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Uma cidade aberta, sem muralhas; tal é o homem sem autocontrole.
Provérbios 25, 28

“Macbeth” é uma das grandes tragédias escritas pelo poeta, dramaturgo e ator William Shakespeare (1564-1616). Seu personagem principal é um general escocês vitorioso que, ao acreditar nas profecias de três feiticeiras que encontra em seu caminho, decide matar seu soberano e usurpar-lhe o trono.

“Macbeth” é a tragédia da ambição desmedida pelo poder, não só do general, mas também de sua mulher, a pérfida senhora Macbeth, que o auxilia na lúgubre empreitada. À ambição segue-se o crime, o remorso e a morte de seus principais protagonistas.

Macbeth era um homem facilmente influenciável e seu colega general Banquo falhou na delicada tarefa de ajudá-lo a encarar com ceticismo o encontro com as feiticeiras, como ilustra esta fala (Ato I, Cena III, linhas 120 a 126):

“Se acreditarmos plenamente nisto,
Poderia acender-se seu desejo à coroa,
Acima do título de Conde de Cawdor. Mas é estranho;
Muitas vezes, para atrair-nos para a perdição,
Os agentes das trevas nos dizem verdades,
Seduzem-nos com bagatelas inocentes, para nos enganar
Com consequências profundas”

(That, trusted home,
Might yet enkindle you unto the crown,
Besides the Thane of Cawdor. But ’tis strange;
And oftentimes, to win us to our harm,
The instruments of darkness tell us truths,
Win us with honest trifles, to betray’s
In deepest consequence)

O alerta do general Banquo é semelhante ao de Jesus aos seus discípulos quanto aos falsos profetas “vestidos de ovelhas e que dentro são lobos arrebatadores” (Mateus 7, 15). Jesus também alertou-os sobre os “apóstolos camuflados”, dizendo-lhes que “o próprio Satanás se transfigura em anjo de luz” (Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios 11, 14). Desta forma, diz Banquo, um ser maligno poderia circunstancialmente dizer a verdade, buscando um proveito próprio.

A senhora Macbeth, ao contrário, incentivou o marido a prosseguir com seu plano diabólico. Já Dom Quixote teve melhor sorte com seu companheiro de aventuras, Sancho Pança, um homem rústico, porém muito ponderado e sensato. Num dos episódios mais divertidos do livro, este último deu mostras de seu talento para evitar que o patrão se envolvesse em mais uma de suas costumeiras enrascadas:

Certa ocasião, a noite caiu antes que eles achassem um local adequado para se abrigarem. Surgiu ao longe uma grande quantidade de luzes que se moviam, aproximando-se lentamente. A julgar pelas experiências anteriores, boa coisa não deveria ser, pensava Sancho. Quando as luzes se aproximaram, nossos heróis perceberam alguns homens a cavalo, portando tochas. Logo atrás vinha um andor, coberto de panos negros, em sinal de luto.

Para a imaginação fértil de Dom Quixote, talvez estivessem transportando algum cavaleiro morto ou ferido. Ele os interpelou e eles se recusaram a parar, já que a noite ia alta e precisavam chegar a alguma hospedaria. Dom Quixote arremeteu contra aqueles insolentes e instalou-se uma grande confusão. Serenados os ânimos, desfez-se o equívoco: eram clérigos, que conduziam um cavalheiro morto em Baeza, para ser enterrado em Segóvia, sua cidade. Eles tinham debandado julgando que aquela estranha figura, que surgira do nada, fosse um ser infernal disposto a tirar deles o corpo morto que conduziam.

Depois que o grupo seguiu caminho, Dom Quixote lembrou-se de verificar se de fato conduziam os ossos do cavalheiro morto. Sancho dissuadiu o patrão com este prudente discurso (Livro 1, Capítulo 19):

“Senhor, Vossa Mercê saiu desta perigosa aventura mais a salvo do que em todas as que tenho visto; esta gente, ainda que vencida e desbaratada, poderia dar-se conta de que os venceu uma só pessoa e, corridos e envergonhados disto, voltassem a refazer-se e a buscar-nos, e nos dessem muito trabalho. O jumento está como convém, a montanha está perto, a fome aperta e não há mais que fazer senão nos retirarmos discretamente e, como dizem, o morto ao chão, o vivo ao pão.”

(Señor, vuestra merced ha acabado esta peligrosa aventura lo más a su salvo de todas las que yo he visto; esta gente, aunque vencida y desbaratada, podría ser que cayese en la cuenta de que los venció sola una persona, y, corridos y avergonzados desto, volviesen a rehacerse y a buscarnos, y nos diesen en qué entender. El jumento está como conviene, la montaña cerca, la hambre carga, no hay que hacer sino retirarnos con gentil compás de pies, y, como dicen, váyase el muerto a la sepultura y el vivo a la hogaza.)

Dom Quixote, embora um tanto louco, era ponderado o bastante para dar ouvidos ao seu sensato escudeiro. O bravo general Macbeth, um herói dos campos de batalha, não teve a mesma sorte. Não houve quem o aconselhasse e, pior ainda, não teve êxito no mais difícil dos combates: dominar a si mesmo e, em particular, à sua ambição desmedida.

O mais assustador em Macbeth, segundo Harold Bloom, em \”Shakespeare: a invenção do humano\”, é que “ele também nos representa, e o descobrimos dentro de nós, cada vez mais vivo, quanto mais fundo mergulhamos” (he also represents us, and we discover him more vividly within us the more deeply we delve).

Referências bibliográficas

1 – SHAKESPEARE, William. The Complete Works of William Shakespeare. Londres: Oxford University Press, 1935. 1352p.

2 – Miguel de Cervantes, “Don Quijote de la Mancha”, edição de André Amorós, Espanha, Madri, Ediciones SM, 1999.

3 – BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1998. 898p.