Print Friendly, PDF & Email

[:pt]

Tradução do Quinto Capítulo de: As Ideias de Shakespeare, Mais Coisas entre Céu e a Terra, David Bevington, 2008.

5

QUAL FORMA DE ORAÇÃO PODE ME SERVIR?

AS IDEIAS DE SHAKESPEARE SOBRE A CONTROVÉRSIA RELIGIOSA E QUESTÕES DE FÉ

            Shakespeare era Católico, privadamente aderindo a uma fé que podia colocá-lo em perigo de encarceramento e condenação? Alguns estudiosos recentes, incluindo Stephen Greenblatt, perguntaram se o pai de Shakespeare era Católico e se Shakespeare ele próprio poderia ter tido algumas lealdades Católicas residuais. Ou era ele um praticante na comunhão Anglicana? Se sim, ele preferia um modo formal e tradicional de adoração, ou era simpático ao chamamento dos Puritanos pela simplicidade nas vestimentas e nas formas de adoração? Ele seguia os trinta e nove artigos da fé adotada pela igreja Inglesa em 1563, estabelecendo uma hierarquia episcopal de bispos e arcebispos parecida com a Católica e uma liturgia conservadora em Inglês, ou ele ficou com os dissidentes? Teologicamente, ele tinha consonância com os ensinamentos de Martinho Lutero e especialmente João Calvino, insistindo que a salvação era possível somente através da fé, em vez de pelas obras? Ou Shakespeare não seguia nenhuma das anteriores, ponderando, em vez disso, os apelos intelectuais do agnosticismo?

            Essas questões sobre as ‘ideias de Shakespeare’ são, por natureza, intensamente pessoais. Se pudermos respondê-las, elas nos dirão muito sobre Shakespeare, como pessoa e como escritor. Ademais, as questões parecem tornarem-se intensamente importantes em suas obras no momento em que ele escreve Hamlet (cerca de 1599-1601). Esses anos, como vimos, testemunharam um ponto de inflexão em sua carreira como dramaturgo, conforme ele move-se da escrita de comédias romântica e histórias Inglesas para as peças problemas e as tragédias. Religiosa e politicamente, a Inglaterra estava também num ponto de crise em potencial. A Rainha Elizabeth estava velha e sem um herdeiro para o trono. A rebelião frustrada do Conde de Essex, em 1601, foi sintomática de uma difundida inquietação e desafeição. Quando Elizabeth morre, em 1603, e seu primo, James VI da Escócia, chega ao trono como James I da Inglaterra, um rei Protestante, assim acalmando os medos de um retorno ao Catolicismo, porém era temperamentalmente um tipo muito distinto de governante, e logo confronta-se com os reformadores. A infame Conspiração da Pólvora de 1605, com o objetivo de explodir as Casas do Parlamento, inflamou a opinião pública contra os padres Católicos e, de fato, contra todos os fiéis Católicos. Esperadamente, talvez, questões de fé e dúvida assumem uma nova urgência nas peças que Shakespeare escreveu nesses anos e naqueles que se seguiram.

            Nenhuma controvérsia foi tão importante na Renascença do que a das diferenças religiosas. A Reforma iniciada por Martinho Lutero rompe com a igreja Católica Romana em 1517 e divide país contra país e vizinho contra vizinho por toda a Europa Ocidental. Na Inglaterra, o confronto entre os reformadores e os tradicionalistas oscilou para frente e para trás, com grandes martírios para ambos os lados. Henrique VIII declarou a si mesmo como chefe principal da igreja Inglesa com o Ato de Supremacia em 1534, como consequência da recusa papal de consentir com seu divórcio de Catarina de Aragão e seu casamento com Anne Boleyn. Num primeiro momento, as diferenças de dogma e liturgia eram pequenas; a quebra com Roma foi, para Henrique, mais pessoal e política do que ideológica. Um Estatuto de Seis Artigos, em 1539, definiu heresia como inclusive qualquer negação da transubstanciação (o milagre do sacramento sagrado tornar-se o corpo e o sangue de Cristo enquanto mantém-se apenas em aparência o pão e o vinho), o celibato para o sacerdócio, a necessidade de confissão auricular ou privada com um padre, e outros pontos da doutrina mantidas da prática Católica. Quando Henrique morre, em 1547, por outro lado, deixando a coroa para seu filho doente de dez anos, Eduardo VI, o jovem primo do rei, Edward Seymour – o primeiro Conde de Hertford e agora Duque de Somerset – usa de sua autoridade como Protetor para instigar às reformas. Os Seis Artigos foram rapidamente repelidos. No lugar deles vieram uma recém estabelecida uniformidade de culto codificada num novo e mais distintivo livro de oração Protestante. Depois de Somerset sair do poder e ser substituído por John Dudley, Lord Warwick e então Duque de Northumberland, em 1550, a reforma procedeu acelerada. Os quarenta e dois artigos de religião promulgados pelo Arcebispo Thomas Cranmer em 1551 tornaram-se a base dos trinta e nove artigos sob Elizabeth em 1563, assim provendo a base aceita para a Igreja da Inglaterra. Entrementes, de 1553 a 1558, a Inglaterra retornou ao Catolicismo sob Maria, a filha de Henrique VIII e Catarina de Aragão, que herdou a coroa quando Eduardo VI morreu como a único herdeiro masculino de Henrique. Maria fez seu melhor para restaurar a Inglaterra à antiga fé, e muitos tormentos deram-se, incluindo aqueles de Cranmer, Hugh Latimer e Nicholas Ridley, mas restaurar as vastas terras da igreja que tinham sido distribuídas entre figuras políticas poderosas provou-se impossível. Quando, depois de um conflito incerto sobre a sucessão real de 1558, Elizabeth tornou-se rainha, a legislação Católica durante o reinado de Maria foi repelida em favor dos atos de supremacia e uniformidade novamente promulgados. Um livro de oração revisado, codificando as práticas religiosas na igreja do estado, permaneceria na ativa até o resto do século dezesseis.

            Quando Shakespeare começa a escrever suas peças por volta de 1590, a Inglaterra geralmente prosperou sob o governo de Elizabeth por trinta e dois anos, e continuaria a florescer perante seu governo por mais treze anos. Geralmente, ela desfrutou de suporte leal e entusiástico de seus súditos Protestantes. Tendo flertado com vários pretendentes, e tendo a possibilidade de se casar com Filipe II da Espanha (o viúvo Católico da irmã mais velha de Elizabeth, Maria), Elizabeth escolheu finalmente permanecer solteira. O plano de Filipe de invadir a Inglaterra com a Grande Armada em 1588 foi repelido, basicamente, é certo, pela grande tempestade na costa oeste da Irlanda, mas também pela impavidez dos comandantes navais de Elizabeth, Lord Thomas Howard, Francis Drake e John Hawkins, no Canal Inglês. As peças de história Inglesa de Shakespeare (veja o Capítulo 3) enfatiza este evento e suas consequências ao narrar o nascimento de uma nação sob circunstâncias perigosas. Um caso prima facie [suficiente para estabelecer um fato ou levantar uma hipótese de um fato outrora recusado] pode ser feito, então, pois Shakespeare, sendo o principal dramaturgo do teatro popular de Londres, promoveu a ascendência Tudor perante os poderes Católicos do Continente. Durante o final dos anos 1580, apesar da relutância de se envolver em guerras custosas e separadoras, Elizabeth aceita enviar tropas através de seu favorito, o Duque de Leicester, para ajudar os Holandeses repelirem às incursões de Filipe sobre aquela nação protestante. Ela também concordou relutantemente com a execução de sua prima Católica, Maria, Rainha dos Escoceses, em 1587. Sir Francis Drake e outros capitães do mar atacaram as propriedades Espanholas nas Índias Orientais. O fervor patriótico estava alto.

            A peça Henrique V de Shakespeare pode ser lida como um apelo ao sentimento patriótico da época, mesmo que o inimigo nesse caso seja a França e não a Espanha. As relações com a França eram desconfortáveis ao longo desse período; o odiado Duque de Guise, que tomou Calais dos Ingleses em 1558 e foi o arquiteto-chave do massacre de muitos Protestantes Franceses no Massacre de São Bartolomeu, em 23-4 de Agosto de 1572, era suspeito de alimentar planos de retornar a Inglaterra para o lado Católico. Henrique V também celebra os conseguimentos militares do “General da nossa graciosa Imperatriz”, esperando que “em boa hora ele pode chegar da Irlanda” trazendo “a rebelião derramada em sua espada” (Coro 5, 30-2). Isso parece ser uma referência ao Conde de Essex, outro dos favoritos de Elizabeth, que foi despachado em 1597 para reprimir a rebelião na Irlanda de Hugh O´Neill, Conde de Tyrone. Essex falha desastrosamente e teve que ser substituído por Lord Mountjoy, mas no momento que Henrique V foi escrita, Essex estava no alto, e parecia ser muito amado em Londres e por sua população amante do teatro. Com seu ressoante apelo retórico para um “bando de irmãos” que estão preparados para morrer pela Inglaterra, e seu humorístico retrato da Bretanha como um lugar de rica diversidade cultural (Escoceses, Irlandeses, Galeses e Ingleses), Henrique V parecia no todo divertir-se com a imagem de um pequeno país Inglês capaz de derrotar a poderosa França e o império Espanhol-Hapsburgo. Dado o contexto da Armada Espanhola e do continuado conflito Inglês contra o Catolicismo militante ao longo dos anos 1590, a febre da guerra em Henrique V traduz-se plausivelmente em anti-Catolicismo patriótico. Se Shakespeare secretamente tinha outra coisa em mente, como é óbvio, é uma outra questão. Nós já vimos, no Capítulo 3, como a peça interroga a lógica de uma guerra travada por razões políticas e pessoais, em detrimento a qualquer causa mais idealista.

            A aceitação da estabilidade da Reforma na Inglaterra não foi, é claro, uniforme ou calma. Por um lado, mesmo antes de 1517, a Inglaterra e a Europa testemunharam muitos movimentos reformistas. Na Inglaterra do final do século catorze, os chamados Lollards, sob a liderança de John Wycliffe, advogaram uma igreja espiritual sem propriedades, acesso direto ao Deus individual e a tradução Inglesa da Bíblia. Brutalmente suprimida por Henrique V pelo seu radicalismo, os Lollards eram considerados como mártires primitivos pelos reformadores da Inglaterra do século dezesseis. Alguns desses reformadores estavam impacientes com o ritmo da mudança da Igreja da Inglaterra. Por outro lado, a resistência ao rompimento com Roma estava muito difundida na Inglaterra, ainda mais intensamente nas regiões remotas do norte e do oeste. A chamada Rebelião do Norte, de 1569, pelo nome de Maria Rainha dos Escoceses, liderada por Thomas Percy, o sétimo Conde de Northumberland, e Charles Neville, sexto Conde de Westmorland, teve que ser contida com força militar e levou a contra-medidas repressivas. (Shakespeare podia estar flertando com esse conflito civil em seu 1 Henrique IV, proeminentemente apresentando os nomes e títulos de Percy, Northumberland e Westmorland.) A excomunhão de Elizabeth pelo Papa Pio V, em 1570, somente tornou as coisas piores para os súditos Católicos de Elizabeth. Conspirações com o objetivo de colocar Maria Rainha dos Escoceses no trono Inglês, no lugar de sua prima Protestante, explodiram em várias ocasiões depois que Maria abdica ao trono Escocês, em 1567, e refugia-se – sua causa sendo derrotada militarmente – na Inglaterra, onde ela é colocada em detenção domiciliar. Tramas contra a vida de Elizabeth envolveram variamente Roberto Ridolfi e Thomas Howard, o quarto Duque de Norfolk (1570-1), Edward Arden (1583), Francis Throckmorton (1584), William Parry e Edmund Neville (1584-5) culminando na conspiração Babington de 1588 (envolvendo um senhor de Derbyshire, Anthony Babington, e um padre Católico, John Ballard, entre outros) que foi descoberta pelo Secretário de Estado Francis Walsingham e resultou na execução de todos os conspiradores. Conforme à ameaça da Armada Espanhola aumentava em intensidade durante 1587 e 1588, os Católicos Ingleses encontraram-se sob forte suspeita: eles desertariam para Filipe da Espanha uma vez que a invasão começasse? Filipe e seus generais claramente contavam com esse cenário. Os súditos Ingleses que eram Católicos praticantes, ou que se pensavam simpáticos à causa Católica, como Edward de Vere, o décimo sétimo Conde de Oxford, genro de Lord Burghley, teria muita explicação para dar. Os sentimentos eram intensos pois essas questões não concerniam apenas a fé pessoal, mas também à segurança nacional.

            Shakespeare cresceu em Stratford-upon-Avon, uma cidade a nordeste de Londres numa distância considerável para os padrões daqueles dias. As lealdades Católicas persistiam em muitas comunidades desse tipo. As autoridades da igreja estavam ocupadas expulsando clérigos de suas paróquias em favor de candidatos reformistas, nem sempre agradando os paroquianos. O drama religioso do último período medieval, popular nos locais do norte e do oeste como York, Wakefield e Chester, foi suprimido pelo governo. Pinturas em paredes e outros artefatos visuais que eram considerados inaceitáveis para a nova religião foram caiados ou, contrariamente, obscurecidos. Entre a geração dos pais de Shakespeare, alguns podem bem ter mantido as simpatias Católicas. Membros da família de sua mãe de Warwickshire, em particular, parecem ter se mantido fiéis à antiga fé. De fato, se alguém voltasse no tempo apenas alguns anos, a situação não poderia ser de outra forma. Seu pai, John Shakespeare, experienciou dificuldades financeiras em 1577-8: ele foi forçado à hipotecar as propriedades de sua esposa, envolvendo-se em sérios litígios, e lhe foi tributado pesadas multas por seu fracasso em comparecer aos encontros do conselho da corporação até que finalmente ele foi substituído como conselheiro. Alguns estudiosos especulam que essas adversidades foram o resultado da condenação por aderência à fé Católica, mesmo que essas dificuldades nos negócios possam ter uma explicação comercial mais mundana.

            E sobre Shakespeare ele próprio? A possibilidade de ele ter conexões Católicas e talvez simpatias levantou uma grande quantidade de interesse nos últimos anos. (Veja a sugerida Leitura Adicional no final desse livro.) A evidência biográfica permanece esparsa, entretanto. Assim como nossa abordagem das ideias de Shakespeare em outras áreas, em matéria de religião, nós somos deixados essencialmente com suas peças e poemas. Shakespeare nunca falou pessoalmente sobre si. Que impressões tiramos das coisas que ele disse através de seus personagens dramáticos?

Sem dúvida, Shakespeare era familiar com algumas práticas católicas e teologia. Quando, em Hamlet, o Fantasma do pai de Hamlet descreve a seu filho os horrores inimagináveis de sua estada no além-mundo, ele usa a linguagem técnica da teologia para expressar seu argumento:

                       Dormia eu, pois, quando essa mão fraterna

                       Roubou-me a vida, o cetro e a rainha:

                       Ceifou-me em plena flor dos meus pecados,

                       Sem sacramentos, sem extrema-unção,

                       Sem ter prestado contas dos meus erros,

                       Cheio de imperfeições em minha mente.

                                                                                  (1.5.75-80)

            ‘Unhousled’ quer dizer “sem ter recebido o sacramento sagrado”; ‘housel’ é um nome para os elementos consagradas da missa, que são mantidos num caixa sagrada. ‘Disappointed’ aqui quer dizer despreparado e desguarnecido espiritualmente para a última jornada até a morte. ‘Unaneled’ quer dizer ‘sem ter recebido o sacramento da extrema unção’; ‘anele’ quer dizer do ato de administrar a última unção ou a extrema unção aos que estão prestes a morrer. Mesmo quando concedemos que as distinções entre as liturgias Católicas e Anglicanas eram às vezes confusas, e que alguns comungantes na igreja Inglesa (incluindo a Rainha Elizabeth) inclinados à prática estabelecidas há muito, esses termos usados pelo Fantasma tinham um sabor distintamente Católico.

            A extrema-unção é, na prática da Igreja Católica Romana, um sacramento na qual o padre unge o corpo da pessoa com perigo iminente de morte, enquanto recita um conjunto de textos da liturgia e administra o sacramento sagrado do pão consagrado e do vinho, se possível fisicamente, para assegurar a saúde da alma conforme a pessoa moribunda prepara-se para o Julgamento. É um dos ritos religiosos que foi removido pela igreja Anglicana, como outras igrejas Protestantes, da lista de sacramentos. O Catolicismo Romano reconhecia sete sacramentos: batismo, confirmação (uma comprovação ou reforço do receptor na prática da fé Cristã), a eucaristia da missa, a penitência (em quatro estágios de remorso, confissão a um padre, satisfação ou realização de atos penais ou meritórios impostos ao confessor como pagamento pelos pecados, e absolvição ou perdão dos pecados), extrema-unção, ordenação (o conferir das ordens sagradas ou dos ritos de ordenação) e o matrimônio. A igreja Inglesa reduziu essa lista de sete para dois, nomeadamente, batismo e eucaristia. Os outros eram reconhecidos em alguns casos como ritos religiosos, mas não “sacramentos” no sentido de conceder graça supernatural; Cristo ele próprio, nessa visão, expressamente ordenou as obrigações espirituais do batismo e da Última Ceia, mas não expressou-se inequivocamente sobre os outros assim chamados sacramentos. Alguns Puritanos Ingleses e não-conformistas, considerando toda a ideia de sacramento como supersticiosa, preferiram referir-se ao batismo e à Ceia do Senhor como “ordenações”. Os Protestantes geralmente desaprovavam a confissão pessoal ou oral; o Livro Anglicano de Orações instituiu, em vez disso, uma oração de confissão geral para as congregações recitarem em uníssono. Os Protestantes não estavam menos insatisfeitos com a ideia de que os atos meritórios, como quem rezasse o rosário, presumivelmente teriam um meio de “ganhar” a salvação; para os Luteranos, Calvinistas e muitos outros, a salvação era um presente de Deus somente, a ser concedido a quem Ele escolher na fé.

            Assim, o sacramento da extrema-unção proibido ao Fantasma do pai de Hamlet, não era apenas um sacramento da igreja Católica; ele era um que foi proscrito na prática Protestante. Ademais, o Fantasma parece ter gasto o tempo desde sua morte prematura num lugar conhecido pela crença Católica Romana como Purgatório. O Fantasma identifica a si mesmo para Hamlet como se segue:

                                               Sou o espectro de teu pai;

                                   Condenado a vagar durante a noite,

                                   Por algum tempo, e a jejuar de dia

                                   Preso no fogo, até que este consuma

                                   E purifique as faltas criminosas

                                   Que cometi em vida.

                                                                                  (1.5.10-14)

            O Purgatório é, de fato, um local de purgação e purificação espiritual. Apesar de não ser nomeado aqui, Shakespeare refere-se a ele em outro lugar nesse sentido teológico. “Eu me arriscaria ao Purgatório por isso”, diz Emília para Desdêmona, alegremente sugerindo que ela arriscaria tudo menos a danação imediata se a ela fosse oferecido uma grande quantidade de riquezas em troca de aceitar um caso de adultério (Otelo, 4.3.79-80). Ao banido Romeu, “Não há mundo para além das muralhas de Verona / Mas o purgatório, tortura, o próprio inferno” (Romeu e Julieta, 3.3.17-18). Claramente Romeu compreende que o Purgatório é algo relacionado com, mas menos que, o inferno.

            O Fantasma em Hamlet faz uma distinção familiar. Ele está fadado a sua “casa prisão” “por um tempo”, até que os “vis crimes” feitos em seus “dias de natureza” sejam “queimados e expurgados”. A cena que descreve é tão horrível que ele ousa não dizer a Hamlet os segredos do lugar para que não congelem o sangue de Hamlet e cause extremo pavor, e ao Fantasma é proibido falar sobre esses assuntos de qualquer forma, mas ao menos a punição não é de duração ilimitada. O Purgatório é, por definição, um local onde as almas partem dessa vida geralmente num estado de graça devem, entretanto, sofrer por um tempo para que sejam purificadas dos pecados menores (oposto aos mortais), ou pagarem a punição temporal por causa dos pecados mortais pelos quais a punição eterna será o perdão. Pecados menores são perdoáveis; pecados mortais são fatais à alma ao menos que perdoados através do sacramento da penitência. O conceito de Purgatório torna-se estabelecido na teologia Católica medieval como uma forma de explicar como Deus pode escolher lidar com pessoas essencialmente valiosas envolvidas numa situação onde a absolvição formal pela a igreja pode provar-se impossível, como é o caso da morte repentina. O conceito era similar ao de Limbo, outro lugar de confinamento existente nas bordas do inferno, designado para aqueles que morreram antes da vinda de Cristo ou que morreram quando crianças, antes do batismo ser administrado. Desde que os sacramentos do batismo e da eucaristia eram incondicionalmente necessários para a salvação, os teólogos raciocinaram, mesmo as pessoas como Adão e Eva, Noé, Moisés e Virgílio não puderam ascender aos céus sem a Encarnação. Assim também com as crianças não batizadas, pois elas não foram ainda recebidas na igreja.

            Essas distinções teológicas são necessárias para entender o que o Fantasma em Hamlet está dizendo ao seu filho. O que temos então que ver dos “vis crimes” feitos nos “dias de natureza” do Hamlet pai, isto é, enquanto ele ainda estava vivo na Terra? O que ele fez para merecer o Purgatório? Hamlet pai é representado na peça como uma pessoa e um rei exemplar: moderado, gentil e tão solícito a sua esposa “Que não deixava nem a própria brisa / Tocar forte o seu rosto” (1.2.141-2). Isto é, claramente, a apaixonada lembrança de um filho afligido, mas ela entretanto parece ser confirmada por tudo o mais que vemos. O Ator Rei, como um representante de Hamlet pai em “O Assassinato de Gonzago”, é sábio e profundo num nível extraordinário. O velho Hamlet foi um guerreiro que “quando em fúria”, “Destruiu os polacos sobre o gelo” (1.1.66-7), e que, por isso, tinha sangue em suas mãos, mas certamente no mundo de Hamlet isso deveria ser considerado como um símbolo de bravura cavalheiresca adequada a um rei, em vez de um crime que mereça punição divina. A teologia Católica Romana tem uma resposta mais simples do porquê dos sofrimentos e tormentos de Hamlet pai no Purgatório: seus “vis crimes” são coisas que todos nós humanos fazemos todos os dias das nossas vidas. Nós somos orgulhosos, furiosos, invejosos, cobiçosos, glutões, preguiçosos e lascivos; nós blasfemamos, esquecemos de honrar nossos pais, adoramos falsos deuses e assim por diante. Nenhum dos Sete Pecados Mortais ou dos Dez Mandamentos escapam de nossa atenção depravada. A humanidade decaiu ao pecado com a desobediência de Adão e Eva, e pode ser resgatada apenas pela salvação de Cristo como administrada através dos sacramentos da igreja. Qualquer pessoa como Hamlet pai, não importa quão virtuosa, que morre sem o absolutamente necessário sacramento da extrema-unção, deve gastar algum tempo no Purgatório. Os Protestantes não eram menos insistentes no estado pecaminoso da humanidade depois da Queda, mas tomam uma visão muito diferente do papel dos sacramentos ao oferecerem guias para a salvação.

            Essa passagem de Hamlet demonstra que Shakespeare estava completamente familiarizado com a doutrina Católica do Purgatório. Muito mais difícil de determinar, entretanto, é se Shakespeare pessoalmente acreditava em tudo relacionado ao Purgatório, ou alguma parte, ou nenhuma. O conceito prova-se vitalmente útil aqui em Hamlet para estabelecer as circunstâncias da morte repentina do velho Hamlet, em dramatizar para seu filho os horrores de tudo, e para ligar à ideia Cristã medieval de uma além-vida o conceito pagão de vingança. Parte do que é tão abominável sobre o ato de assassinato de Cláudio, e assim o que instiga Hamlet à vingança, é que Cláudio condenou a alma de seu irmão a inefáveis tormentos que relembram o inferno em seus efeitos devastadores mesmo que Cláudio não possa enviar a alma do velho Hamlet para o inferno para sempre. Isso é talvez a principal consideração que instiga Hamlet, quando posteriormente encontra oportunidade de matar Cláudio numa oração, para poupar o assassino para um destino pior do que se ele morresse de joelhos implorando a Deus por ajuda:

                                   Agora posso agir, eis que ele reza.

                                   E vou fazê-lo.

                                   (Tira a espada)

                                                           E ele entrará no céu;

                                   E eu estarei vingado. Mas, pensemos:

                                   Um vilão mata o pai e, em consequência,

                                   Eu, seu único filho, o criminoso

                                   Mando aos céus.

                                   Isso não é vingança, é paga e engano.

                                   Ele colheu meu pai, forte e nutrido,

                                   Em plena floração de seus pecados;

                                   Na flor de maio; e só os céus conhecem

                                   Como deu suas contas ao Criador.

                                                                                  (3.3.73-82)

            Isso novamente apresenta a existência do Purgatório, e parece dizer claramente que, no entendimento de Hamlet pelo menos, os “crimes” de seu pai merecedores dos tormentos do Purgatório foram aqueles de qualquer frágil mortal injustamente negado à benção da remissão desses pecados menores através dos últimos ritos. Mas, por causa que essa questão é tão integral à história que Shakespeare está dramatizando, nós não podemos ter certeza da visão pessoal de Shakespeare.

            Essa dificuldade interpretativa serve as nossas tentativas de avaliar outros momentos onde as práticas Católicas são consideradas. O Rei Henrique V busca corrigir a usurpação da coroa Inglesa pelo seu pai através de atos devocionais que muitos Protestantes veriam como superstição. Ele reenterrou o corpo de Ricardo II. Ele provê “pagamento anual” a “quinhentos pobres” que “duas vezes levantam suas murchas mãos / Aos céus, para desculpar o sangue”. Ele construiu “Dois altares, onde os tristes e solenes padres / Cantam ainda para a alma de Ricardo” (Henrique V, 4.1.293-300). (“Ainda” quer dizer “perpetuamente”.) Altares eram doações para os cânticos das missas, em capelas comumente construídas dentro de grandes igrejas ou catedrais. Essas doações ofereciam suporte financeiro perpetuamente para os clérigos cantarem missas para o bem espiritual de uma finada alma, nesse caso Ricardo II. A prática foi abolida pelas igrejas Protestantes, em grande medida pois contrastava com a busca de se alcançar o caminho para o paraíso pelas “boas obras”, como se alguém pudesse assumir merecer a salvação. Martinho Lutero e João Calvino eram ambos veementes nessa questão. A manutenção de quinhentos pobres por Henrique para orarem por perdão em nome do Rei é suspeito da mesma maneira, de um ponto de vista Protestante. Ainda que Shakespeare não pareça temer apresentar Henrique V como um “bom” Católico. Henrique foi, é claro, rei da Inglaterra no início do século quinze, muito antes da Reforma. Ele vigorosamente condenou os reformadores de Wycliffite – um fato que Shakespeare não escolhe enfatizar.

            Ao mesmo tempo, o Rei Henrique de Shakespeare expressa-se de tal maneira que os Protestantes achariam confortável e sábia. Tendo criado dois altares e todo o restante, Henrique concede que essas boas obras não são por si só suficientes. “Mais farei”, ele jura, “Apesar de que tudo que eu faça não valha nada, / Pois minha penitência virá, / Implorando perdão” (300-2). Quando diz essas palavras ele está ajoelhado, rezando a Deus. A teologia implícita é amplamente inclusiva. Boas obras são sagradas, mas elas não são suficientes sem a oração pessoal e o remorso sincero. Henrique considera o conselho das autoridades da igreja, apesar de ele também conseguir extrair deles uma ampla contribuição para sua guerra contra a França. Ele manda seus soldados cantarem o “Te Deum”, um hino Católico de louvor também incorporado depois da Reforma à prática Anglicana. Henrique é um bom filho da igreja, mas não de forma polêmica que poderia ofender a maioria dos Protestantes. Ele é inequivocamente um herói Inglês, mesmo que não tenha conflitos com Roma. Talvez nós possamos ver nesse retrato uma maneira de minimizar as diferenças numa era de Reforma, e assim de enfatizar os elementos de continuidade na Cristandade Ocidental.

            O retrato de Shakespeare das figuras dos clérigos é geralmente consistente com uma posição moderada e inclusiva. Seus freis são usualmente geniais, mesmo se às vezes levemente cômicos. O Frei Laurence em Romeu e Julieta é um Franciscano, assim como seu associado, Frei João. A história é, sobretudo, Italiana em suas fontes últimas e em seu cenário. Frei Laurence não gasta tempo expondo a doutrina Católica. Em vez disso, ele é um conselheiro de Romeu e então de Julieta, um sábio velho homem dado a moralismos sentenciosos que são em certos momentos comoventes à história trágica de dois jovens amantes. “Assim dois reis opostos estão acampados ainda neles / Nos homens assim como nas ervas”, ele diz em solilóquio “graciosa e rude vontade; / e onde o pior for predominante / Em breve a cancerígena morte devora aquela planta” (2.3.27-30). Quando esses bem-intencionados esforços em remediar o banimento de Romeu forem frustrados pela má sorte e o mau momento, Laurence estará disposto a aceitar sua parcela na culpa. O Príncipe é rápido em desculpar Laurence: “Nós ainda o conhecemos como um homem sagrado”, ele diz (5.3.270). Este epíteto adequa-se habilmente: Laurence é um homem sagrado, um amigo mais velho, um conselheiro sábio, alguém que simpatiza com os jovens.

            Frei Francis, em Muito Barulho por Nada, não é menos decente e respeitável. No planejado casamento de Cláudio e Hero, seu papel é importante ao julgar a jovem dama como inocente da terrível acusação de promiscuidade levantada contra ela. Ele faz esse julgamento com base em suas observações dela da sua perspectiva privilegiada como um experienciado clérigo conselheiro e confessor. Tendo notado “Milhares de aparições de enrubescimento / A iniciarem-se na face dela, milhares de vergonhas inocentes / Que na brancura angelical venceram aqueles rubores” (4.1.159-61), Frei Francis simplesmente não pode acreditar o que Cláudio, Don Pedro e Don John alegam contra Hero.

                                                                                  Se tolo,

Não confiem no que penso e no que vi,

                                   Com o muito que vivi selando

                                   O teor do meu livro; e nem confiem

                                   Em minha idade, ofício e divindade,

                                   Se essa moça inocente aqui não jaz

                                   Sob algum grave erro

                                                                                              (4.1.164-70)

            Somente Frei Francis e Benedito, entre os homens presentes, têm a força de convicção de acreditar na inocência de Hero. Mesmo o pai dela colapsa por um tempo em duvidosos medos. Frei Francis não tem “evidência” para refutar a aparente prova física do encontro amoroso na janela de Hero na noite anterior; sua crença em Hero é baseada na fé e na observação. Como Beatriz, que está também incrédula perante a acusação, Francis simplesmente sabe que Hero não poderia fazer tal coisa. Novamente, Shakespeare não tem compunção em apresentar um frei como, essencialmente, um bom homem. Ao mesmo tempo, ele é como Frei Laurence em não ter função litúrgica ou doutrinal outra para além de oficializar o casamento.

            O mesmo é verdade, num sentido mais amargo e irônico, sobre o fingido frei (de fato Duque Vincentio) em Medida por Medida. Por mais enigmático que seu papel de governante ausente, observando as corrupções de Viena, da perspectiva vantajosa de um disfarce, o Duque age de maneira que reforça o retrato genérico de um frei bondoso das peças de Shakespeare. Ele aconselha Cláudio a preparar-se para a morte num discurso profundamente tocante sobre a vaidade dos desejos humanos, mas, enquanto isso, está simultaneamente manobrando para garantir que Cláudio seja mantido vivo. Ele cuida de Isabella com genuína solicitude. Suas córicas observações em solilóquio relembram o tipo de sentença de sabedoria que ouvimos em outro lugar, de Frei Laurence e Frei Francis. “Aquele que sustentar a espada do céu / Deve ser tão sagrado quanto severo”, ele entoa (3.2.254-5). Então, também, os freis nessa peça, que são genuínos membros de sua sagrada ordem, são infalivelmente leais e corajosos do lado certo. Frei Thomas sensivelmente testa o Duque sobre seus motivos ao disfarçar-se com uma batina de frei (1.3). Frei Peter é instrumental na resolução da peça onde Ângelo é exposto (e então perdoado), Cláudio é reunido com sua irmã e o Duque é restaurado ao seu ofício como governante de Viena. Em nenhum lugar o Catolicismo desses freis parece sofrer interferência em nome de Roma. De forma similar, Shakespeare apresenta a intenção de Isabella de tornar-se uma freira como admiravelmente sincera: ela tem uma boa razão para renunciar ao mundo. Como ela explica para a freira Francisca, Isabella deseja mais do que menos restrições conforme prepara-se para ingressar na irmandade de Santa Claire (1.4). Mesmo que a forma estranhamente cômica de Medida por Medida em último caso propicie à Isabella uma maneira de voltar atrás na renúncia do mundo com a possibilidade de casamento (a qual, dependendo da interpretação, ela pode ou não escolher aceitar), as crenças e as práticas Católicas são apresentadas como matérias de consciência sincera e não como ameaças ao estado.

            O retrato de clérigos em outros lugares em Shakespeare é, num todo, similarmente tolerante e livre de animosidade polêmica. O anticlericalismo era uma necessidade básica do drama Elisabetano e Jacobiano, e, em certos momentos, ele pode ser agressivamente satírico. Os dois freis do Judeu de Malta (1589-90), de Christopher Marlowe, são tão venais comicamente que é possível imaginar as plateias Elisabetanas gargalhando em delírio quando um (Bernardine) é estrangulado por Barrabás e Ithamore, ao que o outro (Jácomo) é então enganado ao atacar o corpo morto de seu confrade e é entregue às autoridades por assassinato. Mais nefastos são os poderosos e corruptos Cardeais no The Duchess of Malfi (1613-14) de John Webster e Women Beware Women (1620-4) de Thomas Middleton. Muitos outros exemplos podem ser citados. O anticlericalismo de Shakespeare, por outro lado, é mais apto a contentar-se com o retratar de um misto de conspiradores e incompetentes que interferem conjuntamente com alguns clérigos de integridade. O Bispo de Winchester, depois Cardeal, em 1 e 2 Henrique VI é um encrenqueiro na corte e um inimigo do tio do rei e Protetor, Humphrey, Duque de Gloucester, mas assim também o são o Duque de York, o Conde de Suffolk e outras figuras políticas seculares em luta por precedência. Os epítetos insultuosos proferidos em Winchester como “Padre careca”, “arrogante prelado”, etc., quando ele desfila em seu “amplo chapéu de cardeal” e “túnicas escarlates” (1 Henrique VI, 1.3.23-42), que pretendem presumivelmente excitar o sentimento anticlerical e anti-Católico entre os espectadores de Londres, porém não identifica inequivocamente os vilões como distintos dos virtuosos. A própria piedade do Rei Henrique VI é apresentada como sem dúvida excessiva para alguém que também deve governar o país, mas não por causa disso a piedade é ridícula. O Bispo de Carlisle em Ricardo II está inclinado em arriscar sua vida por sua crença moral na santidade da instituição do reinado (4.1.115-50). O Cardeal Bourchier, em Ricardo III, tenta sem efeito sustentar “o privilégio sagrado / De um santuário abençoado” quando a viúva Rainha Elizabeth e seus dois filhos (um deles o presumido herdeiro ao trono) buscam refúgio na igreja (3.1.37-43). Nas sequências militares finais da peça, o futuro Henrique VII é apoiado por Sir Christopher Urswick, um padre: “Senhor” é aqui o título honorífico usado ao referir-se a clérigos (4.5.1-20). Pelo contrário, aos clérigos não são dados nenhum papel no relato de Shakespeare da batalha de Bosworth Field. O arcebispo de York em 2 Henrique IV junta-se à rebelião contra Henrique IV, mas o faz por razões de princípios (4.1.53-87); ele comporta-se mais honradamente que seu membro oposto, Príncipe João de Lancaster, filho do Rei. Presumivelmente, todas as figuras da igreja são Católicas, mas essa conexão é raramente enfatizada.

            Entre as peças históricas de Shakespeare, as únicas duas que lidam diretamente com a questão Católica são Rei João (cerca de 1594-6) e Henrique VIII (1613). Em ambos os exemplos, Shakespeare aproxima-se da questão de forma circunspecta. Rei João era uma figura controversa na Renascença Inglesa. Historiadores Católicos dos séculos quinze e dezesseis, como Polydore Vergil, tendiam fortemente a condenar um governante que, na visão deles, abusou dos direitos da igreja Católica na Inglaterra. Reformadores Protestantes, por outro lado, saudavam Rei João como um herói equivocado – equivocado pois sua ligação com o papado em último caso falha, mas um herói por ter tentado. Católicos, e assim também os Protestantes, não estavam interessados na Magna Carta; o que importava a ambos era a questão religiosa. John Foxe saudou Rei João como um mártir primitivo em Os Atos e Monumentos da Igreja (1563), conhecido popularmente como O Livro dos Mártires. Numa peça em duas partes de John Bale, Rei João (1538, revisão posteriormente), a figura do título é um defensor da causa da reforma. Uma peça anônima de 1587-91 chamada O Turbulento Reinado de Rei João, que Shakespeare parece ter conhecido e utilizado, vê o Rei como um inimigo destemido da corrupção da igreja. Despudorada pró-Inglesa e anti-estrangeira, a peça argumenta que o desafio de João ao papado seria bem-sucedido se não fosse em prol das abomináveis lealdades Católicas da nobreza Inglesa.

            Dada a predominância dessa visão anti-Católica de Rei João entre os leitores Protestantes e as plateias de Londres no começo de 1590, o tratamento de Shakespeare desse sensível material é notavelmente generoso e brando. João não é, de fato, um rei admirável: ele impediu o reinado de seu sobrinho Arthur, que detinha uma reivindicação ao trono genealogicamente melhor que o próprio João, e sancionou a morte de Arthur quando este infeliz rapaz foi seu prisioneiro político. Ao mesmo tempo, João detém o suporte do intrépido Filipe, o Bastardo, que, como uma figura córica e robusto patriota Inglês, dá boas razões pela continuidade do governo sob a administração de fato do Rei João. Os nobres que revoltam-se contra João são facilmente enganados ao darem vantagens ao Delfim Francês, Lewis. O núncio apostólico do Papa, Cardeal Pandulph, é um experiente Maquiavel, mas mesmo ele é menos ardiloso que Lewis. Deslealdade à coroa é um jogo fracassado. A igreja Católica está indiscutivelmente tentando instigar incômodos na Inglaterra, e é bem-sucedida ao persuadir João à entregar sua coroa ao Papa e receber compensação de uma maneira que João agora possui “grandeza soberana e autoridade” como “fiduciário do Papa” (5.1.1-4), mas o inimigo real é o Delfim Francês. Shakespeare não coloca muita ênfase na ordenação do Rei ao Bastardo em “sacudir as malas / De acumulados abades” (3.3.7-8); isso é dito en passant como vias de explicar como o Rei obterá dinheiro para suas guerras. Similarmente, Shakespeare reporta os rumores que o Rei “está envenenado por um monge” (5.6.24), mas não tenta verificar à alegação ou explorar seus potenciais para o sentimento anti-Católico; há apenas uma explicação da morte inesperada e dolorosa do Rei. Dada a visão prevalentemente Protestante do Rei João nas crônicas e peças que Shakespeare consultou, sua estima é moderada e livre de rancor polêmico.

            Escrever Henrique VIII (aparentemente em colaboração com John Fletcher) exigiu de Shakespeare um grau inusual de circunspecção. Henrique VIII foi, sobretudo, avô da Rainha Elizabeth I. Mesmo que Elizabeth estivesse morta há uma década quando a peça foi encenada, em 1613, ela era ainda relembrada como uma monarca popular Protestante; o sucessor dela em 1603, o Protestante James I, e seus avós, eram primos. A peça dá uma representação detalhada do divórcio de Henrique de sua esposa Espanhola, Catarina de Aragão, e sua corte a Anne Bullen ou Boleyn, que será a mãe de Elizabeth. O retrato de Henrique é estudadamente ambivalente. Ele parece pronto para lançar-se numa extravagante amostra de riqueza e poder no Campo do Tecido de Ouro, em 1520; esse encontro com Francis I da França perto de Calais não é encenado diretamente na peça, mas é reportado eventualmente pelo Duque de Norfolk em termos que enfatizam a incorrigível vaidade de lutar por glória terrena (1.1.13-38). Henrique incrimina o Duque de Buckingham por alta traição com os mais frágeis rumores, não considerando a plausível evidência que a queda de Buckinham foi engendrada através de perjúrios e subornos (1.1.198-226). O encontro de Henrique com Anne dá-se numa atmosfera altamente sedutora na propriedade palaciana do Cardeal Wolsey em Westminster (1.4). Entendidos cortesãos suspeitam que, por todas as “elegâncias” e “temperos” da “hipocrisia” de Anne em esperar para casar com Henrique antes de entregar-se a ele sexualmente, ela detém “um coração de mulher, que sempre até então / Afetaram a eminência, riqueza, soberania”; ela está pronta, em outras palavras, em “alongar” “sua suave e flexível consciência” numa intensa barganha pela classe de Rainha (2.3.24-33). Os procedimentos do divórcio de Henrique de Catarina o lançam no papel santimonial de alguém que professa profundo remorso por ter posto de lado uma esposa que é “única” entre as mulheres por suas “raras qualidades” de “doces gentilezas”, “a tímida santidade”, e o “governo de uma esposa”, quando temos boas razões para acreditar que suas preocupações sobre “Escrúpulo” e a “imbecilidade” da “consciência” são os resultados de ele ter ficado cansado de Anne (2.4.134-69). Por um agonizante longo tempo, Henrique parece distraído perante as conspirações de conservadores religiosos como Stephen Gardiner (subsequente Bispo de Winchester) contra Thomas Cranmer, o Arcebispo com mente Protestante de Canterbury.

            Ao mesmo tempo, Shakespeare emprega várias estratégias dramatúrgicas para minimizar os efeitos de uma crítica implícita ao pai da Rainha Elizabeth. Pouco é feito das confrontações épicas entre as fés Católicas e Protestantes no momento de rompimento com Roma; de fato, Shakespeare nunca usa essas palavras “Católico” e “Protestante” em quaisquer dos seus escritos. Nem usa “Anglicano” ou “Calvinista”. Ele utiliza “Papista” uma vez, apesar que não nessa peça; é parte de um chiste quixotesco de Lavatch, o bobo palhaço de Bem Está o Que Bem Acaba, quando ele contrasta “o jovem Charbon o Puritano” com o “velho Poysam o Papista” (1.3.51-2). O termo “Luterano” ocorre apenas uma vez em Shakespeare, quando o Cardeal Wolsey refere-se a Anne Bullen em Henrique VIII como “uma melancólica Luterana” (3.2.100); Wolsey está falando da sua posição de Cardeal. As plateias Inglesas, em 1613, com certeza saberiam que o casamento de Henrique com a Protestante Anne e seu divórcio da Católica Catarina foram os eventos motivadores do rompimento de Henrique com Roma. Uma razão para a derrocada de Wolsey em Henrique VIII é que ele esteve em comunicação secreta com “Roma” (isto é, o papado) numa tentativa de assegurar para si o ofício de núncio apostólico (3.2.312-14). O início da Reforma é implicitamente parte da cena em Henrique VIII, mas é consistentemente minimizada. Catarina orgulhosamente identifica-se como a filha de Ferdinand, “Rei da Espanha”, insistindo que ele “era reconhecido / O mais sábio príncipe entre muitos que lá reinaram até / Um ano antes” (2.4.45-8), e ela apela “ao Papa, / que traga toda minha causa ante Sua Santidade, / Para ser julgada por ele” (117-19), mas ela não é apresentada na peça como uma fanática religiosa e certamente não como uma Católica que pode ser a fonte de desafeições políticas e religiosas em seu país de adoção; ela é, em vez disso, uma esposa leal e decente a qual a morte na peça é assistida por uma visão angelical (4.2.82ff.). As relações dela com Capuchius, embaixador do Imperador Carlos V, não são em nada conspiradoras; a única esperança dela é que Capuchius possa entregar ao Rei Henrique os cumprimentos amorosos dela (124-30).

            Muito da crítica implícita a Henrique VIII é desviada nessa peça para o Cardeal Wolsey. Cruel em sua ambição e orgulho, enamorado de coisas mundanas, ele é o padre corrupto em sua quintessência. Ainda que ele seja também parcialmente simpático pela sua aparente sinceridade em sua penitência quando é descoberto, e pela sua busca tardia busca por consolações da renúncia. A arrogância dele pode parecer característica do Catolicismo nessa peça, mas é contida pela caracterização ambivalente de Anne e de Henrique. O único herói imaculado, talvez, é o Arcebispo Cranmer, que é ambos, Protestante e virtuoso. Quase martirizado por Gardiner e outro conservador por ser “Um arqui-herege, uma pestilência / Que infecta a terra” (5.1.45-6), Cranmer é finalmente resgatado por interposição real nas deliberações do Concelho Privado. Henrique VIII é, em último lugar, instrumental ao salvar a Reforma Inglesa. Tudo leva à frente, ao nascimento de Elizabeth, a futura Rainha da Inglaterra. As circunstâncias que resultaram desse evento abençoado são estranhas e imprevisíveis; motivos corruptos e compromissos políticos incertos levaram ao nascimento dessa criança, como se pela operação de um poder misterioso superior. Seguindo a eventual morte dela, ademais, outro herdeiro irá erguer-se “Tão grande em admiração como ela própria” (5.5.42-3), isto é, o Rei James I. Todas essas são “maravilhas” demonstrando a vontade da Providência em abençoar e proteger à nação Inglesa. Henrique VIII é assim, parte uma celebração patriótica e parte uma peça misteriosa. Ela vê a grande Reforma espiritual da igreja Inglesa como se tivesse sido causada, paradoxalmente, pelas ações de homens e mulheres interessados apenas em si mesmos. As polêmicas lealdades na batalha de Católicos contra Protestantes são colocadas de lado em favor de uma visão inclusiva e complacente de harmonia religiosa. Com a orientação da providência divina tudo, de alguma forma surpreendente, dá-se para o melhor.

            A apresentação de Shakespeare do Protestantismo radical tende a ser mais crítica. De fato, as objeções são menos veementes que em muitas peças escritas pelos contemporâneos de Shakespeare. Não encontramos retratos satíricos tão polemicamente afiados como aqueles de Tribulation Wholesome e Ananias no O Alquimista (1610) de Ben Jonson, os quais os próprios nomes traem o consumado desdém do dramaturgo. Shakespeare é caracteristicamente mais inclinado a simpatizar mesmo com aqueles que sujeita a um certo grau de cômico ridículo. Apesar do fato de muitos Puritanos extremos serem inimigos do teatro e todas suas obras serem feitas para uma confrontação de severidade inusual. O mais notável exemplo ocorre em Noite de Reis.

            “Sabe, senhor, às vezes ele é uma espécie de puritano”, diz Maria a Sir Toby quando resume sua visão de Malvólio, o administrador beato da Condessa (2.3.139). O termo provoca a ira de Sir Andrew. “Ó, se eu suspeitasse disso, eu o bateria como um cão”, Sir Andrew declara. “Por ser puritano?” Toby replica. “Suas recônditas razões para isso, caro cavaleiro?” Quando Sir Andrew confessa que ele não tem quase nada a dizer sobre o assunto para além de afirmar que tem “razões muito boas” (140-5), Maria intervém na conversa para clarificar o que ela quis dizer ao utilizar o termo “Puritano” em primeiro lugar:

            “Um diabo de puritano que ele é, pois não é nada com constância a não ser um velhaco, um jumento presunçoso, que decora gestos e frases para ter acessos de declamação. Tão entupido de excelentes qualidades, segundo ele mesmo, que acredita que estas garantem que todos os que o veem o amem; e é nesse vício dele que a minha vingança vai encontrar material para trabalhar.

(2.3.146-52)

            Shakespeare usa a palavra “Puritano” apenas raramente; para além dessa passagem, onde ocorre três vezes, e uma já mencionada acima em Bem Está o Que Bem Acaba, a palavra surge apenas em O Conto de Inverno (4.3.44-5) e Péricles (4.6.9). Essas duas últimas referências são ambas satíricas. Na primeira, o bobo Pastor observa que aproxima-se o festival de tosa das ovelhas e que haverá “apenas um Puritano” entre os cantores, e ele cantará os “salmos para berrantes”, como pensava-se fazer habitualmente os imigrantes do Continente. No segundo exemplo, a cafetina do bordel Mytilene, em Péricles, reclama da incontestavelmente virtuosa Marina que “ela faria de um Puritano um demônio, se ele barganhar por um beijo dela”. Esses exemplos são incidentais, simplesmente refletindo a maneira pela qual a palavra “Puritano” podia esconder um riso das plateias de Londres da mesma forma que as piadas anti-Católicas eram a base do palhaço de palco. O engajamento de Maria com o termo é mais estudado. Ela oferece cuidadosas qualificações: em primeiro lugar ela diz que Malvólio é um “tipo de Puritano”, não somente “um Puritano”, e então segue ao indicar que o termo não aplica-se bem depois de tudo, pois Malvólio é na realidade um idiota autocentrado.

            Que tipo de Puritano é Malvólio, então, se é de fato um, e o que Maria diz sobre os Puritanos? A passagem sugere que os Puritanos podem ser como Malvólio, ou Malvólio como os Puritanos, mas somente até o ponto que eles podem compartilhar algumas características comuns. Se os Puritanos tendem a ser ególatras e complacentemente orgulhosos sobre si mesmos, então eles e Malvólio merecem qualquer tipo de zombaria direcionada a eles. O “Se” coloca um aviso, entretanto, ao traçar analogias fáceis. Nem todos os Puritanos são sufocantes e ególatras; é preciso permitir as distinções. Ao mesmo tempo, o “Se” pode ser uma advertência aos Puritanos também: comportem-se como Malvólio, e vocês não serão poupados da crítica satírica.

            Essa segunda advertência é especialmente pertinente, porque Malvólio comporta-se de formas que são comumente associadas com o Puritanismo. Ele parece regozijar-se ao depreciar as festividades de outras pessoas. Ele é conservador em sua maneira de vestir-se. Quando critica a Condessa Olívia por “encantar-se com um desprovido malandro” como Feste, ela rebate que Malvólio está “doente de auto-amor” e prova “com um apetite destemperado”, em vez de tomar como “dardos” aquelas coisas que ele considera “balas de canhão” (1.5.80-90). Evidentemente a Condessa gosta de ter em sua propriedade ambos, esse apóstolo da sobriedade e o espírito-livre de Feste, que a aconselha que “O gozo de agora faz rir” (2.3.48); os dois harmonizam-se. A gravidade de Malvólio é útil para ela num tempo de luto pelo seu irmão morto; presumivelmente ele é um dos que podem manter as festividades do tio dela, Toby Belch, e de seus companheiros, a um nível decoroso. Malvólio invoca a autoridade dela quando tenta terminar uma festa tarde da noite na casa dela. “Minha senhora mandou-me dizer a você que apesar dela o abrigar como parente, ela não é aliada das suas desordens” (2.3.95-7), ele diz a Sir Toby, e é possível imaginar que a Condessa disse algo desse tipo; a festa é muito barulhenta, e certamente a Condessa merece alguma observação de decoro em sua própria casa. A espirituosa e sensível Maria está impressionada ao descobrir a “baderna” que os convidados estão fazendo, e os alerta que Olívia “chamou seu administrador Malvólio e o pediu para os colocar para fora” (72-4). Ao mesmo tempo, a maneira de Malvólio em colocar seu ultimato é tão convencida e inoportuna que ele rapidamente perde qualquer simpatia que de outra forma poderia acumular. Sobretudo, a própria ambição secreta dele em ser “Conde Malvólio” merece toda a vingança satírica que Maria, Toby e o resto poderiam reunir.

            “Pensas, acaso, que, por seres virtuoso, não haverá mais nem bolos nem cerveja?” Sir Toby fala a Malvólio (2.3.114-15). Nenhum satirista anti-Puritano poderia o dizer melhor. Os Puritanos eram desgostados por muitos por causa de suas desaprovações dos festivais da cerveja, [onde as paróquias vendiam cerveja para levantar dinheiro para as despesas da igreja e para auxiliar os pobres] os Jogos de Maio, os mastros enfeitados, [para as festas de primeiro de Maio] dança, bebidas e outras formas de entretenimento social. As desaprovações foram intensificadas pela percepção comum que esses pudicos legisladores da moralidade pública podiam, eles mesmos, ser secretamente lascivos e mundanos. Aqui, novamente, Malvólio adequa-se ao molde. Ele é culpado de “comportamento ensaiado a sua própria sombra” e por fantasiar sobre a Condessa Olívia como sua parceira sexual. Ele medita em solilóquio sobre os precedentes do seu tornar-se “Conde Malvólio”: “A senhora de Strachy” diz-se que “casou-se com o criado de quarto” (2.5.16-39). Ele orgulha-se de seu “riso familiar” (65), mesmo enquanto sabemos que ele é famoso por sua carranca. Ele anseia secretamente pelo poder de ser Conde Malvólio não simplesmente pela riqueza que isso o traria, mas, mais importante, pela autoridade que lhe daria para repreender Toby e Andrew e expulsá-los das propriedades da Condessa. Malvólio é como o estereotipado Puritano mesmo na maneira que lê e interpreta. Quando ele encontra uma carta colocada em seu caminho por Maria imitando a letra da Condessa, Malvólio faz malabarismos intelectuais para adequar-se à mensagem enigmática. “Se eu pudesse fazer isso relembrar algo em mim! exclama, conforme lê o enigma “M.O.A.I” (106-19). Maria de fato escolheu astuciosamente: “M” e “O” iniciam e terminam o nome de Malvólio, enquanto “A” e “I” são a segunda e a penúltima letra. Os Puritanos eram frequentemente acusados de torturarem o texto bíblico para fazê-lo dizer o que eles queriam que dissesse. Malvólio vê a oportunidade de assim o fazer com a carta. “E ainda, para triturar isso um pouco, ele se curvará ante mim”, diz, “pois cada uma dessas letras estão em meu nome” (137-8).

            Malvólio assim conforma-se de várias maneiras importantemente particulares no estereótipo do Puritano estraga-prazeres. Ele plenamente merece a punição satírica de ser enganado ao vestir uma estranha roupa festiva e sorrir como um idiota. Mesmo se temos em mente o cuidado de Maria em não criticar severamente todos os Puritanos dessa forma, e mesmo se a punição de Malvólio vai muito longe em seu uso do humilhante encarceramento, somos claramente convidados ao regozijo no merecido castigo desse estraga-prazeres sem graça. Raramente em Shakespeare as simpatias estão tão inclinadas para um lado. Presumivelmente, a razão por essa incomum inclinação de simpatias é que Malvólio é o inimigo de tudo aquilo que o teatro representa. Muitos padres Puritanos odiavam o teatro, como vimos, e Malvólio é claramente um apóstolo de mesma tendência. Quando ele deixa a cena no último ato, jurando que “Eu me vingarei de todos vocês!” (5.1.378), sua declaração de guerra tem um efeito assustador. Finalmente, em 1642, os Puritanos de fato fecharam os teatros de Londres como há mais de meio século gostariam de o fazer. As linhas de batalha são cunhadas em Noite de Reis. “O que virá é ainda incerto”, canta Feste (2.3.49).

            Em outro lugar, também, Shakespeare parece pronto para convidar o riso genial mas satírico sobre pessoas de tendências reformadoras. O nome de Sir Oliver Mar-text [texto com defeito], em Como Gostais, nos dá pistas sobre seu caráter: ele é um “padre-ambíguo” do tipo rústico, que casará Touchstone e Audrey “debaixo de um arbusto como um mendigo” (3.3.77). Os textos de casamentos, através de inúteis exegeses, eram uma prática mantida contra os escritores inclinados ao Puritanismo, como é o caso da tortura de Malvólio em “M.O.A.I.” Mar-text é um “vicário da próxima vila” (40); ele preside uma “capela” (62). Como muitos padres da igreja Anglicana inclinados ao Puritanismo, ele recusa-se a desencorajar seu entusiasmo pelo desprezo de Jaques por seu modesto chamamento. “Isso não importa”, ele murmura desafiadoramente quando deixado a sós no palco. “Nunca um garoto fantástico como qualquer um deles deve desprezar-me quando chamo” (98-9). Sir Hugh Evans, um pároco Galês em As Alegres Comadres de Windsor, com propensão por citar os métrico Salmos (3.1.23) e por ameaçar os garotos da escola sob sua tutela com açoitamento se eles falharem em recitar seus paradigmas latinos corretamente (4.1.15-78), é o alvo de algumas amigáveis piadas práticas. O curador Nathaniel e o pedante mestre-escola Holofernes, em Trabalhos de Amor Perdidos, oferecem exemplos dos tipos de instrutores que os jovens podiam encontrar na Inglaterra rural como consequência da reforma educacional Protestante. Hotspur, em 1 Henrique IV, professa estar encantado com as juras decorosas de sua esposa, como “Não você, em boa-fé”, e “tão verdade quanto vivo”, e “como Deus deve recuperar-me” e “tão certo quanto o dia”, como se ela fosse “uma esposa confeiteira” ou uma esposa cidadã de Londres que nunca aventurou-se para além de Finsbury (3.1.245-50). Esses maneirismos piedosos eram característicos dos povos burgueses da maior cidade e mais inclinada ao Puritanismo da Inglaterra.

            O interesse de Shakespeare no pensamento Calvinista é difícil de avaliar, em parte porque, como um dramaturgo, ele não discute o assunto diretamente, e, em parte, porque as diferenças entre a teologia Calvinista e aquelas de outras tendências religiosas não são sempre facilmente discerníveis na dramaturgia da Renascença. Certamente o Calvinismo exerceu uma profunda influência na igreja reformada Inglesa do século dezesseis e início do dezessete. Durante o meado do século dezesseis, quando a Católica Rainha Maria reinou na Inglaterra, muitos clérigos foram para o exílio, especialmente para Genebra; eles retornaram para casa fortificados com a doutrina Calvinista. A Universidade de Cambridge tornou-se um centro do ensinamento inspirado no Calvinismo. O fermento intelectual criado ali por William Perkins e outros é manifesto, por exemplo, no poderoso retrato de Christopher Marlowe, em Doutor Faustus (1588-9), de um erudito o qual “a diabólica queda” e “o destino desgraçado” permanecem como um aviso para todos aqueles que “praticam mais que os poderes celestiais permitem” (Epílogo do Texto A); Fausto é um terrível exemplo de um ser humano Calvinista degenerado, o qual a danação parece inevitavelmente pré-determinada apesar de seu conhecimento da doutrina Cristã. Marlowe frequentou Cambridge; Shakespeare não, e mesmo assim o Calvinismo estava em todo o lugar da cultura. Quais traços, se alguns, ele deixa em seus escritos?

            O edificante contraste entre o pai morto de Hamlet e seu tio vivo Cláudio é sugestivo em termos Calvinistas. “Olhe aqui para esse retrato, e para esse outro”, Hamlet encoraja sua mãe, enquanto mostra-a como esses dois homens eram parecidos, provavelmente nos medalhões usados por Hamlet e Gertrudes em volta de seus pescoços. A semelhança do ancião morto Hamlet mostra “Os cachos no cabelo de Hipérion, a fronte do próprio Zeus, / Um olho como Marte, para ameaçar e comandar”, enquanto que a imagem de Cláudio é como uma “espiga podre / Que contamina a safra” (3.4.54-66). Anteriormente, Hamlet enalteceu seu pai morto como “Um excelente rei, que foi perante este (isto é, comparado com Cláudio) / Hipérion ante um sátiro” (1.2.139-140). Esses contrastes são de Hamlet, e foram, sem dúvida, influenciados pela sua própria idealização de seu pai e o intenso ódio a Cláudio, mas outra evidência na peça aponta também para a ideia que Cláudio é um homem degenerado do tipo que Calvino descreve. O fantasma do pai de Hamlet certamente compartilha a percepção de seu filho de um abismo intransponível entre o virtuoso e o amaldiçoado: “se a virtude é forte, inabalável, / Ainda que a lascívia ande a tentá-la; / Já a luxúria, embora unida a um anjo / Resplandecente, sacia-se de um leito / Puro e vai caçar num lixão.” (1.5.54-8). Cláudio é um dos amaldiçoados. Quando ele tenta orar e alcançar o perdão celeste para seus pecados, assustando-se numa intensa recordação do assassinato que cometeu ao assistir a peça “ratoeira” de Hamlet, “O Assassinato de Gonzago”, Cláudio descobre para seu completo horror que ele é um homem que “não pode arrepender-se”. Ele entende que não pode rezar “Apesar da inclinação ser tão nítida quanto a vontade”. Como alguém que nasceu numa cultura Cristã e que teve, presumivelmente, todos os benefícios de uma educação Cristã, Cláudio sabe perfeitamente bem o que lhe é requerido, se ele espera a salvação: ele deve ser verdadeiramente penitente. Os ensinamentos de Cristo bendizem o pecador penitente, e Cláudio é um pecador. “Não há chuvas o bastante nos céus doces / Para lavá-las (As mãos ensanguentadas de Cláudio) tão brancas quanto a neve?” pondera em solilóquio. “De que serve o perdão, senão de apoio / Para enfrentar o crime?” (3.3.38-66). Ainda que instantaneamente surja a dolorosa explicação de que a misericórdia de Deus não é para Cláudio:

Porém, que forma de oração me cabe?

                       Perdoai-me o assassínio cometido?

                       Não serve. Estou de posse dos proventos

                       Pelos quais fiz o crime – eis a coroa,

                       Minha própria ambição, minha rainha.

                       Pode-se obter o perdão, guardando a ofensa?

                                                                                  (3.3.51-5)

            A questão responde-se. Se alguém nesse mundo corrupto pode esperar ser “empurrado pela justiça”; o contaminado dinheiro “Compra à lei. Mas não é tal nos céus; lá não há manha: / Lá fica a ação em sua própria natureza” (57-62). Cláudio compreende tudo muito bem, que ele deve entregar à coroa da Dinamarca e à viúva do irmão que assassinou, e prometer seu coração e alma a uma nova vida. Isso é tudo que Deus, em sua infinita misericórdia, o pede. Ainda que seja exatamente isso o que Cláudio não permite-se fazer.

            Por que alguns seres humanos são incapazes de querer para si mesmos uma vida devota? A resposta de Calvino dá ênfase na onipotência e na presciência de Deus: desde que ele sabe de tudo o que ocorrerá, ele sabe que alguns humanos falharão espiritualmente e serão eternamente amaldiçoados. Deus não requer todas as ações de uma pessoa, porém ele concede que alguns serão salvos e outros não. Não devemos culpar Deus por isso, ou vê-lo como o autor do mal; isso, em último caso, é heresia. Antes, devemos entender que a misericórdia é o presente de Deus que será ou não dado conforme ele vê adequação à sua misteriosa e infinita sabedoria. Nós, como humanos, não podemos esperar receber a salvação; esta é um presente de graça. Devemos conduzir nossas vidas tão bem quanto podemos, esperando que uma conduta virtuosa possa ser um sinal que estamos entre os eleitos.

            Hamlet mostra repetidamente que ele ponderou essas ideias com muito cuidado. Quando ele pede a Polônio que veja se os atores visitantes estão “bem agraciados” no Castelo de Elsinore, Polônio assegura a Hamlet, “Meu Senhor, eu as usarei de acordo com o merecimento deles.” Essa resposta não satisfaz Hamlet. “A adaga de Deus, homem”, ele replica, “muito melhor. Trate cada homem segundo o seu merecimento, e quem escapará à chibata?” (2.2.522-30). Isto é, todos nós podemos esperar nada além de punição se nos for dado de acordo com nossos justos merecimentos. A ideia recorre quanto Hamlet confronta Ofélia com o relacionamento mal-sucedido entre eles:

                        Entra para um convento. Por que desejarias conceber pecadores?

                        Eu próprio sou passavelmente honesto: mas poderia ainda assim

acusar-me a mim mesmo de tais coisas, que seria melhor que mi-

nha mãe não me tivesse concebido. Sou muito orgulhoso, vingati-

vo, ambicioso, com mais erros ao meu alcance do que pensamen-

tos para expressá-los, imaginação para dar-lhes forma, ou tempo

para cometê-los. O que podem fazer sujeitos como eu a arrastar-se

entre o céu e a terra? Somos todos uns rematados velhacos; não

acredites em nenhum de nós.

(3.1.122-30)

            Apesar de ver a si mesmo como menos corrupto que muitas pessoas, Hamlet está obcecado com o estado decaído da humanidade. Os pecados que ele atribui aqui a si mesmo – orgulho, raiva vingativa, ambição mundana – são os próprios “crimes” que enviaram o velho Hamlet para o Purgatório por um tempo, porque ser humano é cometer esses pecados diariamente, para a danação da alma de alguém, se este alguém não puder obter um compassivo perdão. O mundo no qual Hamlet encontra-se é como “um jardim abandonado / Em que só o que é mau na natureza / Brota e domina. Mas chegar a isto!” (1.2.135-7)

            Certamente, essas eram as premissas do Cristianismo medieval, voltando a Santo Agostinho e ainda antes; o estado decaído da humanidade, e a consequente necessidade pela graça de Deus, eram princípios fundamentais. Ademais, o pensamento Calvinista deu a essas ideias uma nova urgência no século dezesseis ao ressaltar a potencial falha espiritual. Shakespeare, em Hamlet, está continuamente cônscio desse perigo. A obstinada malignidade de Iago, em Otelo, não é menos perturbadora. E como podemos explicar, em Rei Lear, os assustadores contrastes entre Cordélia e suas irmãs cruéis, ou entre Edgar e Edmundo? Ou, em Ricardo III, entre Richmond e Ricardo? Em Macbeth, entre Banquo e Macbeth? Explicações humanas e psicológicas podem ir até um ponto apenas. Em último lugar, somos deixados com uma consciência das batalhas espirituais e cósmicas entre o bom e o mal que foi uma vez medieval em sua visão da natureza decaída da humanidade e Calvinista em suas preocupações com a intransigência do reprovado.

            Como as Estranhas Irmãs sabem, em Macbeth, que elas podem convencer Macbeth em cometer um horrível assassinato, e ainda assim não podem atingir o coração de Banquo? Suas dolorosas profecias incitam em Macbeth uma tentação irresistível, mesmo que (como Cláudio) ele esteja totalmente cônscio das consequências espirituais e morais do ato que contempla. Ele sabe que a “exagerada ambição” é a única motivação sugerindo-o a ir em frente com o assassinato do Rei Duncan, e está completamente consciente que a ambição não espera equilibrar a balança da justiça contra o assassinato de um parente, um rei, e um honrado convidado (1.7.12-28); entretanto, o assassinato prossegue. A misteriosa presciência das Estranhas Irmãs, que as capacitam a predizer que Macbeth “deverá ser rei doravante” (1.3.50), deve ser baseada numa certeza que Macbeth é reprovado em termos Calvinistas, como o Doutor Fausto de Marlowe: ele tem livre-arbítrio como um ser humano, porém fará o que está predestinado. Esse destino certo é uma parte fundamental de quem ele é. O destino é preenchido através das decisões dele, seus atos; porém também parece ser totalmente predeterminado. Banquo, em contraste, sabe como conter sua fragilidade humana dentro da bússola da conduta moral. “Poderes misericordiosos”, exclama, “Restringe em mim o mal que a natureza / Libera no repouso!” (2.1.7-9). Sua oração é respondida pois, apesar da sua natureza humana torná-lo inevitavelmente inclinado às ambições pecaminosas, ele é de alguma forma possuído pela graça, o que o permite orar eficazmente por assistência divina, sem a qual ele sabe que falharia. Como podemos entender essas diferenças cruciais entre Macbeth e Banquo? Presumivelmente a resposta encontra-se em algum lugar nos paradoxos do determinismo e do livre-arbítrio que encontra suas mais incisivas expressões na Renascença, nos escritos de Calvino e em obras como Macbeth.

            Shakespeare era antissemita? Certamente a cultura Inglesa de seus dias era intolerante com Judeus. Eles foram expulsos da Inglaterra durante o reinado de Eduardo I, em 1290, em resposta à opinião pública hostil contra o papel influente que os Judeus detinham no sistema bancário e nas finanças. Alguns Judeus viveram em Londres e na corte no final dos anos 1590 e início dos anos 1600, mas eles geralmente mantiveram-se fora de alcance, e alguns adotaram à tática de conformarem-se externamente à religião oficial Anglicana. A histeria pública irrompeu em 1594 quando um físico Português Judeu, Dr. Roderigo Lopez, foi acusado de ter conspirado contra a vida da Rainha Elizabeth e a de Don Antônio, pretendente do trono Português. O Judeu de Malta, de Christopher Marlowe, apresentando um protagonista Judeu (Barrabás) com uma impressionante longa lista de crimes de vingança, foi revivido com sucesso nessa ocasião. No final do século quinze, A Peça do Sacramento, dramatizou a história de cinco Judeus que compraram uma hóstia sacramental de um clérigo corrupto e sujeitaram-na à tortura, símbolo da crucificação de Cristo. As peças cíclicas no final do período medieval geralmente retratavam os Judeus como culpados pela crucificação e assim inveteradamente hostis à Cristandade. Como potenciais convertidos para a “verdadeira” fé eles eram aceitáveis, mas somente com essa condição.

            Os escritos de Shakespeare revelam às vezes algo dessa disposição. “Se eu não amá-la, sou um Judeu”, diz Benedick de Beatriz, em Muito Barulho por Nada (2.3.257-8). A metáfora é improvisada; Benedick não está dizendo nada sobre os Judeus. A própria natureza irrefletida dessa comparação difamatória trai uma atitude preconceituosa na cultura como um todo. Assim também em Os Dois Cavalheiros de Verona, quando o bobo Lance reclama de seu cão por não chorar em seu adeus à família: “Um Judeu choraria ao ver nossa despedida” (2.3.11-12). Uma das animadas afirmações de Falstaff é jurar que está dizendo a verdade, “ou eu não passo de um Judeu, um Judeu Hebreu” (1 Henrique IV, 2.4.177). As Estranhas Irmãs em Macbeth incluem um “Fígado de um Judeu blasfemador” entre os ingredientes de seu caldeirão diabólico (4.1.26).

            O Mercador de Veneza é, como é óbvio, muito mais complicada, tanto que podemos nos perguntar se as plateias de Shakespeare não estressaram-se pelo engodo abusivo de Gratiano em relação ao vencido Shylock, na cena do julgamento (4.1.311-98), ou anteriormente, pelo relato da cuspida de Antônio no sobretudo de Shylock (1.3.110, 124). Grandes atores como Henry Irving e Laurence Olivier mostraram quão simpático Shylock pode ser em performance, especialmente em seu discurso “Não tem os Judeus olhos” (3.1.55-69). Shakespeare ameniza os antagonismos brutais de um confronto Cristão-Judeu de várias maneiras. Antônio parece disposto a receber Shylock na sociedade Cristã, apenas se este parar de emprestar dinheiro à juros. “Apressa-te, gentil Judeu”, Antônio diz como adeus a Shylock, quando Shylock concorda em emprestar dinheiro “por mero esporte” sem juros outros para além do confisco de uma libra de carne em caso de não pagamento. “Eu selarei tal nó / E digo que há muita gentileza nos Judeus”, Antônio declara. “Os Hebreus tornar-se-ão Cristãos; ele torna-se gentil” (1.3.144-77). Claramente, essa disposição caridosa da parte de Antônio é postulada sobre a ideia de conversão: se o Judeu irá “tornar-se Cristão”, então ele não será mais um Judeu. A conversão da filha de Shylock, Jéssica, ao Cristianismo, como a esposa de Lorenzo, parece reforçar o ponto; ela é incluída na reunião festiva no final da peça em Belmont (mesmo que as produções modernas às vezes retratem-na como ainda uma desconfortável estranha). O Judaísmo é definido como uma matéria de fé, não de etnicidade.

            Ademais, O Mercador de Veneza não parece privilegiar o Cristianismo sobre o Judaísmo. Não importa o quanto somos convidados à simpatizar com Shylock como um homem condenado, sua crença em prosperar por suas “barganhas” e sua “gasta parcimônia” (1.3.47) é apresentada na peça como pertencendo a uma antiga ordem de conduta moral e ética. Sua defesa de Jacó por ter sido mais esperto que Labão em relação a algumas ovelhas soa como uma defesa da enganação: tendo concordado com Labão que as ovelhas semi-coloridas seriam o pagamento pelo trabalho de Jacó, este fincava gravetos descascados que expunham o interior branco em frente das ovelhas no cio para que delas nascessem cordeiros semi-coloridos. As interpretações de Shylock dessa história do Antigo Testamento soa como um cálculo cuidadoso e egoísta: “a parcimônia é uma benção, se os homens não roubarem-na” (74-88). Os Cristãos, por outro lado, acreditam no risco, na aventura, ao atirar uma flecha depois de perder uma como forma de encontrar a primeira (1.1.140-52). Antônio arrisca sua vida ao possibilitar a seu amigo mais jovem, Bassânio, competir pela mão de Portia. Bassânio arrisca tudo na escolha dos três porta-joias em nome do amor e da fortuna. Lancelot Gobbo deixa o emprego com Shylock para servir a Bassânio porque, como ele diz a Bassânio, “O antigo provérbio está bem dividido entre meu mestre Shylock e você, senhor: você tem a graça de Deus, senhor, e ele não tem o suficiente” (2.2.141-3). Por “suficiente” Lancelot quer dizer da prosperidade mundana sem graça espiritual. Como Lancelot diz, “Eu sou um Judeu se eu servir os Judeus por mais tempo” (107). Jéssica decide abandonar seu pai porque, como ela diz a Lancelot, “Nossa casa é o inferno” (2.3.2). Apesar do risco ser às vezes afoito e despreocupado, ele é apresentado na peça como mais corajoso e mais generoso do que a postura mais cautelosa adotada por Shylock. Sujeitar-se a riscos é parte da nova distribuição, e é bem-sucedido no final romântico da peça. As produções modernas frequentemente ironizam esse final como uma forma de mostrar que os Cristãos na peça são cruelmente superficiais, como eles às vezes o são, mas uma visão mais balanceada pode ser que Shakespeare, com toda sua sensibilidade compassiva perante a tristeza da condenação (certamente muito maior que qualquer coisa manifestada no Judeu de Malta de Marlowe), compartilha a parcialidade de sua cultura em favor da alegada nova ética Cristã da graça.

            Shakespeare “acredita” em fadas, fantasmas e outros seres supernaturais? Eles são certamente onipresentes em suas peças. Ao mesmo tempo, eles estão lá pelo menos em parte porque são essenciais a sua dramaturgia. Perguntar se devemos “acreditar” nas fadas de Sonho de uma Noite de Verão é uma questão complicada. Por um lado, elas são certamente reais no sentido de serem personagens dramáticos no palco. Elas têm suas discussões e seus sensos de humor; elas nos fornecem uma perspectiva divertida da tolice humana, especialmente do amor. “Senhor, quão tolos são esses mortais!” exclama Puck quando ele e Oberon preparam-se para testemunhar o “apaixonado desfile” (3.2.114-15) da disputa causada pelo próprio Puck ao erroneamente ungir os olhos de Lisandro com a erva mágica em vez de Demétrio, de modo que os dois jovens homens competem agora pelo amor de Helena. As fadas são essenciais ao tratamento dos pontos de vista da peça. Elas tornam-se “invisíveis”, presumivelmente com um gesto ou alguma rápida mudança de roupas. “Eu estou invisível”, diz Oberon (2.1.186), e nós como plateia assumimos isso, permitindo-o assim perambular entre os mortais sem ser “visto”. (Próspero, em A Tempestade, pode fazer a mesma coisa.) A própria autoconsciência desse dispositivo teatral nos coloca em alerta que a “invisibilidade” deles é uma convenção de palco, e assim também, talvez, seja qualquer sentido de sua existência objetiva. Numa contínua ironia dramática, os humanos dessa peça nunca estão conscientes da extensão a qual suas ações estão sendo dirigidas por criaturas sombrias invisíveis. Nossa consciência dessa ironia é parte de nosso prazer na performance teatral. Ao mesmo tempo, Shakespeare parece estar jogando com crenças populares em fadas, leprechauns, goblins e criaturas semelhantes. Essas crenças eram, sem dúvida, difundidas entre muitas pessoas na Renascença. Talvez o melhor sentido o qual as fadas de Shakespeare são “reais” é que elas são imortais em sua arte. Elas ainda desfilam ante nós, em nossa imaginação, e assim o farão sempre que suas peças forem lidas ou encenadas. Essa imortalidade é algo que nós, meros mortais, não podemos esperar desfrutar.

            Algo similar pode ser dito do emprego dramático de Shakespeare de fantasmas. Se os fantasmas e os demônios eram reais, esse foi um tópico muito debatido na Renascença. Os escritores Protestantes, como Samuel Harsnett tendiam a vituperar fantasmas e demônio como ficções de uma fantasia Católica corrupta; sua Declaração de Imposições Papistas Odiosas (1603) é incessantemente cética em sua denúncia de exorcismo. O Rei James I ponderou um ceticismo similar na questão da bruxaria. Os fantasmas de Shakespeare estão por todo lado, e eles são capazes de extraordinários artifícios de palco. O fantasma do pai de Hamlet pode fazer-se visível aos guardas no posto e para Hamlet e Horácio, mas ele também pode fazer-se simultaneamente visível a Hamlet e não para Gertrudes (Hamlet, 3.4.136-45). Alguns leitores tomam isso como evidência que o fantasma é uma produção da imaginação hiperativa de Hamlet, mas uma explicação igualmente plausível é que esse fantasma simplesmente não deseja comunicar-se com Gertrudes. Sobre o que eles falariam?

            Em todo caso, nas tradições da Renascença, os fantasmas são plenamente capazes dessas táticas. As Estranhas Irmãs manifestam-se a Banquo e Macbeth e então “desaparecem” de uma forma que Ross e Angus não as veem: “A terra tem bolhas”, diz Banquo, “como a água, / E essas vêm de lá” (Macbeth, 1.3.78-80). O fantasma de Banquo em Macbeth duas vezes revela-se para Macbeth enquanto os convidados na mesa de banquete não veem nada (3.4.38-108). Mesmo Lady Macbeth está convencida que “Isso é a própria pintura de seu medo” (61). Ainda que a direção de palco parece clara o bastante: “Entra o Fantasma de Banquo, e senta-se no lugar de Macbeth” (37 SD). Esse fantasma é real no teatro. Assim o é “o Fantasma do jovem Príncipe Eduardo, filho de Harry o Sexto”, e assim o são os fantasmas de Henrique VI, Clarence, Rivers, Grey, Vaughan, Hastings, os dois jovens Príncipes, Lady Anne e Buckingham, que visitam o Rei Ricardo e então Richmond, com profecias alternadas de derrota ou vitória na batalha do próximo dia (Ricardo III, 5.3.118-76). Ricardo e Richmond estão ambos dormindo em suas respectivas tendas, e ainda assim os fantasmas parecem “reais” num sentido que eles não são confinados a um sonho. A intenção coletiva de “alojarem-se” na alma de Ricardo na batalha de Bosworth, levanta a possibilidade que, como espíritos, eles possam ter uma influência decisiva nos afazeres dos mortais. “O Fantasma de César” aparece a Brutus nas vésperas da batalha de Philippi em Júlio César sem ser percebido pelos soldados que guardam Brutus (4.3.276-304), e ainda uma vela ou candelabro queima “mal”, como se sinalizando a presença de algo sobrenatural (278). “Você deve me ver em Philippi”, anuncia esse “espírito maligno” a Brutus, claramente implicando que a derrota dos assassinos de César em Philippi está predeterminada (284-5). Os fantasmas de Shakespeare, sendo criações dramáticas, ocupam um mundo ambíguo da arte que nos convida a especular sobre suas relações com o mundano, sem terem proposto quaisquer respostas dogmáticas.

            As bruxas similarmente ocupam um espaço dramático ambivalente. As Estranhas Irmãs, em Macbeth, são introduzidas na direção de abertura da peça com “Entram as três Bruxas”, e são em outro lugar identificadas pelo mesmo nome. “Fora, bruxa!” diz a esposa de um marinheiro para uma delas (1.3.6). “Múmia de bruxa” é um dos apavorantes ingredientes do caldeirão diabólico delas (4.1.23). Hécate, deusa da noite e da bruxaria, encontra-se com elas no que parece ser uma cena não-Shakespeariana (3.5). A bruxaria “celebra / As oferendas à pálida Hécate” (2.1.52-3). As três aparições que as Estranhas Irmãs mostram a Macbeth emergem e então desaparecem no espaço abaixo do palco Elisabetano associado com o reino do inferno (“Por que decai o caldeirão?”, 4.1.106). Quando a Duquesa de Gloucester, em 2 Henrique VI, incita uma bruxa chamada Margery Jordan a conjurar espíritos para ela, Margery e sua cúmplice “fazem as cerimônias necessárias, e fazem um círculo”, recitando “Conjuro te”, etc., “Há relâmpagos e raios terríveis; então ergue-se o Espírito” (1.4.1-41). “Ergue-se” poderia querer dizer sobre o sair de um alçapão no palco principal. Demônios encontram Joan la Pucelle (isto é, Joana D´Arc) em 1 Henrique VI, balançando suas cabeças em desafio e recusando a oferta dela em permiti-los sorver seu corpo para indicar que os abençoados dias de vitória dela sobre os Ingleses está terminando (5.3.1-24). Esses demônios também, presumivelmente, emergem ao palco de um alçapão.

            Presságios são também comumente relatados nas peças de Shakespeare, com prodigiosas sugestões. Em Júlio César, muitos presságios ocorrem na noite anterior do assassinato de César: mãos queimando sem consumir a carne, leões perambulando nas ruas de Roma, corujas piando e cantando ao meio dia, e ainda mais (1.3.15-32). As águias que acompanham Cássio e Bruto a Philippi, alimentando-se das mãos dos soldados, abandona-os para dar lugar a corvos, gralhas e falcões conforme a batalha aproxima-se, persuadindo mesmo o cético Cássio a “parcialmente creditar às coisas que pressagiam” (5.1.81-92). O oculto é, assim, uma parte integral da dramaturgia de Shakespeare, mas sempre apresentada de uma forma que levanta questões sobre a “realidade” do que a plateia vê ou ouve.

            O mundo espiritual do drama de Shakespeare é assim como uma cena agitada, evocando um Cosmos no qual espíritos, demônios e fadas exercem um provável e ainda incerto poderoso controle sobre o destino humano. Quais tipos de valores espirituais habitam esse Cosmos? A religião provê qualquer tipo de resposta ou consolação pelos manifestos desapontamentos da vida? Peças diferentes fornecem diferentes insights, é óbvio, e diferentes gêneros configuram diferentes expectativas. Ademais, podemos talvez perguntar se Shakespeare dá privilégio especial a laços sociais de amizade, entendimento, amor e compaixão que podem ajudar a reparar às circunstâncias trágicas da vida e prover realização para as aventuras mais felizes da vida. Essas qualidades compensadoras são geradas da gentileza humana e da habilidade de perdoar, contrabalançando a propensão pior da humanidade pela crueldade e indiferença. Elas não são, de modo geral, sacramentais; isto é, elas não são trazidas pelas obras da liturgia e prática da igreja. Elas são geralmente compatíveis com as parábolas de Cristo exaltando a virtude e a contenção, mas elas não dependem da promessa na existência eterna celestial depois da morte do corpo. Elas são, nesse sentido, seculares e humanísticas sem serem hostis à religião organizada, e geralmente sem rejeitar um papel último à providência benigna nas questões humanas (apesar dessa providência não ser encontrada nas peças Romanas).

            Quando o Duque Senior, em Como Gostais, reflete sobre o que ele e seus colegas na floresta mais sentem falta na sociedade que deixaram para trás, no exílio involuntário, ele nota três coisas principais: ser tocado na igreja “com o sagrado sino”, sentar “em bons banquetes de homens” e enxugar os olhos “Das lágrimas que a sagrada piedade engendrou” (2.7.119-22). Ao dizer isso ele está ecoando às próprias qualidades da vida civilizada as quais Orlando apelou a pouco em sua solicitação de ajuda em tempos de desesperada necessidade. Ir à igreja tem seu local adequado nesse rol, talvez mais como um costume social do que um evento sacramental ou ritual, desde que é imediatamente comparada com o costume social de banquetear-se em companhia e com atos de caridade que são incitados ao conhecer o que é “ter e receber piedade” (116). As pessoas precisam umas das outras, e é melhor satisfazerem-se com feitos caridosos.

            Paradoxalmente, a força da dramatização de Shakespeare de valores caridosos pode ser vista com claridade especial num cenário não-Cristão, onde a universalidade desses valores eleva-se acima da particularidade cultural. O caso notável desse ponto é Rei Lear. Nominalmente ambientada na Bretanha pré-Cristã, e recheada de promessas aos deuses e deusas do Cosmos não-Cristão (“Ouça, Natureza, ouça! Cara deusa ouça!” 1.4.274, “Vocês me veem aqui, vocês deuses, um pobre homem velho”, 2.4.274), Lear banha-se em idealismos que nossa cultura tende à associar com a Cristandade porque é a religião mais próxima de muitos. Sem dúvida, essa proximidade e familiaridade com o ensinamento Cristão convidou às primeiras plateias de Shakespeare a reconhecerem as conexões. Um exemplo ocorre na primeira cena da peça. Quando o Rei da França aprende que Cordélia foi banida pelo seu pai, ele naturalmente supõe que a ofensa dela deve ter sido de “um grau não natural / Que o torna monstruoso”. Cordélia implora a seu pai para assegurar França que ela não é culpada de “nenhuma mancha viciosa, assassina, podre, / Nenhuma ação não casta ou passo desonroso”, e que foi banida simplesmente por lhe faltar “Um olho ainda solícito e tal língua / Que estou feliz em não tê-la” (1.1.222-35). França imediatamente entende o ponto: Cordélia não praticou a bajulação calculada que é, frequentemente, o modo do mundo. Ele coloca a questão diretamente ao seu rival pela mão em casamento de Cordélia:

                                                           Meu Senhor de Burgundy,

                                   O que diz à dama? O amor não é amor

                                   Quando combina-se com considerações

                                   distantes do ponto inteiro. Você a terá?

                                   Ela é, em si mesma, um dote.

                                                                                              (1.1.241-5)

            Esse idealismo altruísta parece antes estranho na boca de um rei poderoso que poderia esperar, como o Duque de Burgundy, um dote como sine qua non a qualquer acordo entre duas famílias reais e nobres, mas aquela estranheza ressalta a oposição temática aqui entre o mundano e uma fé no ágape, ou amor que é completamente altruísta. O amor, na visão de França, não pode ser chamado amor, a não ser que seja benevolente, generoso e puro. França, além disso, elucida o que ele quis dizer quando endereça à própria Cordélia, explicando porque a escolheu apesar dela ter sido banida pelo seu pai e rejeitada pelo mundano Duque de Burgundy:

                                   Bela Cordélia, rica na pobreza,

                                   Eleita e muito amada no desprezo,

                                   Aqui reclamo a ti e às tuas virtudes.

                                   Seja certo eu tomar o repudiado.

                                                                                              (1.1.254-7)

            Esses são os paradoxos das Beatitudes no Sermão da Montanha de Cristo: “Abençoados sejam os submissos, pois eles herdarão a terra”, “Abençoados são aqueles que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos”, “Abençoados são aqueles que são condenados em prol da retidão, porque deles é o reino dos céus”, etc. (Mateus, 5: 3-12; veja também Lucas 6: 20-3). O Cristianismo, é claro, não mantém um monopólio desses idealismos e, consequentemente, essas ideias parecem perfeitamente apropriadas ao mundo pré-Cristão de Rei Lear, mas elas ressoam fortes aqui como um guia para a simpatia da audiência. Claramente é pretendido que nós admiremos à honestidade irrepreensível de Cordélia, por mais imprudente que ela seja, e admiremos França por honrá-la nesses termos. Ademais, esse sistema de valor opera por toda a peça. Kent, heroico em sua honesta lealdade, paga o preço do exílio. Edgar é forçado a fugir para salvar sua vida. As pessoas mundanas, entretanto, prosperam insolentemente e quase são bem-sucedidas em tomar todo o reino.

            As verdades dolorosas das inversões da peça entre sabedoria e loucura, visão e cegueira, são repetidamente apontadas pelo Bobo de Lear, descrevendo Lear como alguém que “carregaste o teu burro nas costas para andares no pó” e que “desde que tu fizeste de tuas filhas tuas mães” “pois quando entregas a chibata na mão delas e abaixas as próprias calças” (1.4.159-71). O conselho irônico do Bobo a qualquer um que deseja ser bem-sucedido é “Melhor é soltares a roda que está rolando morro abaixo, para não quebrares o pescoço só por segui-la. Mas quando um grande subir, deixa que ele te leve.” (2.4.70-3). Claramente o Bobo não deseja que nenhuma pessoa decente siga seu conselho; ele próprio prende-se lealmente a Lear mesmo no ponto mais baixo das fortunas de Lear. O que o Bobo está fazendo é definir à “sabedoria” e à “loucura” em dois sentidos radicalmente opostos. “Sabedoria” é, para os mundanos, a crença no auto-interesse, ao passo que para o puro de coração a sabedoria é o conhecimento e prática da bondade; por outro lado, “loucura” é a falta de malícia para os mundanos, inocência para os virtuosos. Erasmo fez a analogia com o Cristianismo explícita em seu Elogio do Loucura (Moriae Encomium, 1509, traduzida para o Inglês em 1549): Erasmo vê Cristo como um sábio tolo porque seu ensinamento é, ao mesmo tempo, tão espiritual e tão exaltado, em sua visão do que é finalmente a verdade e o bem. Rei Lear é um tributo dramático à grande ideia de Erasmo.

            Um idealismo similar manifesta-se ao longo do cânon de Shakespeare. O perdão é frequentemente para Shakespeare ambos, uma bela ideia e um dispositivo de estrutura dramática. Em Cimbelino, por exemplo, num cenário mítico pré-Cristão como aquele de Rei Lear, muito da ação gira em torno da profunda penitência de Póstumo Leonato por ter ordenado a execução de sua esposa Imogênia sob uma falsa denúncia de adultério. Pensando que teve sucesso em seu ignorante desejo de encerrar a vida dela, Póstumo volta da Itália para a Bretanha com a intenção de ser capturado e morto. “Morro assim / Por ti, Ó Imogênia”, ele declara em solilóquio, “por quem minha vida / É morte a cada instante” (5.1.25-7). A morte será para ele parte um ato de reparação e parte um gesto de desespero que ele sente por ter cometido um crime imperdoável. Ele é salvo do seu pior ego pela forma tragicômica da história, a qual Imogênia não está de fato morta, e pela disposição dela em perdoar o que ele fez. Em O Conto de Inverno, também, a desesperadora recusa de Leontes em perdoar a si mesmo por ter causado a morte de sua virtuosa rainha Hermione ao acusá-la injustamente de adultério leva a uma conclusão similar: depois de dezesseis anos de pesar penitente, Leontes é restaurado por um aparente milagre e é assim reunido com sua esposa que pensava ter destruído. O perdão dela é tão simples que não requer nem palavras: é como o perdão de Imogênia a Póstumo Leonato, ou Cordélia a Rei Lear, que, quando seu pai começa a recuperar a sanidade, e observa que ela tem “alguma causa” para odiá-lo, replica simplesmente, “Nenhuma causa, nenhuma causa” (Rei Lear, 4.7.75-8). Próspero, em A Tempestade, embate-se com a difícil tarefa de perdoar seus inimigos.

            Esse tema do perdão é especialmente insistente em Lear e nos últimos romances, mas ele encontra-se em todo lugar nas primeiras peças também: no perdão de Júlia ao inconstante Proteus em Os Dois Cavalheiros de Verona, no perdão de Hero a Cláudio em Muito Barulho por Nada, na conversão de Oliver de um vilão para um irmão amável pronto a fazer restituições a Orlando por todo o erro cometido por ele em Como Gostais, na determinação de Duque Frederick em transmitir seu desonesto título a seu irmão banido na mesma peça, na disposição de Helena em renovar seu casamento com Bertram depois das muitas tentativas dele de repudiá-la em Bem Está o que Bem Acaba, na tardia mas sincera reconciliação de Henrique IV com seu filho em 2 Henrique IV, no perdão de Desdêmona a seu marido mesmo quando ela está morrendo em suas mãos em Otelo, e ainda mais. Medida por Medida é um verdadeiro banquete de perdão e reconciliação: Ângelo e Lúcio são perdoados pelo Duque, Mariana toma Ângelo como seu marido apesar da inclinação pelo mal que ele tão abundantemente demonstrou, Isabella mostra-se capaz de perdoar Ângelo por ter (conforme ela acredita) executado seu irmão, este e Isabella aprendem a perdoar um ao outro e a si mesmos pela dolorosa disputa, Cláudio é restaurado a sua Julieta e a sua irmã Isabella, a Pompey é ensinada uma lição, em vez de ser executado como criminoso, o Reitor é perdoado por ter desobedecido uma ordem, Escalus é perdoado por ter sido iludido ao suportar o abuso de justiça de Ângelo, e mesmo a vida do devasso prisioneiro Barnardine é poupada. É como se Shakespeare visse o perdão como uma importante resposta à insensatez e à brutalidade: as pessoas devem aprender a perdoar o imperdoável. As analogias com o ensinamento Cristão são marcadas, apesar de não de um modo que exclua outras ideias religiosas. Devemos ter em mente também que o perdão é um dispositivo estrutural essencial para Shakespeare, especialmente nas comédias e nos últimos romances, de modo que a ênfase tenha implicações teatrais e, também, ideológicas. Mesmo que nós não possamos dizer com qualquer certeza que Shakespeare pessoalmente “acreditava” nos valores do perdão, caridade, compaixão, generosidade e no amor altruísta, podemos dizer que, como dramaturgo, ele considerava esses valores essenciais para as histórias que ele escolheu dramatizar dessa forma.

            Talvez podemos também dizer que Shakespeare parece muito mais interessado como dramaturgo nos efeitos purificadores emocionais e espirituais do remorso e do perdão, do que em instruções mais teológicas sobre como evitar o pecado com vistas de escapar dos tormentos do inferno e assegurar uma vida eterna no paraíso. Esta ideia, da vida eterna em Deus, raramente manifesta-se nos escritos de Shakespeare. De fato, Hamlet escolhe não matar Cláudio quando este ora para não enviar a alma do homem para o paraíso (3.3.74-8). A Rainha Catarina, em Henrique VIII, passa seus últimos momentos meditando na “aquela harmonia celestial que irei” e é recompensada com uma visão de “Espíritos de paz” enquanto levanta suas mãos aos céus (4.2.80-3). Ainda que esses sejam exemplos raros, e mesmo aqui podemos tomar os pronunciamentos dos falantes como mais indicativos de seus estados mentais (Catarina é retratada como uma mulher profundamente devota) do que qualquer sentido maior em qualquer peça de Shakespeare, de que o paraíso recompensará os virtuosos e que o inferno punirá os viciosos. Otelo grita de angústia, quando compreende que assassinou uma esposa inocente, “Açoitem-me, demônios, / Me privem de poder ter tal visão! / Batam-me ao vento! Queimem-me no enxofre, / Lavando-me num mar de fogo líquido!” (Otelo, 5.2.286-8). Emília ternamente fala de Desdêmona como “a mais angelical, / E você [Otelo] o mais negro demônio” (134-5). Mais uma vez, entretanto, esses discursos evocam os estados emocionais dos falantes. A peça Otelo não nos pede, para a maioria dos críticos pelo menos, para considerar se Otelo deve ser imaginado a passar por punição eterna no inferno enquanto Desdêmona deleita-se em glória eterna. As peças de Shakespeare não trabalham dessa forma. O que isso pode sugerir sobre as próprias visões religiosas de Shakespeare é questão de debate.

            As ideias sobre fé religiosa e crença apresentadas nas peças de Shakespeare compartilham das mesmas bases que suas ideias sobre sexualidade e política. As ideias sobre religião são exploradas com intensidade especial conforme ele volta-se, em sua carreira de escritor, aos gêneros da peça problema e da tragédia. Essas peças especialmente, mas também o cânon como um todo, mostram uma detalhada e incisiva familiaridade em ambos o dogma Católico e com a ênfase Calvinista no abismo inseparável entre os eleitos e os rejeitados. Em sua aproximação às acaloradas controvérsias religiosas que eram tão características da era em que viveu, ele tende a ser generoso e moderado, permitindo caridosamente às qualidades compensatórias nos seguidores de várias tendências rivais. Seu anticlericalismo é suave comparado com o de outros dramaturgos e escritores do período. Em sua análise histórica de ambos Rei João e Henrique VIII, ele é equilibrado. Com os reformistas Puritanos ele é menos simpático, por nenhuma outra razão além de que eles eram, frequentemente, inimigos vociferantes do teatro. Apesar de seu tratamento dos Judeus ser colorido pelos preconceitos arraigados de sua época contra uma religião que foi vista como inimiga da Cristandade, ele é muito mais contido do que outros escritores contemporâneos. Ele confunde os paradoxos do determinismo e do livre-arbítrio de uma forma tal que permite o jogo livre de ambos os lados do argumento. Ele lida habilmente com a preocupante questão da crença em fantasmas e outros espíritos ao tratar de suas muitas aparições em suas peças como parte necessária da experiência teatral. Ele diz muito pouco sobre a salvação em Cristo ou sobre a promessa de vida eterna no paraíso como recompensa pelo comportamento virtuoso. Em vez disso, ele mantém a generosidade caridosa como sua própria recompensa e sincera penitência pelas falhas humanas como um caminho certo para encontrar a felicidade e a reconciliação. O perdão é uma dupla benção, como a graça do próprio paraíso: para citar Pórcia em O Mercador de Veneza (4.1.185), “Ela abençoa quem dá e quem recebe.”

            Ainda não examinamos os caminhos mais céticos de pensar sobre a diferença religiosa e sobre o lugar da humanidade no Cosmos. Esses assuntos vêm a seguir, no que é, talvez, uma extensão lógica do que já vimos. A dúvida religiosa era heresia no tempo de Shakespeare. Ela era também, para alguns, um desafio inevitável ao pensamento mais ortodoxo. Quaisquer conclusões que Shakespeare possa ter alcançado pessoalmente, seus escritos no início do século dezessete sugerem que ele chegou a essas questões gradualmente no curso de sua carreira como dramaturgo. O gênero de tragédia que adota com vigor por volta de 1599 é, para ele, o idioma primário no qual uma exploração pode dar-se.

[:]