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            A Megera Domada (cerca de 1592-1594) mostra o gênio cômico de Shakespeare no seu melhor. Ao mesmo tempo, ela compartilha com as peças anteriores uma antecipação das direções que seu gênio irá tomar em Muito Barulho por Nada e outras comédias do final de 1590. Ao habilidosamente justapor dois enredos e uma introdução, ou estrutura do enredo, a peça oferece visões contrastantes sobre a batalha dos sexos. Esse debate sobre a natureza do relacionamento amoroso continuará através de muitas comédias posteriores. A peça habilmente manipula, também, o dispositivo da identidade equivocada, como em A Comédia dos Erros, invertendo o relacionamento mestre-servo para criar um mundo Saturnal transformado, antecipando àquele de Sonho de uma Noite de Verão e Noite de Reis.

            A introdução instala o tema da ilusão, usando um velho motivo chamado de “O Dormente Acordado” (como encontrado, por exemplo, em As Mil e Uma Noites). Esse dispositivo estrutura a ação principal da peça, dando-a uma perspectiva adicional. A Megera Domada pretende, de fato, ser uma peça dentro da peça, um entretenimento planejado por um argucioso nobre como uma piada prática a um funileiro bêbado, Christopher Sly. A brincadeira é a de convencer Sly que ele não é Sly, mas um aristocrata sofrendo alucinações. Estranhamente vestido com novas roupas, Sly é convidado a presenciar uma peça da galeria no palco. Em uma interpretação chamada O Domar de uma Megera (impressa em 1594 e agora geralmente pensada como sendo uma versão anterior da peça de Shakespeare, que emprega uma boa dose de originalidade consciente, juntamente com algum empréstimo literário e mesmo plágio), o enredo estruturante conclui ao colocar, de fato, Sly de volta na rua, em frente ao bar onde foi encontrado. Ao acordar, Sly relembra da peça como um sonho, e propõe empregar à visão para o bem, domando sua própria esposa. Se esse final reflete um epílogo agora perdido do texto da peça de Shakespeare, não podemos dizer, mas ele reforça à ideia da peça como a fantasia de Sly. Como Puck, no final de Sonho de uma Noite de Verão, encorajando-nos a rejeitar o que vimos como o produto de nosso próprio cochilo, Sly continuamente relembra-nos que a peça é somente uma ilusão ou sombra.

            Com repetida ousadia, Shakespeare chama a atenção à natureza forçada de seu artefato, a peça. Quando, por exemplo, Sly finalmente está convencido que ele é, de fato, um lorde nobre recuperando-se de uma loucura e, vigorosamente, propõe levantar-se da cama com sua esposa há muito negligenciada, nós estamos comicamente cônscios que a “esposa” é um impostor, um jovem pajem disfarçado. Porém, essa falsificação dos papéis não era menos irreal do que a empregada pelos meninos-atores Elisabetanos para as partes de Katharina e Bianca na peça “real”. Conforme vemos Sly assistir a uma peça, níveis de significados cruzam-se de maneira imaginativa. Novamente, as pinturas oferecidas a Sly por seus novos atendentes chamam a atenção para a habilidade da arte de confundir ilusão e realidade. Em uma pintura, Cytherea está escondida pelos juncos “Que parecem mover-se descontrolados com a respiração dela, / Mesmo quando os capins brincam com o vento,” e, em outra pintura, Io aparece “Como se vivamente pintada como a coisa feita” (Introdução, 2.50-6). A função de Sly, então, é aquela de um observador inocente que inverte ilusão e realidade em sua mente, concluindo que toda a sua vida anterior de funileiro, de bares e Cicely Hackets foi irreal. Como seus servos explicam-lhe, “Esses quinze anos você esteve em um sonho, / Ou quando você acordou, acordou como se dormisse.” Nós plateia rimos da inocência de Sly, e ainda nós, também, somos movidos e transformados por uma visão artística que sabemos ser ilusória.

            Como Sly, muitos personagens da ação principal da peça são persuadidos, ou planejados, a serem o que eles não são. Lucentio e Trânio trocam de papéis de mestre e servo. Os supostos tutores de Bianca são, de fato, seus cortejadores, usando suas lições para disfarçar mensagens de amor. Katharina é vencida pelo seu marido, Petruchio, ao declarar que o sol é a lua e que um velho cavalheiro (Vincentio) é uma bela jovem dama. Vincentio é publicamente informado que é um impostor e que o Vincentio “real” (o Pedante) está, naquele momento, olhando para ele pela janela da casa de seu filho Lucentio. Essa última artimanha não engana o Vincentio real, mas quase tem êxito em enganar todos os demais. Baptista Minola está prestes a levar Vincentio para a cadeia pela calúnia infame de declarar que o suposto Lucentio é somente um servo disfarçado. Vincentio, como o estranho que acaba de chegar, está apto a ver as coisas como elas de fato são, mas os habitantes de Pádua cresceram acostumados com ficções insanas e improváveis sobre suas vidas que eles não acordam facilmente para a realidade.

            Tais ilusões têm o efeito de desafiar às normas da ordem social. Se um servo pode interpretar o mestre com tanto sucesso que ninguém pode dizer a diferença, devemos entender que as distinções sociais são meras construções arbitrárias? Se Sly pode tornar-se um lorde ao vestir as roupas certas e falar em versos brancos (como na Introdução, 2.68 e após), os membros da plateia também podem aumentar seus status? O teatro promove tais questões céticas, pois seu negócio é o de vestir os atores como pessoas de qualquer classe social que o dramaturgo escolher. Certamente um dos prazeres da performance teatral para as plateias Elisabetanas era o de sonhar com avanços sociais ou controle. Ao mesmo tempo, esse teatro trata tal experiência liberadora como um feriado ou pesadelo farsesco, e como um escape Saturnal; compreendemos como plateia, que retornaremos às normas de nossas vidas diárias depois de termos visitado e imaginado um espaço onde qualquer coisa é possível.

            Shakespeare multiplica seus dispositivos de ilusão ao combinar dois enredos inteiramente distintos, cada um preocupado, ao menos em parte, com a inversão cômica da aparência e realidade: o enredo do domar a megera, envolvendo Petruchio e Kate, e o enredo romântico mais convencional envolvendo Lucentio e Bianca. Este enredo é derivado de Supposes de George Gascoigne, uma peça apresentada primeiramente no Gray´s Inn (um dos Inns da Corte) em 1566, como traduzida da comédia neoclássica de Ariosto, I Suppositi, 1509. (A obra de Ariosto, por sua vez, era baseada em Eunuchus de Terêncio e Captivi de Plauto.) Os “Supostos” são identidades equivocadas ou desentendimentos, os tipos de misturas farsescas que Shakespeare já havia experimentado em A Comédia dos Erros. Shakespeare, como de costume, romantizou sua fonte e moralizou-a de sua maneira tipicamente Inglesa. A heroína, que na comédia Romana de Plauto e Terêncio seria uma cortesã, e que em Supposes ficou grávida de seu amante clandestino, permanece inteiramente casta na comédia de Shakespeare. Consequentemente, ele não necessita de um alcoviteiro, ou intermediário, tal como a indecente Duenna ou Governante de Supposes. A sátira direcionada ao antigo galanteador da heroína, Grêmio, é muito menos selvagem do que em Supposes, onde o “pantalão”, Dr. Cleander, é um advogado vilmente corrupto, tipificando a depravação da sociedade “respeitável”. Apesar das modificações de Shakespeare, entretanto, o enredo básico permanece um esforço de frustrar à autoridade parental. Os jovens amantes, escolhendo um ao outro por razões românticas, devem repelir os cálculos materialistas de seus pais.

            Em tal situação padrão, os tipos dos personagens são, também, convencionais. Grêmio, o envelhecido cortejador opulento é, de fato, nomeado um “pantalão” no texto (3.1.36-7) para enfatizar sua ancestralidade neoclássica. (Cortejadores magros e tolos desse tipo eram costumeiramente vestidos com pantalões, sandálias e óculos no palco Italiano.) Grêmio é, tipicamente, o “barba cinza,” e Baptista Minola “o pai inquisidor” (3.2.145-6) Mesmo que Shakespeare represente a esses personagens bem mais atraentes que em Supposes, seus comportamentos mundanos ainda convidam à retaliação dos jovens. Desde que Baptista Minola insiste em vender sua filha Bianca a quem der o maior lance, é apropriado que o mais rico pretendente (o suposto Lucentio) deva ser, no final, um paupérrimo servo (Trânio) disfarçado como um homem de afluência e posição. Em seu papel tradicional de servo esperto da comédia neoclássica, Trânio habilmente imita os maneirismos da sociedade respeitável. Ele pode lidar com as meras superfícies – roupas e reputação – as quais a importância social de um homem é criada, e pode até mesmo munir a si mesmo com um pai rico. Grêmio e Baptista merecem ser enganados, porque eles aceitam à ilusão da respeitabilidade como real.

            Mesmo os amantes românticos do enredo emprestado são amplamente convencionais. Com efeito, Shakespeare enfatiza às qualidades virtuosas e a sinceridade deles. Shakespeare adiciona Hortênsio (que não existe em Supposes) para prover a Lucentio um genuíno e tolo rival, e Bianca com dois pretendentes mais próximos da sua idade do que o velho Grêmio. Lucentio e Bianca merecem seu triunfo romântico; eles são autocentrados, arguciosos e constantes um ao outro. Entretanto, sabemos muito pouco sobre eles, nem eles viram profundamente um ao outro. A fala de amor de Lucentio é carregada de imagens convencionais, com elogios aos olhos escuros de Bianca e seus lábios escarlates. Ao final da peça, ele descobre, para sua surpresa, que ela pode ser obstinada e mesmo desobediente. Será que a aparente virtude dela esconde algo dele e de nós? Por causa de o relacionamento entre esses amantes ser superficial, eles são apropriadamente destinados a um casamento superficial também. A passiva Bianca torna-se a orgulhosa e insolente esposa.

            Por contraste, Petruchio e Kate são os amantes mais interessantes, cujo cortejo envolve autodescoberta mútua. Reconhecidamente, não devemos exagerar o caso. Especialmente à primeira vista, esses amantes são também tipos comuns: o domesticador da megera e sua proverbial esposa rabugenta. (a palavra shrew [megera], originalmente significando um homem perverso ou maligno, frequentemente aplicado a um demônio ou a um planeta ameaçador, alterou seu significado para o de uma esposa turbulenta e ofensiva.) Apesar de parecer que Shakespeare não usou qualquer fonte única para este enredo, ele era bem familiar com estórias rudes e misóginas, demonstrando a necessidade de colocar às mulheres em seus lugares. Em uma balada chama A Merry Jest of a Shrewd and Curst Wife, Lapped in Morel´s Skin (impressa em cerca de 1550), por exemplo, o marido domestica sua esposa rabugenta ao açoitá-la violentamente com vara de bétula e então envolvê-la na pele salgada fresca de um cavalo de arado chamado Morel. (Essa esposa rabugenta, como Kate, tinha uma irmã mais jovem, obediente e gentil, que era a favorita de seu pai.) Outros dispositivos do enredo de Shakespeare podem ser encontrados em histórias similares: o alfaiate xingado por planejar um vestido fora de moda (Accidence of Armory, 1562, de Gerard Legh), a esposa obrigada em concordar com a declaração de seu marido em relação a alguma falsificação patente (El Conde Lucanor, cerca de 1335, de Don Juan Manuel), e as três apostas dos maridos na obediência de suas esposas (The Book of the Knight of La Tour-Landry, impresso em 1484). No espírito rústico dessa tradição sexista, tão diferente do sentimento Italianado e refinado de seu outro enredo, Shakespeare introduz Petruchio como um homem de despreocupada bravata que está pronto para casar com a mulher mais feia e de língua mais afiada viva, conquanto que ela seja rica. Não importando o quanto que ele é atraído pelo espírito impetuoso de Kate depois, sua primeira atração por ela é grosseiramente financeira. Kate é, ademais, uma problemática e insolente jovem mulher no início, descrita pelos homens que a conhecem com “uma maldição intolerável / Astuta e desobediente,” e agressiva em seu bullying a Bianca. Ela e Petruchio encontram-se como grotescas contrapartes cômicas.

            Ao final da peça, o padrão tradicional da dominância masculina e da aquiescência feminina é, ainda, proeminente. A Kate é permitida água, sono e sexo apenas quando ela submete-se a uma estrutura patriarcal na qual o marido é o extravagante governante de sua esposa. Kate não é como às jovens heroínas de muitas outras comédias Shakespearianas (Pórtia em O Mercador de Veneza e Rosalinda em Como Gostais, por exemplo) que com argúcia guiam seus jovens, imaturos e excessivamente românticos homens no sentido de uma visão pragmática em relação ao amor e o casamento; nessa peça, Kate é a única que deve ser conquistada pelo confiante homem. Sua rabugice é uma ameaça aberta ao controle masculino no laço do casamento, e, adequadamente, o final cômico da peça celebra à contenção dessa sua ameaça, juntamente com uma afiada lembrança da resistência que deve persistir nos outros maridos que falharam em domesticar suas megeras.

            Dentro dessa estrutura de referência masculina, entretanto, Petruchio e Kate são surpreendentemente como Benedick e Beatriz em Muito Barulho por Nada. Petruchio, por toda sua vociferação, é gradativamente atraído pelo espírito de Kate. Como combatentes de argúcias, eles são dignos da inimizade um do outro – ou do amor. Ninguém mais na peça é um par adequado para qualquer um deles. Kate, também, é atraída por Petruchio, apesar da guerra de palavras dela. Sua angústia é parte uma proteção defensiva, parte teste da sinceridade dele. Se ela está desdenhosa com os cortejadores que teve até agora, ela tem boa razão para estar. Compartilhamos da condescendência dela em relação ao envelhecido Grêmio ou o risível incompetente Hortênsio. Ela corretamente teme que seu pai deseja desposá-la, para que ele possa barganhar Bianca ao mais rico competidor. A visão esgotada que Kate tem desse acordo de casamento é inteiramente defensiva. Não surpreendentemente, ela primeiro vê Petruchio, as quais as intenções professadas estão longe de serem reconfortantes, como outro mero aventureiro do amor. Ela está impressionada pelas “linhas” dele ao cortejá-la, mas necessita testar sua constância e sinceridade. O casamento para ela deve ser um passo sério, pois a convenção social permite um papel dominante ao homem; Ela pode esperar, juntamente com Petruchio, alcançar algum tipo de compreensão de qual papel como esposa e parceira seria honrado? Ela rechaça a maioria dos homens, da sua maneira rabugenta, que desafia até mesmo a própria masculinidade deles; Petruchio é o primeiro homem a conter à argúcia e a energia dela com as suas próprias. Ela pode aprender a viver com esse homem?

            A rejeição de Kate aos homens não a deixava feliz, apesar de ser genuíno o seu desdém pela maioria daqueles que vieram para o cortejo. O “aprendizado” de Petruchio pode ser visto como dirigido para aquela tristeza, mesmo se seu propósito é incessantemente masculino em sua suposição que uma esposa rebelde tem que ser “domesticada” como alguém domestica um falcão. Ao cortejá-la e parcialmente conquistá-la, Petruchio testa-a ao chegar atrasado ao casamento, ao usar uma vestimenta incomum e ao transpassar todos os desejos dela. Como o domesticador de falcões, Petruchio usa duros meios físicos, incluindo à privação de comida e bebida. Ele trata Kate como sua posse, e nunca vacila em sua certeza que está certo em assim o fazer. Outros homens aplaudem seu sucesso e desejam somente seguir seu exemplo. A resolução é, nesses termos, manifestamente mais sexista do que em Muito Barulho por Nada; é como se Shakespeare trabalhasse o seu caminho através dos problemas do conflito sexual a partir dessa peça anterior, muito masculina, a uma acomodação mais complexa e mútua em suas comédias posteriores.

            Ao mesmo tempo, é possível ver A Megera Domada como uma peça na qual uma acomodação genuína é alcançada, mesmo que seja sobre os termos do homem, não dando nenhuma escolha à mulher. A peça pode encorajar à visão que o tratamento de Petruchio a Kate, não importando se temporariamente rude, é finalmente benigno em sua intenção. Petruchio, através de seu comportamento estranho de virar as mesas e xingar os servos, mostra a Kate uma face feia do que ela obstinadamente é. Ele é bem-sucedido ao insistir no que, discutivelmente, ela pode desejar também: um relacionamento bem definido, temperado por respeito mútuo e amor. Nessa interpretação, Kate pode ganhar alguma coisa ao final da peça. O discurso de encerramento dela, com sua bela combinação de ironia e hipérbole autoconsciente, juntamente com sua seriedade na preocupação, pode ser lido como expressando a maneira na qual o espírito de independência dela e sua nova aceitação da regra doméstica foram fundidas com sucesso, permitindo-a ganhar o aplauso de todos, em vez da censura.

            Essa não é, de forma alguma, a única maneira de ler a cena final, como as produções modernas, frequentemente, tornaram claro: Kate emerge de várias produções de palco como mais ou menos satisfeita, ou como simplesmente resignada, ou cruelmente doutrinada, ou como apenas interpretando o papel da esposa obediente para alcançar o que ela deseja. A incerteza da interpretação é um dos grandes prazeres e desafios hoje, em um mundo cujas ideias de casamento obviamente alteraram-se, desde que Shakespeare escreveu. Mesmo assim, a peça oferece uma fundação para o entendimento mútuo, em sua apreciação da seriedade do assunto e sua maravilhosa transparência, como um texto que oferece a si mesmo para interpretações rivais.