Henrique V (1599) é a expressão culminante de Shakespeare no gênero da peça de história Inglesa. Diferentemente da última e atípica Henrique VIII (1613), que é separada das outras peças históricas de Shakespeare cerca de catorze anos, Henrique V congrega os temas históricos com os quais Shakespeare esteve fascinado por toda uma década. A peça, publicada pela primeira vez em um quarto reconstruído por memória e abreviado em 1600, deve ter sido escrita logo depois de 2 Henrique IV, talvez como uma produção de abertura para o novo teatro dos Homens de Chamberlain no Bankside, o Globe, em 1599. De fato, a peça não cumpre completamente a promessa feita em 2 Henrique IV de “continuar a história, com Sir John nela, e fazer você feliz com a bela Katharine de França.” Falta Falstaff. Como antes, Shakespeare aparentemente viu um grande padrão na sua sequência de quatro peças, (que começou com Ricardo II) mas improvisou quando escrevia cada parte. Apesar desses ajustamentos menores no plano geral, entretanto, Henrique V claramente pretende trazer à completa realização a educação de um príncipe-político e ilustrar às artes da monarquia política que o Príncipe Hal extraiu de suas experiências nas peças anteriores.
Em um sentido, também, Henrique V resume as conquistas da peça histórica Inglesa, não somente para Shakespeare, mas também para outros dramaturgos populares. A peça de história patriótica, nascida na excitação da era da Armada, imediatamente após 1588, seguiu seu curso quase até 1599 e seria, em breve, suplantada por outros gêneros dramáticos, assim como a sátira e a tragédia de vingança. As realidades políticas sombrias e complexas já alteravam o flutuante humor no qual a peça histórica nasceu: a envelhecida Rainha Elizabeth estava próxima da morte e sem herdeiros Protestantes, enquanto que o medo de outra invasão ameaçava. Em Henrique V, sentimos a iminência do fim de uma era, pois a peça celebra às realizações da monarquia Inglesa e examina os seus limites.
Henrique V tornou-se uma peça controversa, principalmente porque nossas experiências recentes com a guerra nos tornaram cautelosos com líderes políticos que, em nome do patriotismo, declaram o direito de propriedade e invadem outro país. George Bernard Shaw é proeminente entre aqueles que deploraram Henrique como um detalhista exagerado e um militarista complacente e imperialista. Muitos críticos historiadores, por outro lado, avisam dos perigos de uma leitura anacrônica, de uma perspectiva moderna, e argumentam que Henrique é um modelo admirável de conduta de acordo com as noções Renascentistas da arte do governo e da liderança militar. Qual é a atitude de Shakespeare em relação a esse herói de guerra? Ele simpatiza com a condescendência de Henrique em relação à França e sua ordem para que cada soldado mate seus prisioneiros Franceses? Ou a admiração de Shakespeare é qualificada por reservas irônicas? Como é usual na obra de Shakespeare, a perspectiva é complexa e equilibrada. A peça nos puxa para duas direções. Embora o Coro, que interpreta a peça para nós, aprove a postura militar de Henrique, a retórica grandiosa da guerra é consistentemente solapada pelas revelações práticas dos motivos autointeressados das pessoas. Esse contraste entre a ilusão retórica e a realidade política estende-se das justificações da campanha Francesa de Henrique a seu casamento de estado com Katharine de França. Sobre a questão ética de matar os prisioneiros Franceses, por exemplo, a peça nos oferece impressões contraditórias e aparentemente irreconciliáveis. No final de 4.6, Henrique ordena que “todo soldado” deve “matar seus prisioneiros,” evidentemente porque os Ingleses estão sob ataque e não podem reservar homens para guardar aqueles que foram capturados. Em 4.7 (linhas 1-10 e 54-5), entretanto, Gower nos conta que o Rei deu a ordem em retaliação ao massacre pelos covardes Franceses dos garotos guardando a bagagem Inglesa. Similarmente, nas vésperas da batalha de Agincourt, somos deixados para tirar nossas próprias conclusões ante as conversas do Rei Henrique com seus soldados (4.1.98-227). Ele está escapando da questão se sua causa é justa ao voltar-se para um tópico realmente muito diferente, da responsabilidade pelos pecados de outrem, ou está simplesmente testando seus homens com questões difíceis para prepará-los para a batalha? Quebra-cabeças irônicos como esses provavelmente nunca se desenvolvem em desilusões abertas nessa peça, apesar de alguns críticos modernos e diretores argumentarem o contrário: as ironias são, talvez, ao invés, o reconhecimento de um tipo especial de moralidade pertencente à monarquia.
A habilidade na retórica é a chave do sucesso de Henrique – ao desafiar o Delfim Francês, ao preparar às tropas para a batalha, ou ao cortejar à princesa Francesa para ser sua rainha. Como o Arcebispo de Canterbury nota com aprovação, a versatilidade do Rei Henrique como um retórico aplica-se a todas as disciplinas vitais da monarquia: Henrique pode “raciocinar sobre o divino,” “debater os assuntos da nação,” “discursar sobre a guerra,” lidar “com qualquer causa política,” e, em todas essas matérias, falar em “sentenças doces e melíferas” (1.1.39-51). Através das artes da linguagem, Henrique mostra devoção, sabedoria, sagacidade administrativa, esperteza política e impavidez militar. Como a peça contemporânea Júlio César (1599), Henrique V está interessada com as técnicas de persuasão. (Ricardo III, anteriormente, é, também, uma peça altamente retórica, apesar de principalmente através do exemplo negativo do comportamento tirânico.) Entretanto, não importando o quanto nós nos influenciemos emocionalmente pela retórica, compreendemos que a figura pública de Henrique V é uma máscara, que por detrás dela podemos perceber pouco. Apenas raramente damos uma olhadela no afável jovem companheiro das peças Henrique IV. O Rei Henrique aceitou a responsabilidade de interpretar um papel político. Tal papel o impede de ter uma identidade privada e separada, mesmo – ou especialmente – ao escolher uma esposa. E esse papel complica nossa tarefa de avaliar a sinceridade de suas declarações. Ele é genuinamente devoto, ou apenas aprendeu a utilidade das declarações devotas para influenciar o coração das pessoas? Quais são, especialmente, os seus motivos para fazer guerra contra a França?
Shakespeare poderia ter iniciado essa peça com a excitante cena (1.2) na qual Henrique, encorajado pelos seus conselheiros, emite um insolente desafio aos embaixadores Franceses. Em vez disso, Shakespeare presenteia-nos com um vislumbre anterior sob a aparência patriótica. Parece que o Arcebispo de Canterbury, ameaçado com um projeto de lei no Parlamento designado para retirar a melhor metade das possessões da Igreja, resolveu defender-se com uma contraproposta, por meio da qual a Igreja daria a Henrique uma soma muito substancial de dinheiro para sua campanha na França, contanto que o ofensivo projeto de lei pudesse ser convenientemente esquecido. O Arcebispo já estava negociando com Henrique e deduz que o plano funcionará. Essa revelação não é chocante para nós; ela meramente revela como funciona o processo político. A débil tendência do anticlericalismo sugere que Henrique será admirado por fazer pressão em seu clérigo com tamanho sucesso; eles são ricos e podem arcar o suporte à guerra. Em qualquer caso, o efeito dramático é o de mostrar como os motivos práticos dos homens afetam suas retóricas. Quando, na cena subsequente, o Arcebispo proferi um discurso público sobre a reivindicação Inglesa sobre a França, sabemos que esse erudito prelado tem um compromisso prévio e autointeressado com a guerra. Seu intrincado argumento dinástico, com o qual ele proclama ser “tão claro como o sol de verão” (1.2.86), dá à guerra uma justificação pública muito necessária. As questões de Henrique indicam não apenas a sua preocupação genuína em relação a legitimidade de sua reivindicação, mas também sua necessidade política pela sanção da Igreja a sua causa; ele já reivindicou certos ducados Franceses e deve ter a aprovação oficial da Igreja daqueles ducados antes de poder continuar. Ele similarmente necessita do reforço de seus nobres, que também têm suas próprias razões para aprovarem à campanha. Henrique habilidosamente orquestra a cena e produz o efeito desejado do consentimento unânime e patriótico.
Apesar de nunca diretamente declarado, os próprios motivos de Henrique para ir à guerra devem também combinar um zelo sincero com autointeresse calculado. Como rei, ele almeja recuperar o território Francês que a Inglaterra governou nos grandes dias de Poitiers e Crécy. Como homem, ele mostra irritação com a desdenhosa provocação do Delfim; Henrique deve ainda empenhar-se em superar sua reputação de perdulário e deve provar-se merecedor da comparação honorável com seus grandes predecessores. Politicamente (e esse motivo permanece o mais escondido), Henrique absorveu o sábio conselho de se pai em “ocupar as frívolas mentes / Com batalhas estrangeiras” (2 Henrique IV, 4.5.213-14), para enfraquecer a oposição política em casa ao unir o ressentimento Inglês contra um bode expiatório estrangeiro.
As exigências da guerra proveem Henrique com uma oportunidade de proceder contra seus inimigos políticos. Ele prende o Conde de Cambridge, o Lorde Scroop e Sir Thomas Grey em Southampton sob acusação de conspiração com a França. A cena (2.2) é, para Shakespeare, atipicamente tendenciosa. A nós nunca é dito que Cambridge é o principal pretendente ao trono Inglês, filho do Duque de York, casado com Anne Mortimer, e fundador da reivindicação Yorkista nas guerras dos York-Lancastres – o tipo de rival o qual Shakespeare em qualquer outro lugar retrata com compreensão. Em vez disso, a retórica do Coro ao Ato 2 flagrantemente nos avisa para esperarmos “inferno e traição” (linha 29). Esses três conspiradores, como Judas, diz o Coro, barganharam o rei deles por ouro. (De fato, Cambridge insiste que seu motivo não foi financeiro, apesar de não ter permissão de falar qual foi.) O dramaturgo não os dá motivos complexos; eles são pecadores, tão horrorizados com suas próprias intenções que eles estão verdadeiramente gratos em serem pegos. A cena serve, através desses dispositivos retóricos, para fortalecer a reivindicação de Henrique ao trono Inglês, assim como aos territórios em França. A oposição a essa guerra durante o tempo de guerra é, na visão do Coro, simplesmente traição; todas as evidências persuasivas das reivindicações dinásticas rivais estão ocultas a nossa visão.
A comédia também contribui para a criação da imagem do herói em Henrique V. O grupo da taverna está pronto, apesar de desprovidos da encantadora companhia do agora falecido Falstaff, e mais distante de Henrique do que nas peças históricas anteriores. Somente por pouco tempo e disfarçado, na noite anterior à batalha, o Rei encontra Pistola. O nome de Bardolfo vem a Henrique como uma lembrança de um passado distante, quando ele ouve que Bardolfo está prestes a ser executado por roubar igrejas Francesas. Henrique confirma a sentença: “Nós deveríamos remover todos esses ofensores” (3.6.107). Qualquer que seja o choque momentâneo que Henrique pode sentir, ele permanece constante ao seu banimento de Falstaff. E, apesar de Shakespeare clamar pelas nossas simpatias no relato sério-cômico da morte de Falstaff, vista através da inocência infantil da Senhora Quickly, não há esperanças de reconciliação entre Henrique e seus parceiros de outrora. Pistola, apesar de sua linguagem ornamental, é um pouco mais que um fanfarrão, covarde e ladrão. Os farristas da taverna são agora oportunistas de guerra, baderneiros tais como encontrados em todos os exércitos, charmosos velhacos que merecem ser encurralados por homens mais honrados.
Pistola recebe seu castigo do Captão Fluellen, que substitui Falstaff como a principal figura cômica, tanto em proeminência (seu papel é o segundo em extensão depois do de Henrique) quanto em proximidade ao Rei. Fluellen é um Galês, como o Rei Henrique, que nasceu em Monmouth, que era então Gales (por isso a apropriação de seu título prévio de Príncipe de Gales). Fluellen está orgulhoso desse parentesco. Por que é leal e valente, ele é uma pessoa digna de ser vista na companhia de Henrique. Entretanto não há nada do brilhante duelo de argúcias que conectava anteriormente Henrique e Falstaff. Fluellen é um personagem engraçado, rapidamente identificado por tais dispositivos comicamente exagerados, como sua pronúncia Galesa e seus maneirismos na fala, seu antiquado e um tanto quanto fanático sentido de decoro militar, e sua devoção às antigas regras da disciplina militar. Fluellen é uma caricatura, sujeito ao suave riso satírico, e há uma nota de condescendência no hábito de Henrique de fazer piadas práticas com o capitão. A nossa tendência é de rir dele, não com ele. (Henrique faz piadas práticas às custas de outros também, tal como o soldado chamado Williams, como quem ele troca luvas.) Diferentemente de Falstaff, a Fluellen falta perspectiva sobre sua própria pomposidade. Ele é um fanático pelo dever, e é possível sentir que Henrique está tirando uma injusta vantagem, quando escolhe alguém que é tão vulnerável ao riso. Suspeitamos que Henrique esteja usando às pessoas novamente, reforçando sua imagem pública como o rei com o toque comum, emprestando um pouco da cor Galesa para os propósitos da criação de mitos. Ao mesmo tempo, Fluellen é constante, honrado, e um crédito para seu compatriota Henrique. Com seus companheiros capitães da Escócia, Irlanda e Inglaterra, ele demonstra que os Britânicos podem lutar juntos, mesmo se eles antagonizam uns aos outros com seus orgulhosos costumes regionais. Estes costumes devem ser exaltados como parte do caráter Britânico; porque Pistola oferece um insulto gratuito da tradição Galesa de usar uma planta [leek, alho-poró, símbolo nacional de Gales] no chapéu no Dia de Santo Davi ele deve ser surrado.
Assim como os personagens cômicos e os inimigos políticos de Henrique, Henrique V é retoricamente tendenciosa em sua representação dos Franceses. O patriotismo é uma emoção cru, e Henrique não pode apelar a isso sem despertar a hostilidade em relação ao inimigo. (Suficientemente irônico, a grande versão em filme de Henrique V por Laurence Olivier foi criada em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, para despertar às emoções nacionais contra os Alemães, em vez dos Franceses, e com completo sucesso. Com tal disposição patriótica, funcionaria contra qualquer inimigo.) Os Franceses são retratados como arrogantes, amplamente superiores em números, invejosos uns dos outros, desdenhosos com suas próprias lideranças (especialmente o Delfim), traiçoeiros (atacando os garotos das bagagens) e medrosos. Mesmo a piadas deles são caracterizadas pelo tipo de obscenidade bestial não atraente (3.7.48-68). Os Britânicos – “nós poucos, nós os felizes poucos” (4.3.60) – estão cansados e excedidos em número, mas são invencíveis e aparentemente protegidos por Deus. A ordem de Henrique de matar os prisioneiros Franceses e sua descrição dos estupros e pilhagens que seus soldados cometerão se Harfleur não se render (3.3.1-27), com efeito, levanta sérias questões sobre a moralidade da guerra sob o melhor dos reis; a peça pode ser cáustica em relação à nobreza Francesa, mas não necessariamente absolve os Ingleses da responsabilidade. Mesmo aqui, entretanto, somos levados a acreditar que, porque os Franceses são execravelmente governados, a França irá sofrer menos sob o governo Inglês. Henrique cuida para que seus soldados não espoliem o interior Francês, exceto sob condições de “necessidade” militar. Somente em Montjoy, o Duque de Burgundy e Katharine da França, Shakespeare oferece retratos redimidos do caráter Francês e, nesses exemplos, os termos de ascendência hierárquica parecem claros: dominância masculina Inglesa, gentil submissão Francesa. Katharine torna-se “la belle France,” retratada no eloquente discurso reconciliatório de Burgundy como se necessitasse de muita supervisão competente.
As mulheres existem apenas nas margens dessa peça de guerra, como nas outras peças históricas de Shakespeare. O papel da Senhora Quickly serve principalmente como lembrete para nós que os homens lutam um contra o outro pela posse das mulheres; a ridícula discussão de Pistola e Nym pela Senhora Quickly antecipa a forma na qual Katharine de França será um dos principais espólios da guerra. As mulheres também esperam pacientemente em casa enquanto seus homens lutam, e cuidam deles quando estão doentes. A recordação da morte de Falstaff pela Senhora Quickly (2.3.9-25) é muito hábil em sua evocação de uma suave solicitude, piedade iletrada e erotismo despercebido. Mais tarde, em França, Pistola pausa com pesar em relação às novidades da morte de sua esposa de doença venérea (5.1.80-1). Katharine de França, apesar de amplamente superior na escala social, encontra seu papel como uma mulher surpreendemente circunscrita. Nós a vemos pela primeira vez aprendendo Inglês de Alice, sua dama de companhia (3.4). Por que ela está aprendendo Inglês? A razão política óbvia, nunca explicitamente declarada, emerge com um tipo de violência: a cena da lição de Inglês segue imediatamente depois do ultimato do Rei Henrique aos cidadãos de Harfleur a entregarem-se ou suas mulheres seriam estupradas e suas crianças perfuradas pelas lanças Inglesas (3.3.27-41). Katharine aceita seu destino com grande encanto, como se não tivesse outra escolha exceto esse caminho. Nós concluímos da cena dela com Alice que ela é uma mulher de espírito, que pode ser imperiosa, vã e curiosa em relação ao sexo. Porque ela também é muito Francesa, a cena do cortejo no Ato 5 pode jogar comicamente com as diferenças de temperamento entre ela e Henrique, que é tão Inglês quanto ela Francesa. Essas diferenças tornam Henrique e Katharine potencialmente compatíveis através da complementariedade – homem e mulher, soldado e dama, Inglês e Francesa – mas a combinação é patentemente hierárquica no sentido de conquistador e conquistado. (Emma Thompson, na versão em filme de Kenneth Branagh em 1989, traz para o papel de Katharine uma interpretação feminista graciosa e persuasiva de uma mulher independente que é decididamente cética em relação ao cortejo o qual ela é sujeita, mas mesmo assim descobre que não tem escolha a não ser capitular ao charme de Henrique – isto é, Branagh – e aos imperativos da diplomacia internacional.) Historicamente, sabemos que o produto da união sexual deles, Henrique VI, trará um final deprimente a harmonia de discórdias que preside indecisamente o final de Henrique V.
Henrique corteja Katharine com elegância real, apesar do reconhecimento mútuo tácito que o cortejo é, sobretudo, uma questão de estado, no qual eles devem interpretar papéis predeterminados. O indivíduo dentro de Henrique V dá espaço para a personalidade pública, mas ele nunca perde seu estilo. Ele sempre consegue ser verdadeiro consigo mesmo, tanto como pretendente quanto como um soldado. Nós o vemos disfarçado, socializando com os soldados comuns de seu acampamento nas vésperas da batalha, sinceramente discutindo com eles a moralidade da guerra. Nós o vemos, com amável inconsistência humana, cobiçando toda a glória da vitória sobre os Franceses e então apelando para que seus soldados deem apenas a Deus o crédito por aquela vitória. Mesmo se, em certos momentos, estejamos menos atraídos por esse bem-sucedido guerreiro e político do que em relação ao despreocupado jovem de 1 Henrique IV, nós ainda podemos honrar a escolha de Henrique pela maturidade responsável e ver que esta é compassivamente auto-sacrificante. Um rei não pode ser como os outros homens, e Henrique está disposto a aceitar esse preço da liderança.
O Coro apresenta Henrique V a nós como se ela fosse um poema épico, assim como um drama. Henrique é um herói épico, definido em termos de alusões míticas e abstrações. Ele é comparado a Marte, o deus da guerra, com a Penúria, Espada e Fogo preso aos seus calcanhares, agachado e pronto para emprego. Ele é o “espelho de todos os reis Cristãos,” e seus seguidores são “Mercúrios Ingleses” (2.0.6-7) com calcanhares alados. A Expectativa Personificada senta no ar, prometendo coroas para Henrique e coroas menores para seus seguidores. A frota de navios de Henrique no Canal da Mancha torna-se “Uma cidade dançando nas inconstantes ondas” (3.0.15). Nas vésperas da batalha, entre seus irmãos, amigos e compatriotas, Henrique aquece cada coração com “a animada semelhança e a doce majestade” e com sua “generosidade universal como o sol” (4.0.40-3). Ele proíbe o orgulho vanglorioso e dá crédito a sua vitória “totalmente de si para Deus” (5.0.22).
A ação que o Coro descreve é consideravelmente épica, conforme move-se da Inglaterra à França e retornando, saltando por sobre o tempo, avaliando todos os níveis da sociedade da nação Inglesa, retratando famosos encontros militares aparentemente mais adequados à narração épica (ou para o filme, como o longa de Laurence Olivier, de 1944, e a versão mais recente em filme de Kenneth Branagh brilhantemente demonstram) do que ao palco. As limitações do palco estabelecem, de fato, importantes pressões sobre o argumento do Coro. Ele desculpa-se com os espectadores pelos “espíritos insossos e não elevados” que ousaram produzir um objeto tão vasto “Nesse indigno andaime,” nessa “cabine” ou o “O de madeira” (Prólogo). A peça confina os “poderosos homens” “Em salas pequenas,” ”Deformando de início o curso inteiro de suas glórias” (Epílogo).
Essa apologia soa como elegante modéstia da parte de Shakespeare, ao conceder a verdade da objeção de Ben Jonson que poucos atores empregados com espadas enferrujadas podem dificilmente fazer justiça às grandes guerras Inglesas do passado. Henrique V não é uma peça neoclássica Jonsoniana. Paradoxalmente, entretanto, o reconhecimento de Shakespeare dos meios limitados a sua disposição para criar um espetáculo mimético equivale a uma defesa de seu próprio teatro da imaginação. Através dos repetidos incentivos do Coro que nós usemos às “forças imaginárias” para fornecer o que falta necessariamente aos atores e ao teatro, Shakespeare nos convida, como espectadores e parceiros, para o seu mundo artístico. A peça torna-se uma jornada de pensamento, de criação de “poder imaginário”. Quando Shakespeare e sua companhia de atuação falam de cavalos, nós temos que “vê-los / Imprimindo suas orgulhosas patas na terra” (Prólogo). Isso não é para minimizar a importância da experiência teatral, porém, de fato, totalmente o contrário, desde que somos instruídos a liberar-nos através daquela experiência teatral e a recriá-la com os meios do roteiro e da visão épica de Shakespeare. O palco de Shakespeare, desprovido de cenário, confiando em bons atores e nas palavras que eles falam, torna-se, através de sua flexibilidade, mais versátil ao criar aquela visão do que o mais ornamentado e mecanicamente sofisticado teatro ilusionista.
Nada ilustra melhor a controversa e conveniente natureza dessa peça do que a história das produções recentes, no palco, em filme e televisão. Uma vez vista como uma defesa leal da grandeza nacional da Inglaterra, tanto que Winston Churchill pôde invocar o famoso discurso de Henrique antes da batalha de Agincourt (“Nós poucos, nós os felizes poucos”) em celebração da “mais pura hora” Britânica, da defesa da Inglaterra contra a Alemanha Nazista, Henrique V estava destinada a tornar-se, nos anos de desilusão que se seguiram a Segunda Guerra Mundial e, especialmente, durante a era do Vietnã, um veículo para uma visão satírica e consternada da guerra. Os diretores às vezes escolhem o garoto que acompanha Pistola, Bardolfo e Nym para ser levado à França e brutalmente assassinado na frente da plateia pelos soldados Franceses. (O roteiro não especifica essa ação.) Uma produção da Royal Shakespeare Company, em 1964, dirigida por Peter Hall, mostrou a influência de Bertolt Brecht e Jan Kott (autor de Shakespeare Nosso Contemporâneo) ao encenar a Batalha de Agincourt em escuridão terrível, com reminiscências da atrocidade de Guernica, da Guerra Civil Espanhola, celebrada pela famosa pintura de Pablo Picasso sobre o assunto. Em diversas produções, o Rei Henrique é representado como um insolente devoto da guerra imperialista, ou um político calculista para quem mesmo o negócio do cortejo é uma matéria de cansativa necessidade diplomática (como no retrato de Ian Holm em Stratford-upon-Avon em 1964). Alternativamente, Henrique às vezes é visto como um herói hesitante, intensamente afinado com a absurdidade do que o destino lhe traz. Alguns desses contrastes notáveis podem ser discernidos nas diferenças entre a produção da Segunda Guerra Mundial em filme de Olivier e àquela de Branagh em 1989, na esteira do Vietnã e do episódio das Falklands.