Na corte de Elsinore predomina a dissimulação. Tanto é assim que, quando Polônio instrui Ofélia para fingir que lê, para simular devoção e recolhimento, o rei, falando à parte, reconhece para si próprio:
\”Estas palavras são um açoite doloroso para minha consciência
A face de uma meretriz, embelezada com a arte da maquilagem,
Não é mais repugnante ao fim que serve
Do que meus feitos, maquilados com minhas palavras.
Oh, carga opressora!\”
(How smart a lash that speech doth give my conscience!
The harlot’s cheek, beautied with plastering art,
Is not more ugly to the thing that helps it,
Then is my deed, to my most painted word.
O heavy burden!) (3.1).
Hamlet, na sua pesada discussão com Ofélia, usa também a metáfora da maquilagem, quando diz a ela, referindo-se às mulheres em geral, que “Deus lhes deu uma face e vocês arranjam outra” (God has given you one face and you make yourself another) (3.1).
Mais tarde, segurando o crânio de Yorick, na cena do cemitério, Hamlet volta ao assunto: “Agora vá ao aposento de minha senhora e diga-lhe que ponha uma polegada de pintura e que ela deve chegar a este aspecto; faça-a rir com isso” (Now get you to my lady’s chamber, and tell her, let her paint an inch thick, to this favour she must come; make her laugh at that) (5.1). A pintura simboliza aqui o esforço inútil de tentar deter a marcha do tempo. É curioso que o coveiro diz que começou a trabalhar no dia em que Hamlet nasceu (the very day that young Hamlet was born) (5.1). É como se ele dissesse que os preparativos para nossa morada final começam no dia em que nascemos.
Os dois últimos versos do Soneto 82 parecem dar razão a Hamlet, em sua aversão à maquilagem:
\”Esta pintura espessa estaria melhor aplicada
Em faces sem sangue; em você seria um exagero.\”
(And their gross painting might be better used
Where cheeks need blood; in thee it is abus’d.)
De fato, em faces sadias e coradas, a pintura é um exagero. O soneto 83 de Shakespeare é um complemento adequado aos versos acima:
\”Nunca achei que você precisasse de pintura
E portanto à sua beleza não acrescentei pasta;
Achei, ou pensei, que você excedia
A oferta estéril da arte de um poeta;
E portanto adormeci ao relatar,
Que sua própria existência pode bem mostrar
Como a pena é insuficiente
Para falar de valor, e do valor que em você existe.
O silêncio que você impôs a mim, pecador,
Será minha maior glória, estando silente;
Pois mudo não causo dano à sua beleza,
Quando outros, para dar vida, erguem um túmulo.
Há mais vida em um só de seus belos olhos
Do que no louvor de seus dois poetas.\”
(I never saw that you did painting need
And therefore to your fair no painting set;
I found, or thought I found, you did exceed
The barren tender of a poet\’s debt;
And therefore have I slept in your report,
That you yourself, being extant, well might show
How far a modern quill doth come too short,
Speaking of worth, what worth in you doth grow.
This silence for my sin you did impute,
Which shall be most my glory, being dumb;
For I impair not beauty being mute,
When others would give life, and bring a tomb.
There lives more life in one of your fair eyes
Than both your poets can in praise devise.)
O último verso da primeira quadra refere-se a um poeta, que se sente incapaz de descrever a amada com cores tão vivas como as de uma pintura.
A segunda quadra refere-se também a um poeta. Ele confessa que adormeceu (have I slept), talvez na tentativa vã de encontrar palavras dignas de louvar a amada.
Na terceira quadra ele admite que talvez tenha sido melhor permanecer mudo a fazer versos indignos. Outros na tentativa de celebrar a vida (give life), talvez produzam versos sem expressão, que só são capazes de sobreviver ao autor se forem entalhados em algum túmulo.
Os dois versos finais dão a entender que há um poeta rival, pois menciona “seus dois poetas” (both your poets). O soneto termina num belo galanteio: “Há mais vida em um só de seus belos olhos/ Do que no louvor de seus dois poetas”.
Olhos como estes não requerem maquilagem.