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Dom Quixote e Hamlet apresentam, ao longo das desastradas aventuras do primeiro e da trágica história do segundo, algumas características em comum. Entre elas destacam-se o entusiasmo inicial quase juvenil com que abraçam os respectivos objetivos, o reconhecimento posterior das enormes dificuldades de suas tarefas e a desilução final de ambos.

Bárbara Heliodora (1) mostra que esta evolução do personagem “é uma das experiências mais provocantes e enriquecedoras que podemos ter por intermédio de uma obra de arte”.

Entusiasmo inicial

O entusiasmo inicial com que Hamlet se dirige ao fantasma é esclarecedor: “Conte-me logo, para que eu possa partir para minha vingança, com asas tão rápidas como a fantasia e os pensamentos de amor” (Haste me to know’t that I, with wings as swift/ As meditation or the thoughts of love,/ May sweep to my revenge) (1.5).

O entusiasmo de Dom Quixote é análogo: ele parte para suas primeiras aventuras sozinho (antes de contratar Sancho Pança), às escondidas, antes do sol nascer, “com grandíssimo contentamento e alvoroço” (con grandísimo contento y alboroto) (livro 1, cap. 2).

Reconhecimento das dificuldades

Hamlet não demora muito para dar-se conta da dimensão de sua tarefa: “O tempo está fora dos eixos. Oh! Maldita sorte! Por que nasci para colocá-lo em ordem?” (The time is out of joint: O cursed spite,/ That ever I was born to set it right!) (1.5).

Já Dom Quixote, mesmo sabendo das dificuldades encontradas, considera com galhardia que “todas estas incomodidades são muito inerentes ao exercício das armas” (todas estas incomodidades son muy anejas al ejercicio de las armas) (livro 1, cap. 15).

Desilusão

A desilusão de Hamlet pode ser resumida numa frase curta: “estar pronto é tudo” (the readiness is all) (5.2), em sua conversa com Horácio. No roteiro do filme de Kenneth Branagh (2) há a seguinte anotação após a fala do príncipe: “Ele aceita a inevitabilidade” (He accepts the inevitability of it). No diário de filmagem de Russell Jackson, anexo ao roteiro, há uma observação na sexta-feira, 12 de abril de 1996, segundo a qual o ator faz a cena “com resignação, mas sem se sentir condenado” (with sense of resignation, but not doom).

A desilusão de Dom Quixote foi objeto de uma curiosa apreciação do escritor mexicano Carlos Fuentes (3), Prêmio Príncipe de Astúrias de 1994:

“Dom Quixote é o primeiro romance da desilusão; é a aventura de um louco maravilhoso que recobra uma triste razão” (El Quijote es la primera novela de la desilusión; es la aventura de un loco maravilloso que recobra una triste razón).

Shakespeare e Cervantes foram contemporâneos (ambos morreram em abril de 1616), em sociedades diferentes. Segundo Harold Bloom (4), eles souberam como poucos retratar sua época e estabelecer um padrão de referência para aqueles que os sucederam,:

“Cervantes, com Dom Quixote, continua a centrar o Cânone para os leitores mais gerais. Talvez possamos ir mais longe: para Shakespeare precisamos de um termo mais borgesiano que Universalidade. Simultaneamente ninguém e todo mundo, nada e tudo, Shakespeare é o Cânone Ocidental.”

Referências bibliográficas

1 – Bárbara Heliodora, “Introdução à Primeira Edição de Hamlet”, no livro “Hamlet e Macbeth”, traduções, respectivamente, de Anna Amélia Carneiro de Mendonça e Bárbara Heliodora, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995.

2 – Kenneth Branagh, “Hamlet – Screenplay, Introduction and Film Diary”, Inglaterra, Random House, 1996.

3 – Miguel de Cervantes, “Don Quijote de la Mancha”, edição de André Amorós, Espanha, Madri, Ediciones SM, 1999.

4 – Harold Bloom, “O Cânone Ocidental”, tradução de Marcos Santarrita, Editora Objetiva Ltda, 2001.