde” (Soneto 63). A poesia pode eternizar a beleza do tipo que não pode fenecer. Novamente, no Soneto 65, a resposta para o apavorante desafio posto pela “triste mortalidade”, contra a qual “o latão, nem a rocha, nem a terra, nem o mar ilimitado” podem resistir por muito, é a poesia, e a poesia somente. Nada pode impedir o “ligeiro passo” do tempo, “ao menos que esse milagre tenha poder, / Que em tinta preta meu amor possa permanecer brilhante”. A ênfase na “tinta preta” em ambos os sonetos mostra a importância do tema paradoxalmente: a poesia é imortal, e ainda assim é criada por um mero mortal que escreve com uma substância fluida que parece quase uma sujeira. O ato físico de escrever, e o papel na qual as palavras aparecem, são efêmeros, mas as ideias e imagens contidas nessas palavras não o são.

            Por toda a característica modéstia do poeta-falante sobre sua própria habilidade como poeta, ele não se envergonha perante o poder da poesia ela mesma e sua habilidade de conceder fama através da escrita. “Seu nome a partir de agora, vida imortal deve ter”, ele assegura a seu amigo, “Embora eu, uma vez que parta, todo o mundo deve morrer.” “Você ainda viverá – tal virtude tem minha pena – / Onde a respiração mais respira, mesmo nas bocas dos homens” (Soneto 81). Quando o poeta sente que seu gênio está declinando ou que ele está gastando seus esforços em “alguma música inútil”, ele implora à Musa para vir em sua assistência para o propósito maior de comemorar o amigo. O poeta fala a sua Musa como se ele, o poeta, fosse apenas um instrumento o qual à humilde pena é ensinada ambos “aptidão e argumentos” pelo poder e a “fúria” da inspiração. Somente à Musa, então, pode fazer o que a poesia deve fazer: “Dar a meu amor a fama, mais rápido que o Tempo desgasta à vida; / Então tu prevenirás sua foice e a desonesta faca” (Soneto 100).

            O poeta-falante dos Sonetos é sensível às complexas relações entre arte e mero artifício. Como Sir Philip Sidney, em sua sequência de sonetos chamada Astrophel and Stella, o falante dos sonetos de Shakespeare recusa insistentemente em seguir as fracas convenções da prática de sonetos – as quais, por volta de 1590, atraíam muitos seguidores e imitadores. “Os olhos de minha amante não se parecem com o sol”, ele proclama, aludindo ao modo na qual muitos sonetos reiteram aquela comparação clichê. “O coral é muito mais vermelho do que o vermelho dos lábios dela.” Os seios dela não são brancos como a neve, o cabelo dela é crespo e negro, as bochechas não relembram rosas de damasco, a respiração dela não é perfumada, o discurso dela não é música, e a maneira dela de andar é mais mundana do que divina. Shakespeare está aqui satirizando não somente o desfile de imagens inertes e previsíveis, mas também às convenções do soneto em ostentar, ou catalogar os charmes de uma dama, expressos como se eles fossem insígnias heráldicas. “E ainda, pelos céus, penso que meu amor é tão raro / Quanto qualquer dama desmentida com falsas comparações”, ele conclui (Soneto 130). A poesia deve evitar clichês porque eles degradam o tema, substituindo o vulgar e esperado por imagens que são frescas e persuasivas.

            O conselho aqui é próximo àquele de Rosalinda, em Como Gostais, quando ela aconselha Orlando a abster-se das fórmulas vazias no cortejo, como por exemplo dizer que ele morrerá por amor se sua paixão não for retribuída. “Não, por fé, morra por procuração”, ela o aconselha. “O pobre mundo tem quase seis mil anos, e em todo esse tempo não houve qualquer homem que morreu, nomeadamente, por amor.” O exemplo dela inclui Tróilo, que “fez o que podia para morrer” de amor sem ter sucesso nessa empreitada, apesar de ele ser “um dos padrões do amor”, e Leandro, que morreu não por que estava doente de amor (como os “tolos cronistas daquela época” continuavam insistindo) mas porque teve câimbra enquanto nadava o Dardanelos para alcançar sua amada Hero de Sestos. “Essas são todas mentiras”, Rosalinda conclui (4.1.89-102). Orlando seria bem aconselhado em evitar o antiquado voto de amar “Sempre e um dia”. “Diga “um dia,”” sem o “sempre”, Rosalinda insiste (138-9). O amor necessita ser realístico em suas expectativas; assim também a poesia de amor. Julieta está com a mesma mente em Romeu e Julieta quando ela pede a Romeu não jurar “pela lua, a inconstante lua, / Que mensalmente altera-se em sua órbita circular, / Para que teu amor não se prove igualmente variável” (2.2.109-11). Como no Soneto 130, a ideia aponta para a necessidade de franqueza em ambos os relacionamentos humanos e na arte. Ao mesmo tempo, estamos constantemente conscientes, conforme lemos esse soneto ou qualquer outro, de como são estudadamente artificiais as convenções da escrita de sonetos, com suas formas de estrofes altamente estruturadas e o padrão de rima. A escrita precisa aprender a criar uma aura de genuinidade através do uso criativo da convenção poética.

            Às vezes, o poeta-falante dos Sonetos é capaz de uma dolorosa auto-degradação em sua arte, ou ao menos em sua profissão. O Soneto 111 começa como se segue:

                        Ó, por mim, desprezas à Sorte,

A deusa culpada de meus malfeitos,

Que nada melhor proveu para minha vida

Do que meios públicos que procria maneiras públicas.

Então sobrevém que meu nome receba uma marca,

E quase de imediato minha natureza se subjuga

Ao que é objeto do trabalho, como à mão do tintureiro.

Se isso é ao menos em parte autobiográfico, ele parece sugerir que o poeta-falante lamenta às circunstâncias que o deixaram com pouca escolha além de colocar a si mesmo às vistas do público de uma forma que cria “maneiras públicas” em si mesmo e incorre em desgraça por algo vergonhoso e sujo, como o tintureiro o qual as mãos estão manchadas pela tinta que manipula. Isso pode referir-se à atuação, que é necessariamente pública, e que carrega com ela (naquela época e hoje) uma reputação de uma vida boêmia. Atuar, nessa visão, é algo aventureiro e descarado. O ator inspira sua plateia com sua habilidade na representação, enquanto que, ao mesmo tempo, faz uma exposição de si mesmo. Essas dolorosas contradições aplicam-se ao dramaturgo também? A própria natureza do escritor está em perigo de ser diminuída pelo meio no qual ele trabalha, nomeadamente, a linguagem da poesia e o mundo do teatro comercial? Quando o poeta-falante reclama a seu amigo, “Nossa, isso é verdade, fui de um lado para o outro / E fiz de mim mesmo uma mixórdia para o público” (Soneto 110), ele soa novamente a nota de auto-degradação ou mesmo de auto-abominação por uma profissão na qual o falante tem “Ferido meus próprios pensamentos, vendendo barato o que é mais querido”.

            Ainda em outro lugar Shakespeare soa como se considerasse a atuação e a escrita de peças como as profissões mais nobres, e as mais capazes de oferecer a um mundo carente de perspectivas artísticas. Em nenhum lugar essa admiração é mais eloquentemente expressada que no conselho de Hamlet aos atores que visitaram Elsinore e que estão prestes à encenar às ordens de Hamlet. Evitar à atuação forçada, ele os adverte: “não ultrapassar a modéstia da natureza, porque o exagero é contrário aos propósitos da representação, cuja finalidade sempre foi, e continuará sendo, como que apresentar o espelho à natureza, mostrar à virtude suas próprias feições, à ignomínia sua imagem a ao corpo e idade do tempo a impressão de sua forma.” (Hamlet, 3.2.19-24). Esses são objetivos morais elevados. O próprio propósito da mimésis, Hamlet parece argumentar, é instruir através da ilustração e do exemplo. O espelho da arte nos mostra o que somos: ele nos previne dos modelos negativos e encoraja à conduta virtuosa. Atores são “as crônicas abstratas e breves do tempo” (2.2.524). Essa não é uma visão redutiva ou utilitária da arte, porque a arte necessita ser eloquente e bela para inspirar o comportamento correto, mas essa visão parece desconcertada pela proposição que, em seu melhor, a arte tem uma função didática.

            De fato, isso prova-se no presente exemplo. O propósito de Hamlet ao adicioná-lo em “O Assassinato de Gonzago” é de testar a consciência do Rei Claudio ao mostrá-lo uma representação do ato homicida que Hamlet acredita que Claudio cometeu. Ele ouviu “Aquela culpada criatura sentada perante uma peça / Sendo pela própria esperteza da cena / tão golpeado na alma que brevemente / Eles proclamaram suas malfeitorias” (2.2.590-3). Claudio responde como o esperado. Quando a performance de “O Assassinato de Gonzago” alcança o ponto crítico na qual o sobrinho do Rei, Luciano, está quase para aplicar veneno nos ouvidos de seu dormente tio, Cláudio não pode mais sustentar. Ele levanta-se e faz uma saída impetuosa, para a consternação de todos os presentes menos Horácio e Hamlet. Este, tendo preparado essa “peça ratoeira”, está agora pronto para “tomar à palavra do fantasma por mil quilos” (3.2.235, 258-85). Hamlet testou e verificou a verdade sobre o que o fantasma de seu pai disse sobre o assassinato do velho Hamlet pelo seu irmão. A sequência também confirmou em ação a teoria de Hamlet sobre a eficácia da arte dramática em despertar à consciência. “O Assassinato de Gonzago” mostra precisamente o que Hamlet queria dizer por apresentar “o espelho à natureza”. A ideia é profundamente idealística na sua visão da escrita: assim como a arte pode eternizar a fama, ela também pode mudar nossos corações e ajudar-nos a combater nossas próprias naturezas pecaminosas.

            Esse alto propósito moral explica por que, na visão de Hamlet, a atuação deve “adquirir e gerar uma temperança que lhe dará sutileza”. Hamlet prossegue por um tempo em sua insistência que os atores não devem “bocejar” seus discursos como se eles fossem os pregoeiros da cidade, ou ver o ar com suas mãos, ou “rasgar uma paixão aos farrapos, aos trapos, dividindo os ouvidos da plateia, que na maior parte não é capaz de nada exceto inexplicáveis shows de ignorância e barulho”. Eles precisam tomar cuidado para não exceder Herodes pelo discurso, ou fazer piadas inoportunas para que os “incompetentes riam” – uma falta que “não pode causar senão desgosto ao criterioso, e a censura deste deve constituir na vossa estima mais do que um teatro lotado pelos outros” (3.2.1-28). Especialmente os bobos devem evitar à tentação de improvisar alguma matéria frívola e então rir de sua própria tirada “a fim de fazer rir também certo tipo de néscios espectadores, conquanto nesse ínterim algum ponto importante da peça devesse ser valorizado” (39-43). A boa atuação tem como alvo a representação, o que alguém vê num espelho real, sem distorção. A reforma do estilo de atuação (36-8) é necessária para evitar os abusos da atuação incompetente, que são geralmente, um resultado combinado de mal gosto da parte de alguns espectadores, e a disposição da parte de muitos atores em prover para um apetite de paixões triviais e “turbulentas”.

            A visão elevada de Hamlet da arte dramática, então, caminha lado a lado com uma visão intelectualmente aristocrática de que constitui um espectador adequadamente educado. Shakespeare ousa a conceder a Hamlet que se refira aos seus espectadores como “groundlings” – um termo empregado primeiramente por Shakespeare nesse sentido (e ainda em uso hoje) que descreve àqueles que estão no “pátio” de três lados do palco público do teatro Elisabetano. Muitos desses que ouviram o discurso de Hamlet na produção original em algum momento por volta de 1600 devem ter sido groundlings eles próprios, pelo menos no sentido prático. Hamlet está insultando-os? Mais provavelmente, ele está apelando para os melhores instintos críticos destes mandando-os juntar-se ao grupo seleto daqueles que têm uma compreensão madura do que o drama deve sobretudo ser. Em todos os eventos, ele apela ao drama como arte elevada. O drama deve “Adequar à ação à palavra, a palavra à ação” (3.2.17-18). Esse conselho aplica-se ao dramaturgo, assim como aos atores os quais Hamlet está endereçando.

            De uma maneira similarmente esotérica, Hamlet descreve aos atores um discurso dramático que ele ouviu uma vez. Ele nunca foi encenado, “ou se foi, não mais que uma vez, eu me lembro, não agradou a milhões; era caviar ao público” – isto é, era um prato escolhido, muito elegante para os gostos plebeus vulgares (2.2.434-7). Novamente, Hamlet está confrontando seus espectadores que ficam próximos ao palco, ou ele os pede para medirem e elevarem seus próprios gostos na literatura dramática por esse alto padrão? Em qualquer caso, a peça foi, na própria visão de Hamlet e na visão de outros “os quais os julgamentos nessas matérias gritam sobre o meu”, uma excelente peça, “bem digerida nas cenas, realizada com tanta modéstia quanto sagacidade”, e com “nenhuma salada nas linhas para deixar o assunto temperado” ou alguma “matéria na frase que podia denunciar o autor da afetação” (437-43). Hamlet parece ter a intenção de enaltecer uma obra que era muito sofisticada para os espectadores ordinários; seu elogio é direcionado para os poucos escolhidos os quais os gostos impecáveis os autoriza a serem juízes do mérito literário. A peça que Hamlet relembra era tão intelectual, de fato, que ela falhou no palco se um dia foi montada – uma descrição que estranhamente adequa-se à história de Tróilo e Créssida de Shakespeare, com sua sinopse de publicação em 1609 fazendo propaganda da obra como “nunca obsoleta com o palco, nunca aplaudida pelas garras e palmas dos vulgares, e ainda passando totalmente pelas palmas cômicas” (mesmo que outra versão da peça, na página-título do quarto de 1609, declare que ela foi “atuada pelos Servos da Majestade do Rei no Globe”) Por que essa insistência no refinamento intelectual às custas do entretenimento teatral popular? O relato que Hamlet acaba de receber de Rosencrantz e Guildenstern, sobre uma guerra de poetas na qual as companhias de atuação de adultos estão perdendo espaço para companhias de meninos atores, aparentemente com referência à cena teatral de Londres por volta de 1600-1, e aparecendo apenas no texto do Fólio de Hamlet (2.2.338-62), adiciona à sensibilidade de Hamlet que o teatro tem uma séria obrigação de manter o maior padrão possível de excelência artística.

            A amostra de Hamlet de alta arte dramática está no assassinato do Rei Príamo de Troia pelo Grego Pyrrhus (ou Neoptolemus), filho de Aquiles, e o grito apaixonado da Rainha Hécuba “Quando ela vê Pyrrhus fazer o esporte malicioso / De picar com sua espada os membros de seu marido” (2.2.450-518). A passagem é deliberadamente clássica, sendo derivada no principal da descrição de Virgílio da queima de Troia na Eneida, Livro II. Ela pode também fazer uma amarga homenagem à Dido, Rainha de Cartago, uma peça escrita por Christopher Marlowe em colaboração com Thomas Nashe em algum momento antes da morte de Marlowe em 1593. A peça evoca nostalgia por um mundo passado de tragédia clássica, em sua dramatização de um mito sempre recontado, sua dicção poética e o verso branco cuidadosamente controlado, suas longas frases que relembram Sêneca e as sentenciosas moralizações, seus focos em momentos de intensa paixão trágica, seus pronunciamentos estoicos sobre a Fortuna, e seu reconhecimento da presença dos deuses. Seu recital na ocasião presente desagrada Polônio como “muito longa”, assim dando a Hamlet uma outra oportunidade de expressar sua preferência por auditores com um gosto educado; como ele diz sobre Polônio aos atores, “Ele é para uma dança, ou uma fábula obscena, senão dorme” (2.2.498-501). O estilo arcaico usado para descrever o triste destino de Príamo e Hécuba não é o idioma usual de Shakespeare, de fato, mas ele habilidosamente serve um propósito dramático de definir o gosto de Hamlet como qualquer coisa exceto inculto.

            Podemos ouvir a própria voz de Shakespeare escondendo-se por detrás de Hamlet? O compromisso vivaz de reforma do teatro, o sólido conselho sobre adequar à ação à palavra, etc., soam tão irrepreensíveis e consideravelmente verdadeiros que nós somos tentados a ver Hamlet como um tipo de porta-voz do autor. O apelo para audiências sofisticadas é talvez consistente com os objetivos da companhia de atuação de Shakespeare, cujos valorosos convites para atuar na corte, e que conforme passava-se a primeira década do século dezessete escolhia cada vez mais atuar indoor, no Teatro Blackfriars, perante audiências cortesãs e sofisticadas. Ao mesmo tempo, parte do gênio de Shakespeare era, e é, que ele sabia como agradar dos reis aos bobos. O discurso em Hamlet sobre os propósitos e estilos artísticos da arte dramática deve, talvez, ser considerado na luz do debate na qual Hamlet é um falante particularmente eloquente.

            Geralmente, Shakespeare teve a reputação, em seus próprios dias e nas gerações futuras, de ser um escritor de viés mais popular e romântico, do que o estilo preferido pelos neoclassicistas na Inglaterra e no Continente, especialmente em França e Itália. Apesar de Shakespeare não expor suas próprias preferências em muitas palavras, sua prática literária confirma à impressão geral. Ele não mostra consistente consideração pelas chamadas unidades de tempo, lugar e ação, que eram partes tão essenciais da tradição crítica neo-Aristotélica. A Comédia dos Erros (cerca de 1589-94), certamente, segue uma estrutura de cinco atos como aquela de sua principal fonte, o Menaechmi de Plauto, ou Gêmeos. Sua ação ocorre principalmente dentro ou perto da casa de Antífolo de Éfeso, assim como numa rua e um monastério próximo. Os Cortesãos habitam na vizinhança. Uma entrada “da baía” (4.1.84) e saída “para o monastério” e “para a Abadessa” (5.1.37,282) reforçam à impressão da localização de uma rua simples na cidade de Éfeso. A última ação dura somente um dia; o enredo é simples. Shakespeare evidentemente foi um aprendiz da tradição clássica nesta peça primitiva. Ele certamente sabia o que eram as unidades. Ele seguiu-as bem na A Tempestade, o coroamento de sua carreira com um dramaturgo em 1611 ou perto disso. Sua ação é limitada à ilha e a algo menos do que os “dois dias” os quais Próspero promete libertar Ariel (1.2.301-2, 424-5); aparentemente, a história inteira desdobra-se em aproximadamente “três horas” (5.1.136, 188, e 225; veja também 1.2.241 e 5.1.4-5). A história do que se deu por volta de “doze anos” atrás em Milão (1.2.53), quando Miranda era um bebê, é contada em estilo neoclássico adequado para um flashback. De fato, A Tempestade usa enredos múltiplos, especialmente em seu ridiculamente cômico subenredo da conspiração de Calibã, Stéfano e Trínculo, mas o todo continua graciosamente unificado.

Por outro lado, Antônio e Cleópatra (1606-7) move-se por todo o Mediterrâneo médio e oriental, de Roma ao Egito e novamente de volta, assim como para Medina na Sicília (2.1), Misenium, perto de Nápoles, no sul da Itália (2.6), um local no Oriente Médio perto do nordeste do Irã dos tempos modernos (3.1), Atenas (3.4) e Actium, no noroeste da costa da Grécia (3.7-10). Nem todas essas localidades são nomeadas especificamente na peça, mas os grandes movimentos geográficos são essenciais à história. A passagem do tempo, apesar de não registrado em datas específicas, estende-se do encontro de Antônio e Cleópatra no Rio Cydnus no sudeste da moderna Turquia, em 41 a.C, até a derrota deles na batalha de Actium, em 31 a.C, e a morte de ambos no Egito no próximo ano. A peça é composta por quarenta e três cenas separadas, se por “cenas” queremos dizer de sequências de ação marcadas por um palco sem elementos cênicos. Algumas, durante à batalha de Actium, são breves. Algumas das peças históricas de Shakespeare não são menos épicas em suas reviravoltas cronológicas. As três peças sobre Henrique VI estendem-se cumulativamente da morte de Henrique V em 1422 àquela de Henrique VI em 1471, e move-se por toda Inglaterra e França; somente em 1 Henrique VI, a ação ocorre em Orleans, Auvergne, Rouen, Paris, Bordeaux, Angiers e Anjou, assim como em Londres e Westminster. A multiplicidade da ação é uma marca registrada das peças históricas.

Mesmo nas tragédias organizadas mais concisamente, tempo e localidade não obedecem às restrições neoclássicas. O enredo de Hamlet deve dar tempo para Hamlet ser posto num navio rumo à Inglaterra, evadir seus acompanhantes ao embarcar num navio pirata durante a luta do ataque dos piratas, e fazer seu caminho de volta à corte Dinamarquesa depois de ter trocado às instruções do pacote diplomático de Rosencrantz e Guildenstern, que seguem seu caminho à Inglaterra (4.6.15-29, 5.2.12-25). Otelo muda a localização de Veneza, no ato 1, para Cyprus até o final da ação – uma impropriedade dramática de acordo com a prática neoclássica que Giuseppe Verdi resolveu em seu Otello (1887) ao começar sua ópera em Cyprus, muito como John Dryden tornou clássica sua versão de Antônio e Cleópatra, entitulada Tudo por Amor (1678), ao localizar a peça inteira no Egito e contando toda a história anterior através das recordações dos personagens. Rei Lear move-se da corte Inglesa para à Escócia (Albany) e então para Gloucestershire e Dover, num período de alguns meses pelo menos e com o emprego (raro na tragédia) de um enredo duplo. A ação de Macbeth deve dar tempo, seguindo o assassinato de Duncan, para a desafeição crescer perante o cada vez mais tirânico reinado de Macbeth e para um exército de resistência organizar-se com suporte Inglês.

Um motivo geográfico comum das comédias românticas é uma jornada, usualmente de alguma civilização central para um mundo silvestre ou mágico, onde estranhas transformações podem ocorrer. Os jovens amantes de Sonho de uma Noite de Verão escapam da dura lei Ateniense para a floresta ou bosques, onde permanecem fascinados pela mágica das fadas até à ação final na corte do Duque Teseu. Os Dois Cavalheiros de Verona oscila entre Verona, Milão e uma floresta em Mântua repleta de salteadores. Rosalinda e Célia, em Como Gostais, escolhem o banimento da corte hostil do Duque Frederick a uma mais amigável Floresta de Arden, que pode ser localizada em França (Ardenne), ou em Warwickshire, ou em um mundo da imaginação do artista. Bassânio, em O Mercador de Veneza, viaja do mundo legalista de Veneza para Belmont, que o próprio nome indica uma beleza quieta e um retiro do mundo Veneziano do conflito comercial. Essas são jornadas para o que Northrop Frye rotulou como o “mundo verde” da comédia romântica shakespeariana. As relocações geográficas trazem consigo uma perspectiva visionária do mundo das fadas, pastores, goblins e até mesmo monstros. Os últimos romances de Shakespeare retornam enfaticamente ao motivo da jornada imaginativa: Péricles perambula por todo o Mediterrâneo, Cimbelino viaja da Inglaterra para Roma e ao montanhoso Gales e O Conto do Inverno move-se da Sicília ao fantasioso mundo pastoral da Boêmia. Mesmo A Tempestade, apesar de localizada por toda a ilha, encarna essa mesma jornada numa narrativa que justapõe o sombrio mundo político de Milão e Nápoles com uma ilha desabitada existente apenas na imaginação do artista nessa peça.

Uma forma de ganhar uma perspectiva na jovial desconsideração de Shakespeare pelas unidades clássicas é compará-lo com Ben Jonson, e com o que Jonson falou sobre Shakespeare. Apesar de Shakespeare não falar nada para os arquivos, Jonson raramente é silencioso perante Shakespeare. Podemos reconstruir uma conversa entre esses dois homens à partir das várias notas de Jonson e das não expressas mas implicadas persuasões literárias de Shakespeare, como vistas em suas obras? Jonson era o mais novo dos dois, nascido em 1572, oito anos depois de Shakespeare. Jonson sobreviveu a Shakespeare vinte e dois anos, morrendo em 1637. Jonson assim tem uma ampla oportunidade de refletir sobre as realizações de Shakespeare como um dramaturgo e poeta. Ademais, Jonson clamou para si o papel de principal crítico literário e erudito da Inglaterra. Suas conversas com William Drummond of Hawthornden em 1618 são apimentadas com pronunciamentos sobre escritores da Inglaterra, incluindo Sir Philip Sidney, Edmund Spenser, Samuel Daniel, Michael Drayton, John Donne e Shakespeare. Nos materiais introdutórios a suas próprias peças e em outros escritos, Jonson enunciou uma abrangente teoria neoclássica para julgar às realizações literárias de sua geração. Ele próprio era instruído em Latim e apenas numa extensão menor em Grego.

O mais generoso elogio de Jonson a Shakespeare como um escritor está em seu tributo “À memória de meu querido, o autor, Mr. William Shakespeare, e o que ele nos deixou”, publicado na primeira edição completa das peças de Shakespeare, o chamado Primeiro Fólio, em 1623. Jonson livremente confessa que os escritos de Shakespeare “são tais / Que nenhum homem ou musa pode elogiar muito”. Shakespeare é a “alma da época”, “O aplauso, deleite, a maravilha de nosso palco”. Jonson não irá alojar Shakespeare mesmo entre os maiores poetas da Inglaterra, nomeadamente Chaucer, Spenser e Francis Beaumont; Shakespeare está só numa categoria. Ele é “um monumento sem uma tumba”, isto é, não precisando de nenhum monumento funeral para garantir sua imortalidade, pois sua grandeza irá resistir “enquanto seu livro viver / E nós tivermos argúcia para ler e elogios para dar”. Em seus escritos Shakespeare de longe supera John Lyly ou o “esportivo Kyd” ou “a poderosa linha de Marlowe”. Para aumentar o padrão de comparação ainda mais, Jonson compara Shakespeare favoravelmente, como um escritor de tragédia, com os tragediógrafos gregos Ésquilo, Eurípides e Sófocles, e também com os romanos Marcus Pacuvius (cerca de 220-130 a.C), Lucius Accius (170-cerca de 86 a.C, um mais jovem contemporâneo de Pacuvius) e “ele morto de Cordova”, isto é, Sêneca, o Jovem (cerca de 4 a.C à 65 d.C), o mais conhecido dos dramaturgos Latinos trágicos na Renascença Inglesa. Para a comédia, Jonson tem um elogio ainda maior; Shakespeare não tem paralelos. “Deixe tu sozinho, na comparação / De tudo o que a insolente Grécia ou a arrogante Roma / Produziu, ou desde que das cinzas delas vem.” Mesmo o melhor dos escritores cômicos antigos, o Grego Aristófanes e os Romanos Terêncio e Plauto, não agradam mais plateias, mas estão “antiquados e abandonados” depois do fenomenal sucesso de Shakespeare. O Shakespeare de Jonson é assim “não de uma época, mas para todo o tempo”, o “Doce Cisne de Avon” que será exaltado como uma constelação celeste, brilhando como a “estrela dos poetas”, brilhando “influência” para “repreender ou encorajar o exausto palco”.

Por todo esse fervor no elogio, e sua nota de hipérbole que é apropriada a um poema comemorando alguém que está agora morto e definitivamente publicado, essa apreciação por Jonson está escrita de um ponto de vista neoclássico e, às vezes, crítico. Jonson ele mesmo está extraordinariamente presente no poema como um ditador literário. Ele aceita como sua a tarefa de julgar Shakespeare no rol dos grandes escritores da antiguidade e do presente. O cânon é intelectual e clássico. Implicitamente, Jonson parece maravilhar-se com o fenômeno de um escritor de Stratford-upon-Avon, o “Cisne de Avon”, que não apenas despontou entre a classe dos imortais mas os superou a todos, pelo menos na comédia. A observação é, ao mesmo tempo, uma marca de orgulho nas realizações da Inglaterra ao rivalizar os antigos (Triunfo, minha Bretanha, você tem um para mostrar / O qual todas as cenas da Europa mostrarão homenagem”) e um reconhecimento que a Inglaterra tem tido um caminho árduo para alcançar seus competidores. Jonson exibe sua própria cultura ao citar antigos dramaturgos que somente os eruditos conheceriam alguma coisa. Mesmo os escritores trágicos Gregos eram pouco conhecidos ou traduzidos na Inglaterra da Renascença, e Shakespeare quase certamente não os leu. Nem ele se refere a Pacuvius ou Accius. Mesmo o mais conhecido Sêneca pode ter alcançado a ele principalmente através das peças de Thomas Kyd e outros dramaturgos do palco popular; a única menção a Sêneca em toda a obra de Shakespeare é encontrada na expressão tola de Polônio que “Sêneca não poderia ser tão pesado, nem Plauto tão leve” (Hamlet, 2.2.400-1). As duas referências de Shakespeare a Aristóteles referem-se a escritos sobre ética e filosofia moral (A Megera Domada, 1.1.32, e Tróilo e Créssida, 2.2.166-7); nenhuma evidência aponta que ele tenha lido à Poética.

O poema comemorativo de Jonson é, assim, dirigido por um homem de imensa erudição para um que foi de algum modo autodidata, sem treinamento clássico. Jonson não consegue conter-se de observar que Shakespeare tinha um “pequeno Latim e menos Grego”; esse fato torna suas realizações como poeta e dramaturgo ainda mais surpreendentes. A observação também chama a atenção ao fato que Jonson ele próprio tinha em abundância o Latim e o Grego. Mesmo a concessão de Jonson que Shakespeare não era um mero filho da Natureza, ressalta o ponto que Shakespeare teve que aprender seu ofício pela aplicação diligente, como todo bom escritor deve fazer: “ele / Que deseja escrever uma linha viva deve suar” com vistas a “atingir o segundo calor / Sobre a bigorna das Musas”. Jonson insiste que “um bom poeta é feito, assim como nasce”. Jonson era sensível à acusação que ele trabalhou tão diligentemente em seus escritos; por isso que o Prólogo de seu Volpone (1605-6) é rápido em observar “É sabido que em cinco semanas o escreveu / Com suas próprias mãos” (16-17). Shakespeare, contrariamente, tinha uma reputação do fluxo fácil de sua escrita (veja abaixo). Adequadamente, Jonson faz um esforço consciente no poema comemorativo do Fólio para reapresentar Shakespeare o máximo que pode como seu [Jonson] próprio modelo de verdadeiro poeta.

O poema de Jonson reconhece somente dois tipos de drama: tragédia e comédia. O ator trágico pisa o palco com sua “bota” (o “coturno”) ou uma bota de amarras alcançando o meio ou mais até o joelho, simbolizando a alta seriedade do drama que retira suas linhas de histórias das lendas míticas sobre os azares dos príncipes. O ator cômico usa a “meia”, um sapato baixo ou sandália simbolizando o baixo status da comédia e seu engajamento com o burlesco do dia a dia dos plebeus. (O gênero conhecido como a peça Sátira não ocupa lugar nessa classificação dual.) Historicamente, a distinção entre os dois gêneros de drama foi plenamente delineada no palco clássico antigo: comédias, com seus coros de talvez vinte e quatro membros e uma estrutura episódica característica, eram apresentadas em Atenas em festivais da grande Dionysia e à Lenaea, enquanto as tragédias empregavam um coro menor e uma estrutura de performance mais firmemente organizada, também para a grande Dionysia e à Lenaea, porém como eventos separados. Os prêmios iam para a melhor comédia e para a melhor tragédia. Essa codificação das categorias continuou nos escritos de Aristóteles e da tradição Aristotélica. Jonson mede e elogia as realizações de Shakespeare nesses termos duais. A divisão em dois gêneros era comum na Renascença. Francis Meres, em seu Palladis Tamia, 1598, elogia Shakespeare como segue: “Como Plauto e Sêneca são considerados os melhores da comédia e tragédia entre os Latinos, assim Shakespeare entre os Ingleses é o mais excelente em ambos os tipos para o palco.”

Mas esse sistema classificatório adequa-se ao cânon de Shakespeare? Na taxonomia de Meres, as peças sobre Henrique VI são listadas como tragédias, assim como Ricardo II, Ricardo III e Rei João. Há explicação para o caso dessas três últimas peças serem classificadas como tragédias, certamente: Ricardo II era chamada “A Tragédia do Rei Ricardo o segundo” em sua folha de rosto de 1597 e Ricardo III era similarmente intitulado quando foi pela primeira vez publicada no mesmo ano, apesar de também encontrarmos títulos no Fólio como: “A Vida e Morte de Ricardo o Segundo” e “A Vida e Morte de Rei João” que coloca mais ênfase na natureza inconclusiva da história. Ricardo II é sobre a queda de Ricardo, mas é também sobre a elevação de Henrique Bolingbroke, Rei Henrique IV. As peças sobre Henrique IV desafiam à classificação bipartida da tradição clássica ainda mais inquisitivamente. Em quarto elas eram conhecidas como “A História de Henrique o Quarto” e “A Segunda Parte de Henrique o Quarto” em 1598 e 1600; no Fólio de 1623 a primeira parte é chamada “A Primeira Parte de Rei Henrique o Quarto”. Hotspur claramente morre naquela peça, mas, ao todo, a história é uma de sucesso para Henrique IV e para seu filho, o futuro Henrique V. Mesmo Falstaff é bem-sucedido na conclusão de 1 Henrique IV, e a peça ela própria contém algumas das melhores escritas cômicas de Shakespeare.

O Fólio de 1623 está dividido em três grupos: não comédias e tragédias, mas comédias, histórias e tragédias. Dez peças de um total de trinta e seis pertencem a um grupo chamado histórias. Cumulativamente, elas dramatizam a história da Inglaterra durante o reinado de Rei João, no início do século treze, e então continuamente do reinado de Ricardo II no final do século catorze até o reinado de Henrique VIII e o nascimento da futura Rainha Elizabeth em 1533. O que é a peça histórica como um tipo de gênero? Em um sentido seu significado parece claro o suficiente no “Catálogo” do Fólio, ou no índice: essas dez peças são todas sobre história Inglesa. Rei João, o monarca menos conectado com os outros cronologicamente, presumivelmente capturou à atenção de Shakespeare por causa da ambiguidade da reivindicação de João ao trono Inglês e por causa de suas disputas com a igreja Católica; as outras nove peças contam à história da Inglaterra durante as guerras civis que eventualmente levaram ao estabelecimento da dinastia Tudor. Mas o que isso diz sobre gênero? O que é a peça histórica estruturalmente e formalmente? Por que Macbeth e Rei Lear não são classificadas como peças históricas? Ambas lidam com reis da história Britânica ou de história lendária. O que significa que algumas peças de história Inglesa possam ser classificadas como comédias e outras como tragédias?

A peça de história Inglesa, então, é uma anomalia em termos das definições clássicas de gêneros dramáticos. Ela também representa uma das maiores realizações de Shakespeare. Ele teve um importante papel ao inventar o gênero, apesar de conhecer e fazer uso de alguns poucos experimentos anteriores de outros artistas, incluindo o anônimo As Famosas Vitórias de Henrique V (1583-8) e O Turbulento Reinado de Rei João (cerca de 1587-91). Ele foi claramente o praticante principal na escrita de peças de história Inglesa ao longo dos anos 1590. Sua abordagem no que constitui uma peça de história Inglesa é inteiramente pragmática. Ele escreveu essas peças como sequências; a forma e o conteúdo desenvolveram-se conforme ele avançava. Quando ele começou a escrever sobre Henrique IV e seu filho, ele pode ter planejado uma peça única até à morte do pai; se assim o foi, ele mudou de ideia conforme a escrevia, descobrindo que ele tinha muito o que dizer sobre Falstaff e Hal, e assim temos a história de Henrique IV em duas partes. A tradição conta que ele tirou um tempo para escrever uma peça (As Alegres Comadres de Windsor) sobre Falstaff apaixonado, por ordem da Rainha Elizabeth; disso não podemos ter certeza, mas ela assevera à reputação que Shakespeare detinha como improvisador. Ele parece que não teve compulsão em observar os gêneros da tradição clássica, tanto quanto não sentiu-se constrangido pelas chamadas unidades de tempo, lugar e ação. Uma peça bem-sucedida para ele parece ter sido qualquer coisa que funcionasse no palco para uma plateia.

Quando Polônio anuncia a Hamlet que chegaram atores à Elsinore, ele os elogia pelos muitos gêneros os quais eles distinguem-se. Eles são, Polônio diz, “Os melhores atores do mundo, tanto para tragédia, comédia, história, pastoral, pastoral-cômica, histórico-pastoral, trágica-histórica, trágica-cômica-histórica-pastoral, cena indivisível ou poema ilimitado” (Hamlet, 2.2.396-400). Shakespeare está rindo de si mesmo? Notamos que a lista começa com “tragédia, comédia, história”, as três categorias que serão posteriormente empregadas na publicação do Fólio de 1623. Ambas “pastoral” e “pastoral-cômica” são termos que podem ser aplicados a Como Gostais ou O Conto de Inverno. “Trágica-histórica” adequadamente descreve peças como Júlio César e Antônio e Cleópatra que perfazem grandes tragédias da história. Se “cena indivisível” significa uma peça que observa à unidade de lugar, então A Comédia dos Erros e A Tempestade, entre outras, adequam-se à descrição. Se “poema ilimitado” refere-se às peças que desconsideram às unidades de tempo e lugar, os exemplos no cânon de Shakespeare são quase – bem – ilimitados. Polônio é um mau crítico literário para fiarmo-nos em comentários perspicazes, mas sua miscelânea de categorias dramáticas parece instrutiva quando pensamos sobre os tipos do drama shakespeariano.

O rótulo “comédia” cobre um grande número de bênçãos. A comédia romântica sobre jovens apaixonados e suas estranhas aventuras errantes é matéria prima para as peças que Shakespeare estava escrevendo nos anos 1590; mas então, por volta do tempo de Hamlet, encontramos uma configuração de peças tão visivelmente discrepantes das normas da comédia romântica, que os críticos procuraram novos rótulos. O nome que mais prevalece para essas novas formas de comédias hoje é “comédia problema” ou “peça problema”. Medida por Medida (1603-4) descreve-nos uma Viena tão desorientada na devassidão sexual que o Duque ausenta-se da cidade, deixando no comando um deputado, Ângelo, que logo descobre que sua própria lascívia furiosa por uma jovem mulher determinada em ingressar num convento (Isabella) é tão ingovernável que ele a ameaça com a execução de seu irmão Cláudio com uma acusação por fornicação ao menos que ela consinta em fazer sexo com o deputado. A aparente concordância dela toma forma ao substituí-la por uma mulher que Ângelo havia rompido alguns anos atrás. Esse “truque da cama” resolve o problema, mas a um custo de meios eticamente duvidosos. Várias cenas da peça passam-se na prisão. Entre os mais altivos personagens estão os alcoviteiros, as meretrizes e clientes do antro criminoso de Viena. Mesmo os casamentos no final são bizarros.

Assim é o caso também em Tudo Está Bem Quando Termina Bem (cerca de 1601-5). Essa peça apresenta um jovem aristocrata, Bertram, que, desdenhosamente relutante em obedecer à ordem do Rei para que se case com uma jovem mulher de uma classe social inferior (Helena), que salvou a vida do Rei, foge para as guerras na companhia de um interessante malandro chamado Parolles. Helena, como Isabella em Medida por Medida, é motivada pelo expediente eticamente duvidoso do truque da cama: quando Bertram persegue a filha de uma viúva durante sua campanha militar em Florença, Helena arranja com a viúva para tomar o lugar da filha (Diana) na noite do planejado acordo sexual secreto. Bertram aprende uma lição sobre a obrigação que os homens devem sentir ao reconhecerem às consequências de suas agressões sexuais, e tudo termina bem, como o título da peça promete, mas não sem ter levantado questões problemáticas sobre a falha humana. Como uma comédia a peça é incomum, pela atenção simpática que dá a figuras mais velhas como a mãe de Bertram e “um velho senhor” chamado Lafew, que repetidamente expressam seus desapontamentos com as pessoas jovens e especialmente com jovens homens. Essa não é uma comédia sobre os inebriantes prazeres e riscos do amor jovem.

Ambas Medida por Media e Bem Está estão incluídas entre as comédias no Fólio de 1623, desse modo expandindo nosso conhecimento do que Shakespeare poderia ter incluído sob aquele termo flexível. Tróilo e Créssida quebra o molde inteiramente. Seu local no Fólio de 1623 é inteiramente anômalo: ela está entre as histórias e as tragédias, quase inteiramente sem paginação, e não é listada no “Catálogo” ou índice. Evidentemente sua inclusão na impressão foi posterior, depois de uma tentativa abortada de imprimi-la depois de Romeu e Julieta, que a colocaria entre as tragédias. A peça é discutivelmente comédia ou história ou tragédia, ou todas as anteriores. É uma comédia sombria, no espírito de suas companheiras “peças problemas”, apresentando um par de amantes o qual o breve caso termina abruptamente por causa de uma guerra absurda entre Gregos e Troianos e pelas falhas dos próprios amantes. É uma peça histórica pois faz a crônica da mais famosa – e infame – guerra da história. É uma tragédia em sua dramatização das mortes de Pátroclo e especialmente Heitor. Sobretudo, talvez, é uma sátira. Suas vozes córicas, especialmente àquelas de Pândaro e Tersites, aponta-nos em tom malicioso como “a lascívia come-se a si mesma” (5.4.35). Como Tersites diz, como forma de sarcástica caracterização da guerra, “Todo o argumento é uma meretriz e um corno, uma boa disputa para atrair invejosas facções e sangrar até a morte” (2.3.71-3). Tróilo e Créssida parece não ter sido um sucesso no palco de seus próprios dias, o que é bem possível, pois foi percebida como muito vanguardista.

As últimas comédias de Shakespeare estendem ainda mais os limites do que aquele termo pode significar. Péricles (cerca de 1606-8) não foi incluída no Fólio de 1623, talvez porque os editores sensivelmente consideravam-na parte romance e parte tragicomédia: “romance” no sentido que ela toma seu herói de muitas aventuras “românticas” do tipo das encontradas em várias fábulas de viagens para terras longínquas, terminando finalmente em reunião com os familiares, e “tragicomédia” no sentido de uma mistura de elementos trágicos e cômicos. Do lado trágico há a aparente morte da esposa de Péricles, Thaísa e os encontros ameaçadores de sua filha Marina com madrastas perversas, piratas e cafetões; do lado cômico estão as deliciosas cenas de bordéis e os momentos de afetuosa felicidade quando pai, filha e esposa finalmente estão juntos novamente.

Cimbelino (cerca de 1608) é discutivelmente outra tragicomédia, tão próxima à tragédia, de fato, que os editores do Fólio de 1623 decidiram imprimi-la entre as tragédias, como a última peça do volume. É possível ver o porquê de os editores a colocarem ali. Não somente é uma peça muito grande, em terceiro lugar após Hamlet e Ricardo III, e passa-se numa Bretanha mítica e pré-histórica no viés de Rei Lear. Como Otelo, habita por algum tempo nas agonias do ciúme sexual. O impetuoso ciúme de Póstumo Leonato na aparente infidelidade de sua esposa Imogênia, e então o remorso suicida dele ao supor que foi bem-sucedido em tê-la assassinado, são as matérias do drama trágico do qual ele é salvo somente pelo auxílio providencial do romance tragicômico. A morte grotesca por decapitação do indesejado cortejador de Imogênia, Cloten, e a confissão cheia de horrores de leito de morte da mãe de Cloten, a Rainha, são o tipo de coisa que alguém espera encontrar em uma tragédia. Ainda que elas encontram-se aqui.

Os ataques de ciúmes de Leontes contra sua rainha inocente, Hermione, em O Conto de Inverno (cerca de 1609-11), são similarmente trágicos em suas intensidades, e com dolorosos efeitos. Novamente somos confrontados com a morte numa peça publicada entre as comédias. O jovem príncipe, Mamillius, está tão devastado pelo julgamento público de sua mãe por adultério que ele morre de angústia e choque. Hermione também aparenta morrer pelo seu suplício e, de fato, nós como plateia somos levados à acreditar que ela realmente está morta. Leontes está emocionalmente inconsolável com culpado remorso quando compreende muito tarde o que fez. O resultado é que a primeira metade dessa peça seria completamente trágica, se não fosse algumas dicas que tudo irá eventualmente ficar bem. A mudança entre as duas metades da peça é especialmente marcada. O Tempo como um Coro nos leva dezesseis anos à frente e para o mundo pastoral da Boêmia onde Perdita, abandonada pelo rei seu pai a um destino cruel de ser deixada numa praia distante, cresce entre pastores e pastoras. A atmosfera festiva de primavera da Boêmia não poderia ser mais diferente do que o mundo decaído da Sicília de Leontes. Aqui na Bohemia o romance floresce entre Perdita e o principesco filho (Florizel) de um amigo afastado de Leontes, Polixenes. Eventualmente os jovens amantes vão para a Sicília e para a reunião entre pai e filha, e então, em uma das maiores surpresas teatrais de Shakespeare, a uma reunião com a supostamente morta Rainha Hermione.

O Conto de Inverno é assim uma ilustração distintiva do que significa uma “tragicomédia”. Ela encarna uma dramaturgia que Shakespeare compartilhava com outros dramaturgos de Londres na última metade da primeira década do século dezessete, notavelmente John Fletcher. Plateias em ambos os teatros públicos e indoors poderiam estar buscando o tipo de realização meta-teatral que encontramos nessas peças. O Conto de Inverno, saltando uma geração inteira no tempo, tão característico do gênero, relembra um tratamento similar do tempo em Péricles (na qual à Marina deve ser permitido crescer de um bebê recém-nascido a uma jovem mulher na idade de casar) e em A Tempestade, onde o intervalo de doze anos desde à infância de Miranda, é apresentado através da recordação narrativa, em vez de uma encenação sequencial, assim que, em relação a isso, A Tempestade é mais uma comédia romântica no viés de O Mercador de Veneza ou Muito Barulho por Nada. Mesmo nessas comédias românticas encontramos elementos de tragicomédia: no Mercador, a própria vida de Antônio está aparentemente em risco na faca vingativa de Shylock, e em Muito Barulho, a falsa acusação de traição imputada contra Hero é séria o bastante para ameaça-la a comprometer a vida a um convento religioso. As assim chamadas tragicomédias posteriores são diferentes em grau das primeiras comédias românticas, não realmente em tipo. Bem Está, apesar de ser usualmente classificada como uma peça problema, contém elementos tragicômicos em seu lamento pelo estado decaído da natureza humana e sua enigmática e quase mágica resolução. Como um escritor cômico, Shakespeare resiste à classificação fácil a quaisquer “regras” clássicas.

As ideias de Shakespeare sobre a comédia, então, parecem tão variadas como as cores do arco-íris. E sobre a tragédia? Aqui novamente encontramos uma resoluta recusa da parte de Shakespeare em conformar-se com qualquer tipo de partido. Um exemplo de sua aparente irregularidade intencional é a inclusão da comédia em suas tragédias. De acordo com os modelos clássicos, essa é uma quebra do decoro, e como resultado, Shakespeare tem sido frequentemente atacado com violência pelos eruditos com formação clássica quando, por exemplo, ele traz ao palco em Otelo vários músicos palhaços que com mau gosto comparam o “vento” dos seus instrumentos com a flatulência, e coisas similares, justamente quando Iago nos colocou em alerta que ele irá envenenar à mente de Otelo com pensamentos ciumentos sobre sua esposa (3.1.1-31). Num viés similar, muitos críticos questionaram à sabedoria de introduzir um porteiro bêbado em Macbeth para fazer troça dos fazendeiros gananciosos, tecelões Ingleses desonestos, e assim por diante, apenas alguns momentos depois de Macbeth ter assassinado seu convidado régio (2.3.1-20). O rapaz bufão que traz as víboras ocultas numa cesta de figos para Cleópatra quando ela prepara-se para morrer (Antônio e Cleópatra, 5.2.241-79) é outro exemplo. Clichês sobre um “alívio cômico” dificilmente responderão às sérias objeções: Por que a tragédia necessita de um alívio cômico? Por que quebrar o ânimo da ansiedade histérica e da culpa? Ainda que um propósito artístico possa usualmente ser intuído. O porteiro de Macbeth troça sobre temas sérios de “equívocos” diabólicos (uma prática Jesuíta de justificar uma mentira ao guardar na mente uma reserva secreta de algum sentido na qual à expressão poderia ser verdadeira) e fogos infernais, tudo isso nos relembra do pré-concebido destino de Macbeth para “ir pelos caminhos das prímulas, até a eterna fogueira” (18-19). A conversa de Cleópatra sobre “o belo verme do Nilo” que “mata e não dói” é altamente informativo do estado da mente dela conforme se prepara para cometer suicídio da forma menos dolorosa possível. Se esses argumentos de relevância nessas passagens são sempre convincentes ou não, o ponto aqui é que Shakespeare parece não encontrar problema ao misturar comédia com tragédia.

Então, também, Romeu e Julieta contém algumas das mais deliciosas cenas engraçadas que Shakespeare já escreveu. Talvez a peça é um “comi-tragédia”; seu final é muito triste. Hamlet é brilhantemente engraçado em suas tiradas satíricas dirigidas à Polônio como um peixeiro, ou dos destinos irônicos dos advogados e grandes proprietários de terras que os esqueletos irão, ao seu tempo, terminar nas mãos de um coveiro. “Por que aquele não pode ser o crânio de um advogado? Onde está sua essência agora, suas sutilezas, seus casos, suas estabilidades e seus truques? (Hamlet, 5.1.98-100). Cleópatra em Antônio e Cleópatra compete com Falstaff como uma das mais fascinantes criações cômicas de Shakespeare. As cenas nas quais, durante as longas ausências de Antônio, ela consola-se lentamente ao torturar o pobre Mardian sobre o fato de este ser eunuco, ou obscenamente imaginar o que seria ser um cavalo e assim “carregar o peso de Antônio” (1.5.22), ou voar num frenesi contra o mensageiro que a trouxe novidades sobre o casamento de Antônio com Otávia e então ouvir complacentemente quando o informado mensageiro reporta-a às características não atraentes da rival, são simplesmente deliciosas. Se Shakespeare não hesita ao introduzir elementos trágicos nas comédias românticas e tragicomédias, o mesmo é verdade ao reverso, sobre o uso de elementos cômicos na tragédia. Seus trocadilhos notavelmente inventivos, o qual o Dr. Johnson uma vez chamou de “fatal Cleópatra” tentando Shakespeare para longe da alta arte, é talvez outro exemplo de sua visão inclusiva da interconexão dos gêneros dramáticos que poderia encontrar um propósito ocasional para o riso na tragédia.

Abordagens puristas clássicas à tragédia shakespeariana procuraram diligentemente pela falha trágica nos heróis trágicos de Shakespeare. Em último caso, a Poética de Aristóteles define o mais alto tipo de tragédia como aquela que um nobre e valoroso protagonista é diminuído não simplesmente pelo destino, mas pela a hamartia, variadamente definida como falha trágica ou, mais apropriadamente, erro trágico. (A palavra em Grego antigo vem de hamartanien, significando perder a marca, errar.) Aristóteles está pensando sobretudo no Édipo Rei de Sófocles como o exemplo perfeito do que ele quer dizer. Mesmo aqui o desacordo crítico persiste como o que a hamartia de Édipo pode ser – orgulho, angústia, blasfêmia, ou o erro fatal de assassinar seu pai e casar-se com sua mãe, atos decretados pelo destino como inevitáveis. Em todo caso, a consequência para a tradição crítica neo-Aristotélica é que hamartia cresceu em importância como um dos componentes principais do herói trágico. Os intérpretes aristotélicos na Europa Ocidental estavam aptos para ver a hamartia de uma perspectiva Cristã como algo próximo do pecado. Isso é quase certamente uma leitura incorreta de hamartia, que tem a ver com poluição ou violação de maneiras ofensivas aos deuses em vez de uma culpa pecaminosa, mas as formas dos Europeus Ocidentais de leitura de Aristóteles na Idade Média eram comprometidas em buscar por equivalentes culturais, e a Europa Ocidental era, e ainda é, geralmente, uma cultura culpada.

Externamente ao menos, Otelo e Macbeth parecem incorporar um dispositivo estrutural que relembra à hamartia. Otelo é um nobre Mouro de extraordinária relevância, devotado ao amor por Desdêmona, assim como esta o é por ele. Seu erro trágico parece ser um ciúme estimulado com dificuldade, mas aterrorizante em seu poder uma vez desperto. Ele no final aceita completamente sua responsabilidade por ter assassinado uma esposa inocente por raiva ciumenta; ele foi provocado a isso pelo talentoso e astuto tentador, Iago, mas Otelo sabe que a culpa repousa fundamentalmente em si mesmo. Ele é, em sua análise final, “alguém que amou não sabiamente mas muito”, “alguém não facilmente ciumento mas, sendo forjado, / Perplexo ao extremo” (5.2.354-6). Ele pede somente que os demônios possam chicoteá-lo “Da possessão desse espetáculo divino”, soprando-o “sobre os ventos”, assando-o “no enxofre” e lavando-o “em profundos poços de líquido fogo” (286-9). O significado da tragédia dele parece inteligível, e é de fato próxima à ideia de Aristóteles que a tragédia é mais significante quando encontra uma conexão entre causa e efeito, entre a má sorte e o sofrimento. Otelo merece pelo menos a punição de ter perdido Desdêmona para sempre através de sua própria ação ignorante. A ideia é coberta com valores Cristãos aqui; Otelo e Emília ambos consideram Iago como um tipo de “demônio” (5.2.135, 294-5) que prevaleceu sobre Otelo através de tentação insidiosa e destruiu por um tempo sua fé na bondade de Desdêmona. Que Otelo recupere sua fé na bondade dela também dá significado a essa tragédia; Otelo destruiu sua própria felicidade e vê que ele deve sofrer justamente por isso, mas também vê que a bondade de Desdêmona é eternamente verdadeira. Ela é, como Emília diz, “a mais angelical” (134).

Macbeth é similarmente eloquente nas importantes consequências espirituais do assassinato que contempla e então comete, e em seu próprio fardo irresistível de culpa. Mesmo se essa tradução em termos Cristãos perde o foco no significado Grego de hamartia, a associação entre causa e efeito não é menos proeminente. “e a Justiça / Conduz o cálice que envenenamos / Aos nossos lábios” (1.7.10-12), ele considera em solilóquio quando o momento dele assassinar o Rei Duncan aproxima-se rapidamente. Duncan está no castelo de Macbeth em dupla confiança: como o rei a quem Macbeth deve lealdade e como convidado a quem Macbeth deve uma obrigação sagrada como hospedeiro e guardião.

                       Duncan, além do mais, tem ostentado

                       Seu poder com humildade, e vivido

                       Tão puro no alto posto, que seus dotes

                       Soarão, qual trombeta angelical,

                       Contra o pecado que o destruirá;

                       E a Piedade, nua e recém-nata,

                       Montada no clamor, ou os querubins

                       A cavalgar os correios dos céus,

                       A todo olhar dirão o feito horrível,

                       Fazendo a lágrima afogar o vento.

                                                                      (Macbeth, 1.7.16-25)

Macbeth está assim totalmente consciente que ele está prestes a cometer um pecado hediondo, contra a decência humana, contra os céus. As únicas coisas impulsionando-o a seguir em frente são sua “Excessiva ambição” (27) e as sugestões das Estranhas Irmãs e sua esposa. Sua hamartia é fácil de identificar e de nomear em termos Cristãos: ela é uma ambição pecaminosa, o mau tentador de Satã ele próprio. Por toda sua maravilhosa complexidade poética, Macbeth parece um caso de crime e punição.

            Outras tragédias de Shakespeare, entretanto, não estão tão abertas para análises neo-Aristotélicas, e sugerem que Shakespeare com frequência pensava à tragédia em termos impressionantemente diferentes. Hamlet é frequentemente (muito frequentemente) analisado como vitimado por sua indecisão: sua suposta hamartia é uma propensão para o atraso. Correto até certo ponto, Hamlet censura a si mesmo por não ter agido mais rapidamente e decisivamente em resposta ao comando do fantasma de seu pai para “Vingar esse proibido e o mais não natural assassinado”. “Apressa-me a sabê-lo”, Hamlet replica, “que eu, com asas tão ligeiras / Como a meditação ou os pensamentos de amor, / Possa arrebatar minha vingança” (Hamlet, 1.5.26-32). Ainda que uma leitura mais abrangente da peça nos encoraja a considerar que essa ação rápida é na maioria das vezes precipitadamente inapropriada, como quando Hamlet mata Polônio nos aposentos de sua mãe, logicamente assumindo que Cláudio devia estar escondido por detrás do arrás quando de fato não o estava. O resultado é uma morte desnecessária que faz Hamlet viajar para a Inglaterra e coloca em movimento todo o final trágico da peça, incluindo o retorno do furioso Laertes para vingar a morte de seu pai. Laertes não hesita, e adequadamente termina sendo o assassino de Hamlet de forma desleal pois Laertes não sabia o suficiente para compreender que o real vilão no caso é Cláudio. Contrariamente, a decisão final de Hamlet em deixar as coisas nas mãos da Providência traz um final mais satisfatório que Hamlet ou qualquer outra pessoa podia planejar: o assassinato de Cláudio, e uma morte nobre para o Príncipe Hamlet, reconciliado com sua mãe no leito de morte e aliviado do fardo de viver num mundo tão problemático. Aqui de fato há “uma consumação / Devotamente desejada” (3.1.64-5).

            Se uma propensão ao atraso não é uma resposta satisfatória para a busca da hamartia de Hamlet, então qual é uma boa resposta? Talvez a melhor ideia é colocar de lado essa questão inteiramente, e pensar em Hamlet em vez disso como um bom homem que deve pagar o preço das corrupções manifestas do mundo. Ele é muito honesto para esse mundo. Quando ele está impaciente e difícil, como frequentemente é o caso, ele o é com aqueles que considera como bobos, como Polônio, ou oportunistas, como Rosencrantz e Guildenstern, ou vilões, como Cláudio. Com sua mãe ele é duro, mas isso porque ele verdadeiramente deseja salvá-la do que vê como os efeitos enfraquecedores da vida pecaminosa dela com Cláudio. Ele está profundamente arrependido pela morte infeliz de Ofélia, e prontamente pede perdão ao irmão dela. Com Horácio ele é um amigo amável e leal. Hamlet finalmente realiza o que seu pai o ordenou, ainda que de uma maneira que o absolve de assassinato a sangue frio. Ele morre, e será enterrado com todos os ritos funerais pertencentes a um soldado, pois, como Fortinbrás diz, ele é um homem confiável, se fosse rei, “Provar-se-ia o mais régio” (5.2.398-400). Horácio oferece a seu moribundo amigo um longo “Boa noite”, adicionando “E o voo dos anjos te cantem até o final!” (361-2). Hamlet é um herói trágico em um mundo que não sabe o que fazer com esses heróis até ser tarde demais, até as corrupções desse mundo terem cobrado seus tributos.

            Romeu e Julieta é outra tragédia que não cede bem a uma insistência categórica num erro trágico. Romeu e Julieta não são nem protagonistas trágicos no sentido Aristotélico normal: eles não têm estatura heroica ou mítica, como Édipo ou Medeia, mas em vez disso são simpáticos, jovens ordinários que se apaixonam como os personagens centrais de uma comédia romântica. Apesar de desesperadamente ansiosos em serem unidos como marido e mulher, qualquer tentativa de encontrar o significado da tragédia deles no ímpeto exagerado é claramente inadequada. O problema deles é que o mundo das amargas rivalidades familiares não permitirá que eles sejam felizes juntos. Mesmo quando seus pais podem estar dispostos a esquecer o feudo Capuleto-Montague, o espírito de vingança é muito forte. Os desentendimentos contribuem para o desastre: podemos entender o porquê de Julieta não poder contar a seus pais que ela casou-se com Romeu. Má sorte e um momento infeliz atuam quando a nota do Frei Laurence ao banido Romeu malogra. Num momento crucial, Romeu detém alguma responsabilidade pela tragédia por causa de sua decisão precipitada de matar Tybalt em vingança pela morte de Mercutio; Romeu sucumbe aos instintos masculinos da vingança de uma maneira que ele rapidamente lamenta. Porém mesmo aqui, alguém dificilmente pode argumentar que essa peça é centrada na hamartia. Em vez disso, como Capuleto diz, Romeu e Julieta são “Pobres sacrifícios de nossa inimizade” (5.3.304).

            Mais exemplos podem ser citados. Rei Lear e Gloucester em Rei Lear são ambos anciões tolos que fazem desastrosas escolhas, mas julgá-los como autores de suas próprias infelicidades é escolher o lado de Goneril, Regan e Edmundo. Os velhos homens são, como Lear diz de si mesmo, “Sou pecador / Contra quem outros pecaram.” (3.2.60). Júlio César faz um certo sentido em termos Aristotélicos, não surpreendentemente, pois ela é baseada na antiga história clássica, mas mesmo aqui a ênfase dramática é mais no gasto irônico do que em relação a César e Brutus e Cássio serem punidos pela húbris [orgulho excessivo]. Antônio e Cleópatra inverte às restrições da definição trágica clássica através de seu final triunfante na qual Cleópatra retira de Otávio César a oportunidade de mostrá-la em Roma como sua prisioneira. As ideias de Shakespeare sobre a tragédia são tão pragmaticamente derivadas e variadas quanto as peças as quais elas são designadas.

            As críticas apontadas a Shakespeare por Ben Jonson são, novamente, uma forma útil de avaliar às ideias literárias de Shakespeare da perspectiva oposta de um auto-proclamado escritor e teórico neoclássico. Juntamente com o elogio que já examinamos, Jonson tem vários comentários adversos à oferecer. Ele reclama com William Drummond de Hawthornden, em 1618, que Shakespeare “procurava arte”, como poderia ser visto quando “trouxe vários homens dizendo que eles tinham sofrido um naufrágio na Boêmia, onde não há mar por perto em algumas centenas de milhas”. É presumível que Jonson tinha em mente O Conto do Inverno, onde a Boêmia é mencionada várias vezes (e em nenhum lugar mais em Shakespeare), e onde de fado a bebê Perdita é deixada em uma região deserta da costa. Shakespeare está seguindo sua fonte, o Pandosto, de Robert Greene, ao dar uma costa marítima a um país que é tradicionalmente localizado na Europa central. A impaciência de Jonson aqui com a inexatidão é consistente com sua troça a Shakespeare pelos perceptivos anacronismos em Júlio César, ao equipar as ruas da cidade de Roma com “muros e muralhas”, “torres e janelas”, e mesmo “topos de chaminés” (1.1.38-9) como se a Roma antiga fosse uma Londres do século dezesseis, e de provê-la com um relógio pendular (2.1.192) em desleixada desconsideração pelo fato que o relógio mecânico não havia sido inventado até por volta de 1300. O ponto mais amplo de Jonson é que Shakespeare escreve muito rapidamente. “Os atores às vezes mencionam que é uma honra para Shakespeare, que em sua escrita, quaisquer coisas que ele escreve jamais borram uma linha”, Jonson nota em Timber, ou Descobertas. “Minha resposta tem sido, antes ele tivesse borrado mil.”

            Jonson também objeta vigorosamente contra a maneira livre e fácil de Shakespeare em relação à probabilidade no palco e com as unidades de tempo, lugar e ação. No prólogo da edição de 1616 do seu Todo Homem e Seus Humores, Jonson ataca às peças de história Inglesa nas quais os combatentes, “com três espadas enferrujadas, / E a ajuda de algumas palavras gigantescas, / Lutam sobre a longa discórdia de York e Lancaster / E da coxia trazem ferimentos e cicatrizes”. Esse mesmo prefácio segue ao preferir peças “Onde nem o Coro sopra-te pelos mares, / Nem o rangido do trono vem abaixo, para os meninos agradar, / Nem o sagaz busca-pé é visto como assustador / Às damas, nem as roladas balas ouvir / Para dizer que troveja, nem tempestuosos tambores / rufam para dizer-te quando a tempestade chega.” A Indução de Feira de Bartholomew (edição de 1631) compara o próprio mundo teatral de Jonson com as improváveis fantasias do drama romântico: “Se nunca houver um servo-monstro na feira, quem pode ajudá-lo, ele (Jonson) diz, nem um ninho do grotesco? Ele é relutante em fazer a natureza receosa em suas peças, como àqueles que geram estórias, tempestades e tais farsas, para misturar sua cabeça com os calcanhares de outros homens.”

            Todas as críticas apontam para Shakespeare como o principal ofensor entre os dramaturgos de Londres, mesmo quando Shakespeare não é especificamente mencionado pelo nome. A luta pela “longa discórdia de York e Lancaster” não pode ter outro alvo sério, desde que Shakespeare escreveu oito peças históricas sobre esse tema. O Coro soprando as plateias para além-mar soa como o Coro em Henrique V, que promete à plateia “daqui até França vamos conduzi-los em segurança, / E trazê-los de volta” (2 Coro, 37-8), embora outros dramaturgos também empregaram, às vezes, a mesma tática. Trovões anunciando a chegada de uma tempestade marca à cena de abertura de A Tempestade: “Ouve-se um tempestuoso barulho de trovão e relâmpagos”, seguido por “Entram Marinheiros molhados.” O “trono rangente” que descia por roldanas e cordas de um alçapão nos “céus” acima do palco é um proeminente dispositivo em Cimbelino: “Júpiter desce em raios e trovões, sentado sobre uma águia” (5.4.92). No Ato 4 de A Tempestade, “Juno desce” (72) para agraciar o casamento de Miranda e Ferdinand. “Trovões e raios” (1.3) assustam os habitantes de Roma nas vésperas do assassinato de Júlio César. “A Tempestade continua” repetidamente soa em Rei Lear conforme o velho rei aventura-se no “tempo horrível” do Ato 3, cenas 1 e 2. Rojões e fogos de artifício podem ter se tornado úteis quando, no cerco a Harfleur em Henrique V, “o ágil canhoneiro / Com o longo acendedor agora o diabólico canhão toca, / E abaixo vai tudo ante ele”, com o acompanhamento da direção de palco, “Alarmes, e as câmaras explodem” (3 Coro, 32-4). Outras cenas de batalha provêm oportunidades similares. Shakespeare se desculpa, através de seu Coro, por dar essa temerosa e inadequada representação da grande vitória de Henrique V em Agincourt, “Onde – ó, que pena! – devemos muito desgraçar / Com quatro ou cinco floretes vis e esfarrapados, / Certamente dispostos à doença na briga ridícula, / O nome de Agincourt” (4 Coro, 49-52). Jonson não poderia ter dito melhor. E para servos-monstros, “estórias, tempestades e tais farsas”, não precisamos olhar para outro lugar senão A Tempestade; O próprio uso por Jonson da palavra “tempestade” torna claro o objeto da sua ira crítica.

            O próprio credo literário de Shakespeare, apesar de nunca enunciado em muitas palavras, parece abundantemente claro na prática: ele descorda de Jonson ponto por ponto. A Tempestade observa as unidades de tempo, lugar e ação, como se Shakespeare estivesse dizendo a Jonson e outros críticos com o mesmo julgamento, em seu adeus aos palcos, Veja, eu posso perfeitamente bem observar as unidades dramáticas quando quero. Ainda mesmo aqui, Shakespeare traz um “servo-monstro” na pessoa de Calibã, e tais “farsas” como “várias formas estranhas trazendo um banquete” enquanto “Solene e estranha música” é emitida de algum lugar presumivelmente escondido. Próspero aparece “no topo, invisível” (3.3.17-19), querendo dizer no alto do teatro, usando uma roupa “invisível” como aquela de Puck e Oberon em Sonho de uma Noite de Verão. Alguém pode imaginar o desdém de Jonson por essas roupas “invisíveis”. Como alguém poderia ver uma pessoa “invisível”? Ainda que Shakespeare impenitentemente traga fantasmas, espíritos, bruxas ou estranhas irmãs, etc., que são capazes de aparecer para alguns humanos enquanto não para outros. O fantasma do pai de Hamlet visita Hamlet nos aposentos de sua mãe porém não deseja ser visto por Gertrudes (Hamlet, 3.4). O fantasma de Banquo aparece para Macbeth sem ser visto por nenhuma outra pessoa na mesa do banquete (Macbeth, 3.4). Os móveis podem parecer voar através do ar: quando na A Tempestade Ariel aparece “como uma harpia” para repreender Alonso, Antônio e Sebastian sobre suas traições, ele “bate suas asas na mesa, e com uma truque exótico, o banquete desaparece” (3.3.52). Essa é uma mesa de banquete que as “formas estranhas” trouxeram imediatamente antes de provocar os desesperados Italianos com visões perturbadoras, incitando mesmo os vilões a reconhecer, “Agora eu acreditarei / Que existem unicórnios; que na Arábia / Há uma árvore, o trono de fênix, uma fênix / Por essas horas reinando lá” (3.3.21-4). Shakespeare diverte-se na mágica do teatro, e não tem hesitação em chamar à atenção para suas próprias invenções teatrais pretensiosas. Jonson presumivelmente odeia cada minuto desse tipo de coisa.

            Shakespeare lida mais extensivamente com a teoria literária Jonsoniana no Ato 2, cena 7 de Como Gostais. O descontente satirista da peça, Jaques, acaba de encontrar-se com um bobo (Touchstone) na floresta, e está estourando de desejo em contar ao Duque Senior e aos seguidores do Duque o que o encontro com Touchstone inspirou Jaques a pensar. Jaques quer a licença de um “reconhecido bobo” (Noite de Reis, 1.5.91) para falar contra a loucura humana. “Eu devia ter liberdade / Contudo”, ele insiste, “com tanto privilégio como o vento, / De soprar em quem eu agrado” (Como Gostais, 2.7.47-9). Ele adverte seus alvos pretendidos que eles farão bem em atuar sem perturbações perante as farpas dele, para que eles não traiam suas próprias idiotices ao reagirem raivosamente e pessoalmente; se eles podem fingir parecerem “insensíveis” (55), os observadores podem supor que eles não são contaminados pela acusação. Jacques quer, como um satírico, unir forças com o bobo profissional, porque o bobo é muito livre para dizer qualquer coisa que pensar. “Invista-se na minha miscelânea”, Jaques proclama, “dê-me saída / Para falar minha mente, e eu irei de qualquer forma / Limpar o sujo corpo do infectado mundo, / Se eles pacientemente receberem meu remédio” (58-61). Esse é o manifesto do satírico Romano; as ideias são reconhecidamente aquelas de Horácio, Juvenal e Persius. Shakespeare, através de Jaques, habilidosamente sumariza a antiga e imemorial defesa da sátira literária: ela realiza uma função socialmente útil ao expor à loucura humana. É um “remédio” designado para “limpar” o “mundo infectado”.

            A defesa da sátira de Jaques afirma que ela é uma arte moral, não somente porque age em nome da sociedade geralmente mas porque ela ataca os abusos que são pecaminosos. Jaques oferece exemplos. Ele irá gritar alto contra o orgulho, especialmente à extravagância nas vestes: ele irá atacar qualquer “mulher da cidade” ou esposa de algum dignitário cívico que presumivelmente sustenta “O custo dos príncipes em ombros indignos” (70-6), isto é, desperdiçando dinheiro em refinamentos como se fosse uma aristocrata. A observação beira friamente o esnobismo social: as esposas da cidade não devem vestir-se acima de sua posição. Seus maridos não são exceção, é claro. Jaques pensa igualmente de qualquer pessoa na “mais básica função” (baixa classe social) que protesta que sua “bravura” ou esplendor nas vestes “não é meu custo” (isto é, não foi comprada nas minhas custas e não tem, por isso, relação com meu negócio como satirista), mas quem então comporta-se desse modo para deixar claro que o que o satirista diz é verdade: ele “adapta / Sua loucura ao caráter do meu discurso” (79-82). Parte da auto-justificação de Jaques, em outras palavras, é que quando os alvos da sua sátira comportam-se de forma a proclamar suas culpas, eles podem não ter resposta lógica àqueles que os criticam. Deixe o sapato servir a quem o calça.

            A última e talvez mais importante defesa de Jaques de sua arte como satirista é que ele não ataca indivíduos. Ele molda um retrato genérico da loucura humana e então permite a seus leitores ou ouvintes determinarem a adequação a qualquer caso hipotético. “O que então?” ele pergunta, quando ele fez um genérico esboço do personagem da “mulher da cidade” ou a de “mais básica função”, sem dar nenhum nome. “Deixe-me ver em que / Minha língua o ofendeu”, ele continua. “Se eu fiz o certo, / Então ele o ofendeu. Se ele é livre, / Minha advertência voa, sem destino, / Sem ninguém que a queira” (83-7). A verdadeira sátira aflige somente aqueles os quais o próprio comportamento conforma-se ao tipo satírico. Contrariamente, qualquer um que é “livre” da loucura em questão é por esse fato intocável. Isso, novamente, é teoria clássica sobre a sátira. Ela aparece em Horácio e também em sátiros posteriores, incluindo Alexander Pope no século dezoito. O gênio de Shakespeare e imparcialidade como escritor o possibilita a condensar as complexidades do pensamento crítico da literatura clássica em um verso denso mas elegantemente lúcido.

            Ao mesmo tempo, Shakespeare não perde à oportunidade para uma resposta inteligente. Duque Senior gosta e mesmo admira Jaques, mas tem uma explicação inteiramente diferente do que motiva o satirista: a sátira pode ser uma maneira de retaliar inimigos pessoais, e é também frequentemente a expressão de alguém culpado de falhas morais que agora fixa em outros como uma forma de defesa pessoal. “Que vergonha!” Duque Senior ralha com Jaques, talvez com bom-humor, mas com vigor entretanto. “Eu bem sei o que faria”, ele continua:

                                   Ia pecar, pra punir o pecado.

                                   Pois você mesmo foi um libertino,

                                   Tão sensual quanto o cio animal,

                                   E toda bolha e casca e carga má

                                   Que apanhou em sua vida de devasso,

                                   Iria vomitar no mundo inteiro.

                                                                                  (2.7.62-9)

O fato que Jaques não dá evidência na peça de um comportamento libertino, pode sugerir que a ilustração de Shakespeare do “satirista” aqui é genérica. Na visão do Duque Senior, satiristas são motivados por uma desconfortável consciência de seus próprios costumes libertinos e assim são todos ávidos em ver e condenar o comportamento libertino nos outros. O demônio ama companhia.

            O debate em Como Gostais termina num empate, como é usualmente o caso em qualquer lugar que haja um tratamento dialético, por Shakespeare, de assuntos controversos. A sátira era certamente um assunto controverso quando essa peça foi montada pela primeira vez, em 1599. Uma onda de poemas satíricos romanos alcançou os quiosques dos livreiros em torno dessa época, incluindo o Virgidemiae (1597) de Joseph Hall e As Metamorfoses da Imagem de Pigmalião (1598), de John Marston, assim como peças satíricas que incluíam Todo Homem em seu Humor (versão in quarto, 1598) e Todo Homem Fora de seu Humor (quarto, 1599) ambos de Jonson. Também o Poetaster, de Jonson e Thomas Dekker e Satiromastix, de John Marston, ou A Soltura do Poeta Humorístico, apareceram logo em 1601. Algumas dessas eram altamente e obviamente pessoais. Jonson estava no centro do rebuliço. Shakespeare pode ter feito alguma crítica subentendida a Jonson na caracterização de Aquiles e Ajax, em Tróilo e Créssida, mas em geral Shakespeare se distanciava da sátira franca. O que ele pensava dela como um gênero literário e dramático?

            Como Gostais pode oferecer pistas. Shakespeare, como vimos, apresenta ambas, a defesa da sátira e a crítica dela com profundidade e simpatia. Ao mesmo tempo, ele arranja o debate entre Jaques e o Duque Senior no contexto maior do Ato 2, cena 7, na Floresta de Arden. Muito está acontecendo. O debate sobre a sátira é imediatamente seguido pelo surgimento repentino do jovem Orlando, faminto e desesperado para salvar à vida de seu velho servo, Adão, que está próximo à morte. Com a espada nas mãos, Orlando está preparado para usar de violência para alcançar seus fins. Porém sua hostilidade encontra-se com a compaixão e a generosidade. “Do que você gostaria?” Pergunta-o Duque Senior. “Sua gentileza deve forçar / Mais do que sua força nos move à generosidade” (2.7.101-2). Orlando e Adão recebem o cuidado que necessitam, e tornam-se parte da comunidade da floresta. Ademais, o incidente incita o Duque Senior a pensar mais amplamente o porquê dos seres humanos necessitar cuidar uns dos outros. Duque Senior e seus companheiros conheceram o que é sofrer. Aquele conhecimento cria neles uma esperança de um mundo melhor de valores comunais compartilhados:

                                   Verdade é que vimos dias melhores,

                                   E ouvimos sinos santos nas igrejas,

                                   Festejamos com os bons, e enxugamos

                                   Lágrimas que a piedade fez cair;

                                   Portanto sente-se, com gentileza,

                                   E ordeno que se sirva do que temos

                                   Pra atender sua necessidade.

                                                                                              (2.7.119-25)

Jaques, por sua parte, usa a ocasião para meditar sobre as Sete Idades do Homem, da infância e juventude até a velhice e a senilidade, tomando uma visão mais satírica que a vida é basicamente um pouco mais que um processo existencial de envelhecimento. O debate continua. Ainda que as ideias de compaixão, perdão, e comunidade, finalmente prevaleçam no mundo das comédias românticas de Shakespeare. Isso não é absolutamente a resposta final de Shakespeare, pois algumas visões fortemente pessimistas ainda serão enfrentadas nas grandes tragédias dos próximos anos. Ainda, nesse ponto de 1599, as atrações de um ponto de vista satírico finalmente geram às consolações de uma filosofia mais caridosa.

            Mesmo se ele é relutante de colocar-se à vista como um teórico literário, então, Shakespeare apresenta cumulativamente em sua obra uma visão crítica compreensível de sua arte. A poesia e o drama podem e devem servir a um propósito moral maior, não através de sermões dogmáticos mas através da apresentação de exemplos dramáticos vívidos. A arte desse tipo exaltada pode melhorar muitas complicações e imperfeições da vida, e pode sobreviver aos revezes do tempo. Consequentemente, o drama e a atuação devem evitar os apelos baratos ao gosto popular. Elas devem lisonjear mesmo os “groundlings” que vão ao delírio em “shows inexplicavelmente bobos e barulhos” para colocar suas visões para cima quando eles vêm assistir a peças. A arte dramática mais verdadeira é aquela que busca e ganha a aprovação daqueles que realmente entendem o que é a arte. Presumivelmente, Shakespeare não quer dizer que o artista deve escrever somente para a corte e para aqueles que são treinados pela universidade; ele próprio não frequentou uma universidade, e implicitamente permanece como uma prova viva que alguém pode ser uma pessoa da mais alta seriedade artística através da auto-educação.

            De fato, Shakespeare mostra pouca simpatia pelas “regras” clássicas de tempo, lugar e ação que eram as favoritas dos eruditos com treinamento clássico e os dramaturgos. Claramente, ele pode seguir às regras sem esforço e brilhantemente quando a história parece necessitá-las, mas ele é sobretudo um praticante de abordagens não-doutrinárias à estrutura dramática. Similarmente, ele dá insuficiente atenção a Aristóteles e à tradição neo-Aristotélica de interpretação crítica. Ele aborda o gênero de maneira variável, misturando comédia e tragédia quando apropriado e usando (mesmo ajudando à inventar) formas genéricas como as peças de história Inglesas e a tragicomédia que desafiam às limitações neo-Aristotélicas do gênero dramático da comédia e da tragédia. Suas tragédias às vezes emprestam-se à ideia de Aristóteles de hamartia do herói trágico, mas às vezes não o fazem. Apesar de não ser o que chamaríamos de um escritor satírico, Shakespeare certamente conhecia como usar a sátira, e ele dá ouvido respeitoso às defesas Horacianas dela. Sobretudo, ele é um pragmatista justo, colocando as ideias rivais sobre a arte em debate uma contra a outra. Essas são, talvez, algumas das ideias sobre arte com as quais Shakespeare conscientemente armou a si mesmo conforme ele se preparava para enfrentar os temas céticos que irão emergir com crescente força na segunda metade da sua carreira de escritor.

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