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            Apesar de Tito Andrônico ter sido distinguida por alguns críticos como indigna do gênio de Shakespeare – T. S. Eliot chamou-a “uma das peças mais estúpidas e sem inspiração já escrita” – a recente história da performance mostra que Tito pode ser brilhantemente bem-sucedida com as plateias. Em sua produção memorável em Stratford-upon-Avon em 1959, Peter Brook escolheu interpretar a entrada da violentada e mutilada Lavínia (Vivien Leigh) com fitas escarlates penduradas em seus pulsos e boca, em uma estilização visual que deu à violência uma seriedade emocional até mesmo enquanto evita o sangrento realismo. As longas fitas traduziam o texto em símbolos visuais. Tito (Laurence Olivier) era um sofrido veterano desde o início da peça, desgastado pela guerra, semelhante a Lear em seus sofrimentos e agonias de desilusões. A produção mais realista de Deborah Warner, no Teatro Swan, Stratford-upon-Avon, em 1987, com Sonia Ritter como Lavínia, enfatizava o horror do estupro e sua dolorosa relevância para um mundo do final do século vinte profundamente preocupado com os direitos humanos e especialmente com a vitimização da mulher. As interpretações de Tamora nesta e em outras produções variamente a viram como exótica, sexualmente magnética, astuta, brincalhona e profundamente sádica. Mais recentemente, uma versão inovadora em filme de Julie Taymor, com Anthony Hopkins como Tito, fascinou uma plateia mais ampla com essa relativamente desconhecida peça de violência gratuita. Hopkins mostra quão repulsivamente o humor negro pode ironizar os efeitos da crueldade bruta e transformar nosso riso em uma tentativa de compreender a aparentemente insondável propensão da humanidade pela desumanidade. A crítica recente, também, considerou Tito seriamente como um estudo sobre a violência que é dolorosamente relevante para nossa experiência moderna.

            Tito Andrônico é, sem dúvida, uma peça do período inicial. Publicada primeiramente in quarto em 1594 “como foi interpretada pelo Right Honorable [título honorífico de conselheiro de estado ou juiz] Conde de Pembroke, e o Conde de Sussex e Servidores,” ela poderia ter sido escrita no início de 1590-1591 ou mesmo antes. A alusão no Diário do dono de teatro e diretor Philip Henslowe em 24 de Janeiro de 1594, a uma nova produção pelos Homens de Sussex de “Titus & Ondronicus” pode referir-se a uma nova peça ou a uma recém revisada ou recém adquirida pelo companhia. A Tito Andrônico de Shakespeare estava, assim, completamente separada no tempo das grandes tragédias; Romeu e Julieta é a outra tragédia (excluindo as peças de história Inglesa) da década anterior a 1599. Ademais, a peça pode não ser inteiramente de Shakespeare. As primeiras três cenas (Ato 1, juntamente com as cenas 1 e 2 do Ato 2) e a primeira cena do Ato 4 foram plausivelmente atribuídas a George Peele. Os dois dramaturgos parecem ter trabalhado independentemente em suas partes, com algumas discrepâncias resultantes. Shakespeare foi, aparentemente, responsável pelo design geral da peça. Mesmo assim, Tito Andrônico estava completamente separada no tempo e em autoria colaborativa das grandes tragédias que Shakespeare produziria, a maioria uma década ou mais depois. Como podemos responder e avaliar um aprendizado em tragédia que é tão isolado em termos de carreira artística das tragédias maduras que consideramos entre suas maiores realizações?

            Tito Andrônico contém referências livrescas à autores clássicos – outra indicação provável de uma composição precoce. Nenhuma outra tragédia, e talvez nenhuma outra peça de Shakespeare, revela tal evidência direta de aprendizado juvenil. Algumas de suas muitas frases não traduzidas do Latim são favoritas das crianças da escola, assim como “Integer vitae” de Horácio, que é imediatamente reconhecida por Chiron. “Eu a li na gramática há muito tempo,” ele diz (4.2.23). Alusões clássicas comparam os personagens principais da peça com Enéas e Dido, a Rainha de Cartago; Heitor, o Rei Príamo e a Rainha Hécuba de Tróia; Ajax e Odisseu entre os Gregos; Hércules, Prometeu, Orfeu, Coriolano, Semiramis a sereia Rainha da Assíria, Píramo, Cornélia, a mãe de Gracchi, Actaeon; e outros. Ademais, essas referências eruditas estão longe de serem uma mera exibição de aprendizado juvenil; através de uma habilidade controlada e autoconsciente, elas nos permitem explorar um mundo trágico cujas dimensões morais são definidas em termos de modelos literários clássicos. Especialmente significantes são as referências às vítimas de estupro e vingança: Virgínia a Romana, assassinada por seu pai Virgínio para salvá-la do estupro; a casta Lucrécia, estuprada por Tarquínio; Philomel, estuprada e desprovida de sua língua por Tereu, cujo nome ela então revela ao tecer a informação em um tapete; e Procne, sua irmã e a esposa de Tereus, que se vinga de Philomel ao servir o filho de Tereu, Itys, para seu pai em uma refeição.

            Tito Andrônico não relata eventos históricos atuais. Shakespeare, auxiliado por Peele, parece tê-la reunido de uma miscelânea de fontes, nenhuma delas provendo um modelo narrativo completo. Um panfleto do século dezoito chamado A História de Tito Andrônico, outrora pensada como uma versão confiável de um original que os dramaturgos tiveram acesso, foi agora compreendida como uma expansão da história baseada em uma balada de 1594 que, por conseguinte, foi imitada na peça subsistente, para que essa peça fosse a primeira na linha de sucessão. Os dramaturgos basearam-se em materiais variados. As Metamorfoses de Ovídio deram-lhes várias lendas, especialmente aquelas de Tereu, Philomel e Procne. Tiestes de Sêneca oferecia em uma forma dramática uma fábula similar de vingança, na qual dois filhos são assassinados e servidos aos seus pais em um horrendo banquete. Mesmo que Shakespeare tenha utilizado tais prosas e fontes dramáticas ao escrever sua maior parte da peça, entretanto, alguns estudiosos acreditam que uma ou mesmo duas peças sobre Tito podem ter existido antes da de Shakespeare e que podemos deduzir as contribuições delas a sua obra ao examinar duas peças continentais baseadas nelas: Tragaedia van Tito Andronico (Alemão, 1620) e Aran en Titus (Holandês, 1641). Possivelmente uma das peças anteriores foi “Titus & Vespacia” que entrou no Diário de Henslowe em 11 de Abril de 1592, como interpretada pelos Homens do Lorde Strange. Mesmo se os dramaturgos usaram dessas fontes dramáticas e de prosa, entretanto, eles também conheciam bem os originais de Ovídio e Sêneca que os inspiraram. A tragédia de vingança Elisabetana, contendo algumas influências de Sêneca (apesar que esses elementos de Sêneca não devem ser super-enfatizados), foi uma forte influência formativa, especialmente A Tragédia Espanhola (cerca de 1587) de Kyd. O fenomenal sucesso recente de Marlowe deixou sua marca: o assassinato de seu filho Mutius por Tito relembra Tamburlaine Parte II, e a vanglória desenfreada similar ao Vício de Aaron retoma O Judeu de Malta. As leituras dos dramaturgos de Virgílio são evidentes não apenas nas referências repetidas a Dido e Enéas, mas também na escolha do nome Lavínia (A Eneida, Livro 7 ff.)

            Como essa considerável lista de influências sugere, Tito Andrônico permanece próxima aos seus modelos, por mais originais que sejam seus contornos. Apesar da peça antecipar vários motivos das tragédias posteriores de Shakespeare – a ingratidão de Roma em relação ao seu honrado general em Coriolano, o factionalismo político Romano de Júlio César, a debilidade da velhice confrontada com a bestialidade humana em Rei Lear Tito Andrônico é o tipo de peça de vingança que se espera de um jovem dramaturgo e colaborador talentoso no início de 1590. Os modelos bem-sucedidos para a escrita trágica nesses anos eram Kyd e Marlowe. Greene, Peele e outros pagavam a esses dois à lisonja da imitação. Assim, também, até um ponto, o fez Shakespeare. Podemos entender melhor Tito Andrônico se a vemos como uma peça de vingança no viés dos predecessores imediatos de Shakespeare, com substancial assistência de Peele e com adições generosas do páthos Ovidiano. Não devemos buscar em Tito Andrônico a densidade poética e complexidade de visão que encontramos nas tragédias Shakespearianas posteriores; como uma peça de vingança, Tito Andrônico foca na violência e no horror, e seu ânimo é de repugnância. O estilo, também, requer alguns ajustes em nossas expectativas. Devendo muito a Kyd, Marlowe e Ovídio, ela está repleta de figuras retóricas e alusões clássicas na maneira dos poemas Ovidianos de Shakespeare do início de 1590, Vênus e Adônis e O Estupro de Lucrécia. Mesmo que seus dispositivos “primitivos” estejam manifestos, o estilo induz bom efeito dramático em cenas altamente elaboradas, como quando Tito implora por justiça aos indiferentes senadores (3.1.1-47) ou prepara uma armadilha para Tamora e seus filhos sob o disfarce de sua suposta loucura (5.2). A aparente incongruência da ação violenta e a metáfora elaboradamente refinada, como no florido lamento de Tito pela mutilação de Lavínia (3.1.65 Primeiro Fólio), não é, como Eugene Waith mostrou (Shakespeare Survey, 1957, 39-49), sem propósitos, pois evoca páthos em nome de um sofrimento horrendo, de uma maneira deliberadamente Ovidiana, abstraindo e generalizando o tormento humano. Como em Ovídio, o interesse não está em lições moralizantes mas no “poder transformador de intensos estados de emoção.”

            A violência é um dispositivo duradouro de Tito Andrônico, e sua função deve ser entendida se a peça não for rejeitada como meramente hiperbólica em seu derramamento de sangue. Estamos constantemente cônscios do sacrifício humano ritual, assassinato e mutilações, como na sentença de Tito ao filho de Tamora, Alarbus, e o assassinato de seu próprio filho Mutius, o massacre pelos filhos de Tamora de Bassiano e o estupro de Lavínia, a subsequente execução de dois filhos de Tito injustamente acusados do assassinato de Bassiano, o decepar da mão de Tito, a alimentação de Tamora com os corpos moídos de seus filhos em uma pasta fina, e assim por diante. A mutilação selvagem é característica de muitas dessas atrocidades, especialmente no corte das mãos e língua. O clímax da peça é, na maneira da tragédia de vingança, um espetáculo de sangue, com as mortes em sucessão rápida de Lavínia, Tamora, Tito e Saturnino. Essa matança múltipla causa repugnância em alguns espectadores, assim como T. S. Eliot, mas para outros a violência revela um padrão e oferece sua própria postura ética em relação à vingança. Apesar de não sentirmos nessa peça de juventude a mesma perspectiva controlada sobre o mal humano como em Hamlet, por exemplo, vemos que Shakespeare está intensamente consciente do conflito entre a ordem e a desordem. Nas cenas finais, Aaron o Mouro é preso e sentenciado à execução, Tamora e Saturnino são assassinados, o irmão de Tito, Marcus, apela para a justiça Romana por vingança, com base que a sua família não teve alternativa, e o último filho restante de Tito, Lucius, jura, como novo imperador, “curar os ferimentos de Roma e remover o seu infortúnio” (5.3.148). Mesmo que essa resolução não satisfaça inteiramente os dilemas éticos com os quais a peça inicia, ela revela a relutância de Shakespeare em permitir que o cumprimento da vingança privada seja a preocupação última da peça. Shakespeare está completamente interessado nos problemas éticos gerados pela vingança, e o horror incansável da peça pode ser um comentário à natureza auto-frustrante do código de vingança. A violência é também integral ao desígnio teatral da peça; seu padrão de vingança e contra-vingança parece surpreendentemente moderno a nós, afinado como estamos ao “teatro da crueldade” do século vinte defendido por Antonin Artaud.

            A primeira parte de Tito Andrônico funciona para dar ao vingador um motivo para suas ações sanguinolentas. Ironicamente, Tito é ele próprio responsável por iniciar os eventos que irão esmagá-lo. Sua família, os Andronici, são os primeiros a praticar a vingança, um fato que diminui a simpatia que eles posteriormente poderão usufruir como vítimas e exilados. De fato, é Lucius, finalmente, que tornar-se-á o restaurador da estabilidade política, que primeiro demanda o assassinato ritual de um Goth cativo, o filho de Tamora, Alarbus, para apaziguar os espíritos dos Andronici massacrados em batalha. Tal demanda é entendível em termos de honra familiar, mas é também vingativa e pagã. Apesar da reivindicação dos Romanos de serem superiores aos bárbaros que lutam (veja 1.1.379, por exemplo), seus atos frequentemente não justificam àquela reivindicação por superioridade moral. Essa ironia está completa quando a Rainha Gótica Tamora e seus filhos tornam-se os porta-vozes da misericórdia divina. Como o filho de Tamora, Chiron, amargamente observa, “Nem na Cítia se encontra tal barbárie” (1.1.131).

            Igualmente violento e não natural é o assassinato por Tito de seu próprio filho Mutius, por ajudar no sequestro da filha de Tito, Lavínia. Esse erro trágico origina-se, como o primeiro, do estreito sentido de Tito de honra familiar. Tito tolamente recusou a coroa imperial, concedendo-a, ao invés, para o traiçoeiro Saturnino, e prometeu Lavínia como esposa ao novo imperador, apesar do noivado anterior dela com o irmão virtuoso e rival de Saturnino, Bassianus. As razões de Tito para essas ações nunca são satisfatoriamente explicadas, mas presumivelmente resultam de um enganado impulso, embora honrado, de deixar outros exercerem o poder político enquanto ele, o valente defensor de Roma, interpreta o papel de estadista sênior. Ele também, como Rei Lear, imperioso e paternalista em sua própria família, insiste em fazer da sua maneira. Quando os filhos de Tito e Bassianus são levados ao estratagema do sequestro da dama, Tito não pode suportar a vergonha de sua promessa violada e então mata Mutius na luta subsequente. Entretanto, por esse sacrifício em nome do Imperador, Tito recebe somente ingratidão e hostilidade. Ademais, ele ensinou Tamora e seus filhos a buscarem vingança.

            Uma vez que os Andronici tornaram as vítimas de Tamora e seus partidários, eles ganham em simpatia. Eles sofrem atrocidades indescritíveis. Caçados por insultuosos sádicos que se divertem no estupro e na mutilação, os Andronici unem-se contra o tormento mútuo e altruisticamente tentam diminuir a agonia um do outro. Eles descobrem que Roma é um “deserto de tigres” (3.1.54) no qual a lei cegamente condena os filhos inocentes de Tito pelo assassinato de Bassianus. Ademais, Tito cometeu o primeiro barbarismo e volta-se cada vez mais a este em seu desejo por vingança. Por causa que os Andronici são muito parecidos com seus inimigos, o ânimo que prevalece, como na maioria das tragédias de vingança, é mais irônico que trágico. Não há um sentido forte (apesar da captura de Aaron) que a ordem moral será restaurada juntamente com a ordem política. Os Andronici são absolvidos, e eles ganharam alguma sabedoria através do sofrimento, mas eles ainda são os vingadores que ofenderam primeiro.

            Igualmente perturbadora é a representação da peça das relações de gênero. Tito é uma figura patriarcal que responde com violência a seu próprio filho quando este desafia sua autoridade de dar sua filha Lavínia para Saturnino. Na sangrenta conclusão da peça, Tito é o assassino de sua própria filha também, temendo que ela “sobreviva à sua vergonha” e na presença dela Tito continuamente relembra da desgraça que ele sofreu por causa de seu estupro (5.3.41-2). O código arcaico da dominação masculina insiste que a honra de um pai é suprema e que a morte de sua filha é preferível do que uma vida desonrosa, mesmo se, como no caso de Lavínia, ela seja totalmente inocente e vitimada em perder sua castidade. (No O Estupro de Lucrécia, uma esposa inocente deve pagar o mesmo preço terrível para absolver a honra de seu marido.) Como contraponto, Tamora personifica uma fantasia masculina da espantosa fêmea transgressora. Porque ela é licenciosa e dominadora, sua sexualidade é intolerável para a maioria dos nobres Romanos; ela cativa Saturnino e Aaron com sua beleza sexual, mas, no final dessa peça tal mulher perigosa deve ser levada a um crime horrendo apropriado de comer seus próprios filhos. A ordem Romana é finalmente restabelecida. Mesmo assim, sua ascendência patriarcal foi responsável pela carnificina a um nível maior do que a mais aberta violência erótica dos “bárbaros” não-Romanos como Tamora, seus filhos e Aaron.

            Tito Andrônico expõe muitas convenções da peça de vingança encontradas anteriormente em A Tragédia Espanhola. O vingador, Tito, é um homem de alta posição servindo conscientemente ao estado, como o Hieronimo de Kyd, que descobre que o próprio estado é muito corrupto para fazer justiça aos erros perpetrados contra sua família. Os malfeitores são membros da família do Imperador, protegidos pela conexão real. Os interesses públicos e privados confrontam-se, e o bem-estar público é o perdedor. O vingador tem dificuldade em provar a identidade dos vilões mas encontra uma maneira engenhosa no final (através da escrita de Lavínia na areia). Uma vez que se torna o vingador, como Hieronimo, Tito torna-se tão sem remorso e sagaz quanto seus inimigos. Ele torna-se uma ameaça à ordem pública, pronunciando ameaças enigmáticas e exibindo as injustiças do estado. Nas margens da verdadeira loucura, ele também emprega o desvario como um disfarce para suas intrigas maquiavélicas. Sua conspiração é bem-sucedida em ludibriar à Rainha Tamora ao permiti-lo preparar seu horrível banquete. O drama termina, como A Tragédia Espanhola, em um tipo de peça-dentro-da-peça, quando os dois filhos de Tamora tomam os papéis de Estuprador e Assassino, Tamora a Vingança e Tito o cozinheiro. A dramatização torna-se determinadamente mortífera com uma rápida sucessão de assassinatos. Tito e Lavínia, como Hieronimo e Bel-Imperia, não sobrevivem aos seus atos de vingança.

            Esse padrão convencional aceita a vingança como inevitável e consistente de acordo com seu próprio código. Como em A Tragédia Espanhola, onde a córica Vingança controla a ação para seus próprios propósitos sinistros e dá às boas-vindas ao sofrimento dos inocentes ou considera o colapso dos governos como úteis, Tito Andrônico retrata um mundo no qual o vingador pode agir aparentemente apenas através da violência. Mesmo Lavínia e o jovem neto de Tito endossam a conspiração e o assassinato. Tito pratica a fraude em relação aos seus inimigos, jurando “sobrepujá-los em suas próprias tramas” (5.2.143). Nossa atenção é atraída, cada vez mais, para a arte da “estratégia” de ambos os lados. As maquinações de Aaron e Tamora demandam ingenuidade em retorno. Um olho deve pagar por um olho; a punição deve adequar-se ao crime. De fato, Tito e sua família lutam para compreender a natureza moral do seu universo. “Se qualquer poder tiver pena de lágrimas miseráveis, / A esse poder eu chamo,” reza Tito, levantando sua mão mutilada aos céus e implorando por assistência divina (3.1.208-9). Repetidamente, os Andronici perguntam se a justiça divina existe, se ela preocupa-se com a brutalidade entre os humanos, e se esta justiça ajudará os indefesos. “Ó céus,” pergunta Marcus, “você pode ouvir o gemido de um bom homem / E não abrandar, ou não ter compaixão dele? (4.1.124-5). Por que esses males terríveis devem afligir à raça humana “A não ser que os deuses deleitam-se nas tragédias?” (linha 61). Marcus busca à identidade dos estupradores de sua sobrinha, esperando que Lavínia esteja apta em “mostrar finalmente / O que Deus descobrirá como vingança” (linhas 74-5). A vingança é de Deus ou da humanidade? Em parte, pelo menos, Marcus vê a si mesmo e sua família como agentes da justiça divina, como Hamlet, apesar dos próprios erros de Tito requererem sua própria destruição. Entretanto, mesmo esses questionamentos sobre o Cosmos são uma parte da tradição da vingança, pois Hieronimo em A Tragédia Espanhola implora aos deuses em termos similares. Tito, por todo o seu pleito aos céus, é essencialmente o vingador em uma peça de vingança. Ele não se submete, como Hamlet, ao que ele considera ser a vontade da Providência e espera por qualquer oportunidade que o céu providenciará. Tito jura vingança e procede com os mais abomináveis atos imagináveis. Em sua morte não há nenhuma fala de reconciliação entre a vontade divina e humana. Conforme o momento de clímax aproxima-se, a vingança é vista como uma força do inferno, do “reino infernal,” enquanto a justiça verdadeira é empregada “com Júpiter no paraíso” (5.2.30; 4.3.40). Tito é um protagonista adequado a uma peça na qual a vingança procede por suas próprias regras impiedosas, na qual a brutalidade é o fato dominante da vida, e onde a violência é o único meio aparente de reparação. As ideias divinas de justiça zombam das tentativas cegas da humanidade de autogovernança sem oferecer reconforto e direção.

            Tito Andrônico ilumina à natureza do mal mais do que tenta transcendê-lo através da nobreza humana, como nas tragédias posteriores. Essa qualidade distintiva torna-se especialmente manifesta pela semelhança externa da peça com Rei Lear. Tito está velho, fraco em julgamento e vitimado pela sua própria decisão de renunciar ao poder para a pessoa cuja vileza ele não compreende. Ele é, como Lear diz sobre si mesmo, certamente menos culpado do que muitos pecadores. Tito aproxima-se da loucura e generaliza, em sua angústia, sobre a onipresença do assassinato e da ingratidão na natureza (3.2.52-78). Suas reflexões sobre a injustiça humana sugerem a imensa dificuldade de distinguir a ilusão da verdadeira substância (“A angústia o forjou tanto / Que ele toma falsas sombras como verdadeiras substâncias,” linhas 79-80), um motivo de ilusão que reaparece na alegórica peça-dentro-da-peça. A Rainha Tamora revela um vício inato e uma depravação sexual como a de Goneril e Regan. Aaron o Mouro, talvez o primeiro dos arrogantes vilões que, tal qual o Vício, assemelha-se com Edmundo em Rei Lear, assim como Ricardo III, Dom João (em Muito Barulho por Nada), e Iago (em Otelo). Tito Andrônico nos mostra, em forma de embrião e próximo às suas fontes, muitos dos temas e métodos das tragédias posteriores de Shakespeare.

            Aaron o Mouro é o personagem mais vital nessa peça de juventude. Como o Vício da peça de moralidade, ou como o Maquiavel do palco de Marlowe, Aaron tem deleite no puro mal e mostra sua astúcia para a admiração da plateia. O Mal para ele é “esporte”, “argúcia”, “estratagema,” e, sobretudo, “política” (5.1.96; 2.3.1; 2.1.104). Sua malícia abrange toda a humanidade e procede de nenhum motivo além de seu prazer sinistro em planejar conspirações. Quando é finalmente capturado, Aaron gaba-se triunfantemente sobre a extensão e variedade de suas cruéis realizações:

                                   Inda maldigo o dia – porém penso

                                   Que poucos cabem nessa maldição –

                                   Em que não tenha feito um mal notório:

                                   Matar alguém, ou planejar sua morte;

                                   Violar uma moça ou pensar em fazê-lo;

                                   Acusar um inocente, perjurar-me;

                                   Trazer inimizade a dois amigos;

                                   Matar o gado de quem já é pobre;

                                   Pôr fogo, à noite, em feno e em celeiros,

                                   Mandando o dono apagá-lo com o pranto.

                                   Muitas vezes tirei mortos da cova

                                   Para encostá-los nas portas de amigos

                                   Que começavam a esquecer da dor.

                                                                                  (5.1.125-37)

            Apesar de sua descrição do mal ser cômica e diabólica, esse retrato nos dá um vívido insight das origens de um tipo particular de vilão sem remorso e soberbo que Shakespeare iria desenvolver em suas peças históricas e tragédias posteriores.

            O lado aparentemente sedutor de Aaron, seus instintos intensamente protetores em relação ao seu filho bastardo nascido de Tamora, são partes do mal central dessa peça: orgulho de família tornando-se vingança violenta. Aaron e seu filho, na negritude de suas feições, são equiparados com o barbarismo, ateísmo pagão (Aaron zomba daqueles que acreditam em Deus), e diabolismo. Questões raciais são, assim, tão dolorosamente explícitas como àquelas de gênero, nessa peça: Roma clama superioridade sobre as pessoas negras e sobre os Cítios, e, entretanto, a peça vê Roma como fatalmente violenta em suas suposições patriarcais, sexistas e racistas. Aaron e Tamora não são os opostos morais de Saturnino e seus súditos Romanos, mas são, em vez disso, simbólicos da escuridão interior e carnalidade compartilhada por todos os tipos de pessoas.

            Como uma peça de vingança, Tito Andrônico é teatralmente efetiva. Para ser apreciada adequadamente, ela deve ser vista ou lida nesses termos, em vez de com as expectativas que trazemos de Rei Lear. Aqui Shakespeare apresenta o barbarismo e a civilização como opostos polares, mas ele recusa equacionar Roma com a civilização, e não permite a Tito nenhuma escapatória do barbarismo que ele mesmo iniciou. Nenhuma autoconsciência trágica cresce da humilhação de Tito, como o faz em Rei Lear, nenhum remorso outro além de ter renunciado o poder a Saturnino. Ao invés da autoconsciência trágica, somos deixados com uma esmagadora impressão do potencial humano para a brutalidade. Essa visão é degenerada. A constante lembrança de um mundo melhor de justiça e compaixão serve meramente para elevar o sentido irônico e fútil da peça da bondade desperdiçada.