O Conto do Inverno (cerca de 1609-1611), com sua divisão quase simétrica em duas metades, de tragédia sombria e romance cômico, ilustra, talvez, mais claramente que qualquer outra peça Shakespeariana, o gênero da tragicomédia. De fato, todos os romances tardios apresentam jornadas de separação, mortes aparentes e chorosas reconciliações. Marina e Thaísa em Péricles, Imogênia em Cimbelino e Ferdinando em A Tempestade, todos supostamente irrecuperavelmente perdidos, são trazidos de volta à vida por dispositivos aparentemente miraculosos. Dos quatro romances tardios, entretanto, O Conto do Inverno usa a estrutura mais formal para evocar a antítese da tragédia e o romance. Ela é bruscamente dividida em metades contrastantes por um intervalo de dezesseis anos. A primeira parte trágica acontece quase inteiramente na Sicília, ao passo que a ação da segunda metade é limitada, em sua maioria, à Boêmia. Na corte da Sicília, vemos o ciúme tirânico produzindo uma clima espiritual de “inverno / Perpetuamente tempestuoso”; na Boêmia, testemunhamos uma paisagem pastoral e a tosa de ovelhas evocando “o doce do ano,” “Quando o narciso começa a mostrar-se” (3.2.212-13; 4.3.1-3). Paradoxalmente, o contraste entre as duas metades é intensificado pelos paralelos entre as duas: ambas começam com Camilo no palco e procedem para cenas de confronto e ciúme nas quais, ironicamente, a causa inocente do ciúme na primeira metade, Polixenes, torna-se o tirano ciumento da segunda metade. O paralelismo relembra-nos da natureza cíclica do tempo e a esperança que ele traz de renovação, conforme movemo-nos da tragédia para a comédia romântica.
Apesar desse motivo, de uma jornada renovadora de uma corte exausta para um interior idealizado, relembrar-nos de Como Quiserem e outras comédias anteriores, sentimos nos romances tardios, e especialmente em O Conto do Inverno, uma nova preocupação com a insensatez trágica da humanidade. A visão da depravação humana é negativista e pessimista, como se infectada pelo espírito melancólico das grandes tragédias. E, por que a humanidade está tão inclinada em destruir a si mesma, a restauração é, ao mesmo tempo, mais urgentemente necessária e miraculosa do que no mundo “festivo” das comédias anteriores. A renovação é miticamente associada com o ciclo sazonal do inverno para o verão.
A tragédia do Rei Leontes parece, à primeira vista, irreversível e aterrorizante, como àquela dos maiores protagonistas trágicos de Shakespeare. Ele sofre de ciúme irracional, como Otelo, e tenta destruir a pessoa a qual toda a sua felicidade depende. Assim como Otelo, seu ciúme origina-se de um medo caracteristicamente masculino de inadequação e rejeição. Diferentemente de Otelo, entretanto, Leontes não necessita de um tentador diabólico tal como Iago, para envenenar sua mente contra a Rainha Hermione. Leontes é aniquilado por suas próprias fantasias. Nenhuma diferença de raça ou idade pode explicar os medos de alienação de Leontes em relação à Hermione. Ela não é imprudente em sua conduta, como sua contraparte no Pandosto (1588) de Robert Greene, o romance em prosa de onde Shakespeare extraiu sua narrativa. Embora Hermione seja graciosamente afeiçoada ao prezado amigo de Leontes, Polixenes, exortando-o a ficar mais tempo na Sicília, ela o faz apenas com a cordialidade necessária pela ocasião e encorajada pelo seu marido. De toda forma, então, Shakespeare remove de Leontes o motivo e a ocasião de uma desconfiança plausível de sua esposa. Todos os observadores na corte da Sicília ficam incrédulos e chocados com as acusações do Rei. Mesmo assim, Leontes não é um personagem antipático e não credível. Como Otelo, Leontes estima sua esposa e percebe com uma intensidade horripilante qual o temível custo que ambos devem pagar pelas suspeitas dele. Não apenas o seu casamento, mas também sua duradoura amizade com Polixenes, seu sentimento de orgulho para com suas crianças e seu prazer pela calorosa consideração de seus súditos, tudo deve ser sacrificado por uma única compulsão esmagadora.
Qualquer que seja a causa psicológica dessa obsessão, ela manifesta-se como uma repugnância contra todo o comportamento sexual. Como o louco Lear, Leontes imagina à lascívia como um fato inevitável do cosmos e da condição humana, o denominador comum mais baixo o qual todas as pessoas (incluindo Hermione) devem rebaixar-se. Ele está persuadido que “É um planeta indecente,” no qual os homens traídos têm “os seus lagos pescados pelo seu vizinho próximo, pelo / Senhor Sorriso, seu vizinho” (1.2.195-201). Os solilóquios torturados de Leontes são carregados de imagens sexuais, de “portões” abandonados, deixando o inimigo entrar e sair “Com bolsa e bagagem,” e de uma “adaga” que deve ser “amordaçada / A fim de que não morda seu mestre” (linhas 197, 206, 156-7). Como em Rei Lear, a ordem é invertida em desordem, a sanidade em loucura, a legitimidade em ilegitimidade. A má conduta sexual é emblemática de um mal-estar universal: “Pois, então o mundo e tudo o que há nele é nada, / O céu que cobre é nada, a Boêmia nada, / Minha mulher é nada” (linhas 292-4). Outros personagens, também, veem o julgamento de Hermione como um teste do valor da humanidade: se Hermione provar-se falsa, Antígono promete, ele tratará sua própria mulher como um cavalo no estábulo e “castrará” suas três filhas (2.1.148). As imagens que prevalecem são de aranhas, veneno, infecção, esterilidade, e de “terra estercada” (linha 158).
A ordem cósmica nunca é, realmente, desafiada, entretanto, mesmo quando o sofrimento humano é muito real e a injustiça à mulher especialmente aparente. As fantasias de Leontes de desordem universal são quiméricas. Sua esposa é, de fato, casta, Polixenes verdadeiro e os cortesãos do Rei leais. Camillo recusa-se a executar a ordem de Leontes de assassinar Polixenes, não somente porque sabe que o assassinato é errado, mas também porque a história não oferece nem um exemplo de um homem “que atacou reis ungidos / E floresceu depois” (1.2.357-8). O cosmo dessa peça é tal que os crimes são invariavelmente e rapidamente punidos. O oráculo Délfico defende Hermione e dá a Leontes um rígido aviso. Quando Leontes persiste em sua loucura, a morte de seu filho Mamillio segue-se como uma consequência imediata. Como Leontes percebe simultaneamente, “A fúria de Apolo, e os próprios céus / atacam na minha injustiça” (3.2.146-7). Leontes, paradoxalmente, felicita o longo remorso que deve submeter-se, pois isso confirma um padrão no universo de causas e efeitos justos. Apesar de, como protagonista trágico, ele ter descoberto a verdade sobre Hermione muito tardiamente e, por isso, ter que pagar muito pelo seu erro, Leontes pelo menos recuperou a fé na bondade transcendente de Hermione. Terminado seu pesadelo, ele aceita e abraça o sofrimento como uma compensação necessária.
A transição para o romance é, portanto, antecipada até certo ponto pela primeira metade da peça, mesmo se o tom dos dois últimos atos seja visivelmente diferente. O velho Pastor sinaliza uma mudança muito importante, quando ele fala a seu filho sobre uma tempestade cataclísmica, e o urso voraz é colocado em oposição com a descoberta miraculosa de uma criança: “Agora te abençoe. Tu te encontraste com coisas morrendo, eu com coisas recém-nascidas” (3.3.110-11). O tempo vem ao palco como o Coro, como Gower em Péricles, para nos lembrar do artifício consciente do dramaturgo. Ele pode “derrubar a lei” e nos carregar dezesseis anos, como se tivéssemos apenas sonhado o ínterim (4.1). Shakespeare exibe à improbabilidade de sua história ao dar à Boêmia uma costa marítima (para aflição de Ben Jonson) e ao trazer ao palco um urso vivo ou um ator vestido de urso (“Sai, perseguido por um urso,” 3.3.57). A narrativa utiliza muitos dispositivos típicos do romance: um bebê abandonado a ermo, uma princesa educada por pastores, um príncipe disfarçado de jovem camponês, uma viagem pelo mar e uma cena de reconhecimento. O amor é ameaçado, não pelo obstáculo físico interno do ciúme, mas pelos obstáculos externos da oposição parental e uma aparente disparidade de classe social entre os amantes. A comédia facilmente encontra as soluções para tais dificuldades, através do desembaraçar da ilusão. Esse mundo cômico também inclui, adequadamente, pastores rústicos, pastoras recatadas, e Autólico, o vendedor ambulante malandro, cujas maquinações contribuem de uma maneira imprevista para o bom resultado do enredo de amor. Autólico é, de muitas formas, o gênio que preside a segunda metade da peça, um personagem tão dominante quanto Leontes na primeira metade e alguém cuja função prazerosa é de fazer o bem “contra minha vontade” (5.2.125). Nesse paradoxo da trapaça convertida surpreendentemente em um final benigno, vemos como a providência cômica do mundo tragicômico de Shakespeare usa dos acontecimentos mais implausíveis e extravagantes para atingir o seu próprio desígnio inescrutável.
O final romântico convencional é preenchido, entretanto, com uma tristeza e um mistério que leva a peça muito além do que é usual na comédia. Mamillio e Antígono estão realmente mortos, e esse fato irredimível não é esquecido nos momentos felizes finais da peça. Hermione, apesar de vingada pelos deuses, sofreu vergonha pública, a morte de uma criança, a separação de seu outro filho, e uma isolação prolongada de seu marido; como Imogênia em Cimbelino, ela teve que suportar às consequências da fragilidade masculina e, assim, redimir seu marido através de seu sofrimento. Seu marido, colocando-a de lado, deve, como Péricles, redescobrir e aprender a estimar à mulher que ele uma vez escolheu e que, agora, está envelhecida; ele deve reconfirmar o seu casamento com ela, mesmo enquanto aprende a aceitar o casamento de sua filha com um homem mais jovem. Todas essas reviravoltas cruciais dependem do mais notável distanciamento de Shakespeare de sua fonte, o Pandosto de Greene: Hermione é trazida de volta à vida. Todos os observadores consideram esse evento, e a redescoberta de Perdita, como grosseiramente implausíveis, “assim como uma velha estória cuja verdade está sobre forte suspeita” (5.2.29-30). O próprio título da peça, O Conto do Inverno, reforça esse sentido de improbabilidade inocente. Por que Shakespeare enfatiza esse paradoxo enigmático de uma realidade inacreditável, e por que ele deliberadamente ilude sua plateia à acreditar que Hermione está, de fato, morta (3.3.15-45), usando um tipo de truque teatral não encontrado em nenhuma outra peça de Shakespeare? A resposta pode bem ser que, nas palavras de Paulina, precisamos despertar nossa fé, aceitando uma narrativa de morte e retorno à vida que não pode, em último caso, ser compreendida pela razão. No nível racional, a nós nos é contado que Hermione foi mantida escondida por dezesseis anos, para que seja satisfeita a condição do oráculo, que Leontes deve viver sem um herdeiro (e, por isso, sem uma esposa) até que Perdita seja encontrada. Tal explicação parece psicologicamente incompreensível, entretanto, pois demanda que Hermione viva em uma longa isolação e que Paulina sirva como a consciência do Rei por um período de tempo muito longo, sem nenhuma forma dos participantes saberem quando seus sofrimentos terminarão. Em vez disso, somos atraídos para uma interpretação emblemática, tendo em mente que esta é mais uma alusão evocativa do que uma verdade completa. Ao longo da peça, Hermione foi repetidamente associado com a “Graça” e com a deusa Prosérpina, cujo retorno do mundo subterrâneo, depois de “Três azedos meses muito demoradamente se finaram” (1.2.102), sinalizando o início da primavera. Perdita, também associada com Prosérpina (4.4.116), é recebida pelo seu pai “Como a primavera é recebida pela terra” (5.1.152). A ênfase no laço de pai e filha, tão característico das peças tardias de Shakespeare, e especialmente em seus romances, vai consideravelmente além do patriarcalismo das peças históricas anteriores de Shakespeare, em suas explorações dos relacionamentos familiares. Paulina tem um papel similarmente emblemático, aquele da Consciência, pacientemente guiando o Rei a uma renovação divinamente apontada de sua felicidade. Paulina fala de si mesma como uma figura artística, como Próspero em A Tempestade, realizando prodígios de ilusão, apesar de rejeitar à assistência dos poderes malignos. Essas alusões emblemáticas não furtam à história de seu drama humano, mas emprestam uma significância transcendente à agridoce história de Leontes de erro pecaminoso, aflição e uma inesperada segunda felicidade.
Nas décadas recentes, no palco, a peça mostrou sua notável efetividade dramatúrgica, especialmente na restauração de Hermione a seu marido como uma estátua viva e que respira. Peter Brook, no Teatro Phoenix de Londres, em 1951, escolheu um cenário permanente para ressaltar à ação rápida e maleável da peça e sua necessidade por uma plateia que participa imaginativamente na modelagem da ilusão teatral. O cenário de Trevor Nunn, em Stratford-upon-Avon, em 1969, era a de uma caixa branca de três lados onde nada era representado realisticamente. Nunn e John Barton, em Stratford-upon-Avon, em 1976, visualizaram ursos em todos os lugares: nos temas dos tapizes de parede e carpetes, em uma pele de urso envolvida em um sofá. A violenta irracionalidade do Leontes de Ian McKellen parecia plausível em tal paisagem simbólica e mítica. Na produção de Terry Hands, em 1986, também em Stratford-upon-Avon, um tapete de urso gigante no sereno assoalho do palácio da Regência de Leontes, durante a primeira metade da peça, torna-se, na Boêmia, o urso vivo que rasga o ombro de Antígono. Sobretudo, o aparente trazer de volta à vida da estátua de Hermione na cena final provou-se ser, repetidas vezes, um coup de théâtre magistral. O que vemos no teatro é, claramente, uma ilusão, mas a que nível? Devemos compreender que a estátua ganhou vida? Muito depende da habilidade da atriz em aparecer inerte e então aquecer-se ao toque de seu marido. O momento é, de fato, calculado para despertar nossa fé no milagre da renovação e no poder da arte de confundir ilusão e realidade. Somos levamos à ponderar profundamente os mistérios da nossa própria existência incerta.