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Os sonhos e outros eventos premonitórios em Shakespeare são normalmente sinais precursores de acontecimentos trágicos. Eis alguns exemplos:

a) Na tragédia “Júlio César”, a morte de seu principal protagonista foi precedida pela advertência pública de um adivinho: “Cuidado com os idos de março” (Beware the ides of March) (1.2);

b) Na mesma peça, o conspirador Casca relata este presságio: “E ontem o pássaro da noite pousou,/ em pleno meio-dia, na praça do mercado,/ piando e gritando.” (the bird of night did sit,/ Even at noon-day, upon the market-place) (1.3). Desnecessário dizer que o “pássaro da noite” é a coruja, tida como prenúncio da morte;

c) Calpúrnia, esposa de Júlio César, teve sombrios pressentimentos na véspera da morte do marido: “O som da batalha estremecia os ares,/ cavalos relinchavam, agonizantes gemiam,/ espectros gritavam e soltavam ruídos agudos de terror pelas ruas!” (The noise of battle hurtled in the air,/ Horses did neigh, and dying men did groan,/ And ghosts did shriek and squeal about the streets) (2.2);

d) Em “Macbeth”, o nobre Lennox comenta com Macbeth os acontecimentos da noite anterior à morte do rei Duncan: “Lamentos foram ouvidos no ar, estranhos gritos de morte,/ profetizando com acentos terríveis/ de grande tumulto e acontecimentos confusos,/ eclodidos neste tempo de dor” (Lamentings heard i’ the air, strange screams of death,/ And prophesying with accents terrible/ Of dire combustion and confused events/ New hatch’d to the woeful time) (2.3);

e) Cassandra, filha do rei Príamo, em “Tróilo e Créssida”, profetiza enlouquecida a queda de Tróia: “Chorem, troianos, chorem! Emprestem-me dez mil olhos/ e enchê-los-ei com lágrimas proféticas” (Cry, Trojans, cry! Lend me ten thousand eyes,/ And I will fill them with prophetic tears) (2.2);

f) Em “Romeu e Julieta”, há um sonho premonitório de Romeu, o qual confessa que “minha mente está apreensiva/ com alguma fatalidade que ainda pende nas estrelas” (my mind misgives/ some consequence yet hanging in the stars) e se refere, mais adiante na mesma fala, ao temor de sua “morte prematura” (untimely death) (1.4);

g) Julieta, de sua parte, confessa a Romeu, ao se despedirem: “Ó Deus! Tenho pressentimentos sombrios na alma” (O God! I have an ill-divining soul) (3.5). Mais adiante, num solilóquio, admite para si mesma: “Sinto um temor vago e frio que me estremece ao percorrer minhas veias” (I have a faint cold fear thrills through my veins) (4.3).

Estas premonições não são um privilégio feminino, como se poderia pensar à primeira vista. A profetiza Cassandra, de Tróia, e Calpúrnia, esposa de Júlio César, são exemplos bem conhecidos, mas estão ainda listados acima um adivinho, um conspirador, um nobre e um jovem casal enamorado.

Em “Otelo”, assim como em “Romeu e Julieta”, estes pressentimentos encontram representantes de um e de outro sexo. Logo na primeira cena de “Otelo”, o senador Brabâncio, ao ser informado por Iago e Rodrigo de que sua filha fugiu de casa para casar com o mouro Otelo, manda que tragam luzes, chama seus empregados e confessa: “Este acidente não difere de meu sonho./ Acreditar que tenha ocorrido já me inquieta” (This accident is not unlike my dream:/ Belief of it oppresses me already) (1.1). Como se sabe, nossos temores podem se concretizar. Somos o que pensamos.

Uma fala de Brabâncio, ao despedir-se de Otelo, contribuiu para o trágico fim de Desdêmona: “Vigie-a bem, mouro, se você tem olhos para ver./ Ela enganou o pai e pode muito bem enganá-lo” (Look to her, Moor, if thou hast eyes to see:/ She has deceived her father, and may thee) (1.3). Na ocasião, Iago estava presente em cena e memorizou a advertência cuidadosamente, para usá-la mais tarde, quando conviesse. Quando surge a ocasião, o oportunista Iago lembra a Otelo: “Ela enganou o pai, casando com o senhor” (She did deceive her father, marrying you) (3.3), acrescentando mais uma gota ao cálice de aflições do general.

Os maus pressentimentos de Desdêmona estão evidenciados ainda no Quarto Ato, nesta sua fala para Emília: “Não posso chorar; nem tenho outra resposta,/ a não ser aquela se se traduza em lágrimas. Por favor, hoje à noite,/ ponha em minha cama meus lençóis nupciais: lembre-se” (I cannot weep; nor answer have I none,/ But what should go by water. Prithee, tonight/ Lay on my bed my wedding sheets: remember) (4.2). Desdêmona não sabe o que pensar. Aquele homem terno e amoroso, que lhe contava histórias, não é mais o mesmo. Ela não conhece as razões de sua transformação e está justificadamente apreensiva. Talvez, pensa ela, os lençóis nupciais e carinhos redobrados consigam trazê-lo de volta.

Na cena seguinte, quando Emília lhe diz que arrumou a cama com os lençóis pedidos, ela parece não ter mais esperanças: “Tanto faz. Por minha fé, como são tolas nossas mentes!/ Se eu morrer antes de você, por favor, amortalhe-me/ num destes mesmos lençóis” (All’s one. Good faith, how foolish are our minds!/ If I do die before thee prithee, shroud me/ In one of those same sheets) (4.3). Emília, solidária, procura consolá-la e pede-lhe que não diga tolices.

Na última cena da peça, Emília compreende que a triste canção do salgueiro cantada por Desdêmona era um sombrio presságio e entoa a mesma canção. É com uma imagem análoga que, em “Hamlet”, a rainha Gertrudes inicia seu relato da morte de Ofélia, neste verso: “Há um salgueiro inclinado sobre um regato” (There is a willow grows aslant a brook) (4.7).

Os sonhos premonitórios também estão presentes na Bíblia, a exemplo da mulher de Pilatos, que pediu que dissessem a ele, no tribunal: “Não faças nada a esse justo [Jesus]. Fui hoje atormentada por um sonho que lhe diz respeito” (Mateus 27,19).