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Introdução aos Sonetos de Shakespeare contida em The Complete Works of Shakespeare, Sixth Edition, David Bevington, 2009.

Para uma discussão mais completa sobre os personagens dos Sonetos de Shakespeare e a recepção dos sonetos ao longo dos séculos:

https://shakespearebrasileiro.org/shakespeare-atraves-das-eras-os-sonetos/

          Shakespeare pareceu ter cuidado mais de sua reputação como um poeta lírico que como um dramaturgo. Ele contribuiu para os principais gêneros não dramáticos de seus dias: da narrativa amatória ovidiana Vênus e Adônis, ao protesto em O Rapto de Lucrécia, à poesia filosófica em ― A Fênix e a Pomba. Ele colaborou na publicação dos seus dois primeiros poemas importantes, dedicando-os ao jovem Conde de Southampton com um pleito a ele por patrocínio. Escrever poesia nesse viés era mais elegante que escrever peças, que alguém o fazia principalmente por dinheiro.

          Um poeta com ambições desse tipo simplesmente tinha que escrever uma sequência de sonetos. A criação de sonetos estava em voga na Inglaterra no início e no meio da década de 1590. Baseado na tradição sonetista de Francesco Petrarca, Sir Thomas Wyatt, e outros, ganhando um novo momento em 1591 com a publicação de Astrophel and Stella, de Sir Philip Sidney, a moda terminaria quase tão abruptamente quanto começou, em 1596 ou 1597. As sequências de sonetos desse breve período contêm os nomes da maioria dos conhecidos e dos menores poetas da época: Amoretti de Edmund Spenser (1595), Delia de Samuel Daniel (1591 e 1592), Caelica de Fulke Greville (não publicado até 1633), Idea´s Mirror de Michael Drayton (1594), Diana de Henry Constable (1592), Phyllis de Thomas Lodge (1593), e as sequências mais imitativas de Barnabe Barnes, Giles Fletcher, William Percy, Bartholomew Griffin, William Smith, e Robert Tofte.

          Shakespeare escreveu sonetos durante o apogeu do gênero, pois em 1598 Francis Meres, em seu Palladis Tamia: Wit´s Treasury elogiou de Shakespeare seus “sonetos açucarados entre seus amigos particulares.” Mesmo não estando impressos até o momento, nós sabemos pelo comentário de Meres que os sonetos circulavam em manuscritos entre os conhecedores e mereciam respeito. Shakespeare pode, de fato, ter preferido postergar a publicação de seus sonetos, não por alguma indiferença em relação aos seus valores literários, mas por um desejo de não parecer muito profissional. Os que “faziam a corte” na Renascença Inglesa, aqueles cavalheiros que as realizações supostamente incluíam a versificação, olhavam para a escrita de poesia com uma evocação designada para entreter um companheiro ou para cortejar uma dama. A publicação não tinha requinte e muitos desses autores apresentavam consternação quando seus versos eram pirateados na forma impressa. A argúcia juvenil na Londres de 1590, aristocrática ou não, frequentemente imitava essa tendência. Como o jovem John Donne, eles buscavam o veredito favorável de seus colegas da Casa das Cortes [Inn of Court] (onde jovens homens estudavam direito) e professavam não importar-se com um reconhecimento mais amplo. Se Shakespeare foi motivado por essa via nós não sabemos, mas, de qualquer forma, sua muito procurada sequência de sonetos não foi publicada até 1609, muito depois que a prática havia passado. O editor, Thomas Thorpe, parece não ter obtido a autorização de Shakespeare. Dois sonetos, números 138 e 144, tinham sido pirateados dez anos antes por William Jaggard em The Passionate Pilgrim, 1599, uma pequena antologia com alguns poemas de Shakespeare e outros erroneamente atribuídos a ele. Os sonetos não foram reimpressos até 1640, ou porque a voga dos sonetos já havia terminado, ou porque a edição de Thorpe havia sido suprimida.

          As circunstâncias inexplicadas da publicação deram azo a uma série de perguntas incômodas e aparentemente irrespondíveis. Provavelmente nenhum enigma em toda a literatura inglesa provocou tanta especulação e produziu tão pouca concordância. A quem os sonetos remetiam? Eles contam uma história consistente, e, se sim, eles dizem algo sobre a vida de Shakespeare? A dificuldade básica é que não podemos ter a certeza que a ordem a qual Thorpe publicou os sonetos representa a intenção de Shakespeare, nem podemos assumir que Thorpe fala por Shakespeare quando dedica os sonetos a “Mr. W. H.” Como eles estão, a maioria dos primeiros 126 sonetos parecem se endereçarem, em uma terna amizade, a um maravilhoso jovem aristocrata, enquanto os sonetos 127-52 em sua maioria falam da senhorita de cabelos negros do poeta. Ainda os dois últimos sonetos, 153-4, parecem não relacionados a qualquer coisa anterior e colocam alguma dúvida na confiança da ordenação. Dentro de cada grande grupo de sonetos, além disso, encontramos evidentes inconsistências: os ciúmes desaparecem e reaparecem abruptamente, o poeta lamenta sua absoluta rejeição pelo amigo e então fala, alguns poucos sonetos depois, de afecção harmoniosa mesmo que nada tivesse ocorrido, e assim por diante. Alguns sonetos estão intimamente conectados com seus predecessores; alguns estão aparentemente desconectados (entretanto mesmo aqui nós devemos permitir a real possibilidade de Shakespeare planejou justaposição e contraste). Não podemos ter certeza se o amigo dos sonetos 1-126 é realmente uma pessoa ou são várias. Nós podemos somente especular que o triângulo amoroso infeliz descrito pelos sonetos 40-2, os quais o amigo usurpou a senhorita do poeta, pode ser identificado com o triângulo amoroso dos sonetos da “Dama Negra”, 127-52. A maioria dos leitores sente uma continuidade do todo, ainda que se encontrem bloqueios em sonetos teimosamente fora de lugares. A tentação de rearranjar a ordem se provou irresistível, mas nenhuma ordem alternativa jamais ganhou aceitação. O consenso é que a ordem de Thorpe é às vezes suspeita, mas pode ter mais razão de que à primeira vista parece. Ela é, de qualquer forma, a única ordem impositiva que temos.

          Não menos frustrante é a dedicatória de Thorpe “À Única Causa Desses Seguintes Sonetos, Mr. W. H.” Levando em conta uma posterior e desautorizada publicação, não podemos assumir que Thorpe fala por Shakespeare. É bem possível que ele esteja somente agradecendo à pessoa que obteve os sonetos para ele, tornando a publicação possível. Suficientemente mundano, Mr. W. H. poderia ser William Hall, um associado de Thorpe no negócio editorial. Ademais, o uso elisabetano permite algumas instâncias de “causa” [begetter] no sentido de “obtentor”. Donald Foster ofereceu novos e persuasivos argumentos para a ideia que “Mr. W. H.” é somente um erro tipográfico de um tipo comum e que Thorpe quis dizer “Mr. W. S.”, Mestre William Shakespeare. Nesse caso, “causa” quereria dizer simplesmente “criador”. Essa solução detém uma grande nitidez, mas outros leitores se perguntam se ela responde à aparente contradição quando Thorpe fala de “Mr. W. H.” e “nosso sempre-vivente poeta” na dedicação como se eles fossem duas pessoas. Thorpe oferece a Mr. W. H. “aquela eternidade prometida por nosso sempre-vivente poeta”, como se Mr. W. H. fosse o sujeito ele próprio desses sonetos a quem Shakespeare jura imortalizar.

          A interpretação de “begetter” como “inspirador” tem instigado muitos entusiastas à procurar por um W. H. na vida de Shakespeare, um nobre que se tornou seu amigo. Há dois candidatos principais. O primeiro é o jovem Conde de Southampton, para quem Shakespeare havia dedicado Vênus e Adônis e O Rapto de Lucrécia. A dedicação para o segundo destes poemas indica um entusiasmo e gratidão que foram menos evidentes no primeiro. O nome do Conde, Henry Wriothesley, produz iniciais que são reversas de W. H. Se essa correspondência parece não convincente, W. H. pode estar para Sir William Harvey, terceiro marido de Mary, Lady Southampton, a jovem mãe do Conde. Alguns pesquisadores nos fariam acreditar que Shakespeare escreveu os sonetos para Lady Southampton, especialmente aqueles desejosos que um jovem homem (filho dela) se casasse e procriasse. Esse caso é inteiramente especulativo, entretanto, e nós não temos evidência que Shakespeare teve qualquer contato com Southampton depois de O Rapto de Lucrécia. A simples atribuição “Mr. W. H.” parece um modo estranhamente descortês para que Thorpe o tivesse atribuído a um Conde. Se se trata de Southampton, os sonetos devem ter sido escritos por volta de 1590, pois eles não dão dicas da carreira subsequente de Southampton: sua corte à Elizabeth Vernon, a gravidez dela e o casamento em segredo em 1598, e seu posterior envolvimento na campanha pela Irlanda de Essex e à frustrada revolta contra à Rainha Elizabeth. As investigações literárias que acentuam as similaridades com o relacionamento de Southampton são muito dispostas à ignorar dissimilaridades.

          O próximo principal candidato para Mr. W. H. é William Herbert, terceiro Conde de Pembroke, a quem, juntamente com seu irmão, os colegas de Shakespeare dedicaram o Primeiro Fólio, em 1623. Em 1595, os pais de Pembroke estavam tentando arranjar seu casamento com Lady Elizabeth Carey, neta do primeiro Lord Hunsdon, que era Lord Chamberlain (oficial que cuida dos assuntos doméstico de um rei ou rainha) e patrono da companhia de Shakespeare. Em 1597, outra aliança foi tentada com Bridget Vere, neta de Lord Burghley. Em ambas as negociações, o jovem Pembroke se opôs à garota em questão. Essa hipótese requer, entretanto, uma data posterior desconfortável para os sonetos e postula um intervalo de idade entre Shakespeare e Pembroke que poderia ter gerado pouca oportunidade para amizade genuína. Pembroke tinha apenas quinze anos em 1595; Shakespeare tinha trinta e um. Ademais, nenhuma evidência apoia nenhuma outra alegação além da coincidência histórica. As iniciais comuns W. H. pode produzir outros candidatos também, como o advogado de Lincolnshire chamado William Hatcliffe proposto (para a satisfação de ninguém) por Leslie Hotson. Hotson espera datar a maior parte dos sonetos anteriormente à 1589, desde que Hatcliffe chegou em Londres em 1587-1588. Quando essas especulações são construídas no testemunho simples e enigmático de Thomas Thorpe, que poderia também não ter tido nenhuma conexão com Shakespeare, nós somos deixados com um caso que não poderia ser valiosamente descrito se ele não tivesse capturado a imaginação de tantos pesquisadores.

          As identificações biográficas também foram propostas para os vários personagens da sequência de sonetos, previsivelmente sem nenhum melhor sucesso. O poeta rival, com “a orgulhosa vela cheia de seu grande verso” (soneto 86), foi relacionado com Christopher Marlowe (que morreu em 1593), George Chapman, e outros. A sequência nos dá pouco para continuar, para além de que o poeta rival possui um talento considerável o bastante para intimidar o autor dos sonetos e de insinuar-se para o amigo aristocrata do autor. Nenhuma circunstância biográfica parecida com essa rivalidade veio à tona. Várias candidatas também foram encontradas para a “Dama Negra” [Dark Lady]. Uma delas é Mary Fitton, uma cortesã que teve uma criança de Pembroke em 1601. Novamente, não temos evidência que Shakespeare a conhecia, nem é provável que ele tenha carregado um romance com alguém de tão alto escalão. A. L. Rowse propôs Emilia Lanier, esposa de Alfonso Lanier e filha de um músico da corte chamado Bassano, uma mulher adequadamente negra de aspecto, mas de quem as presumidas conexões com Shakespeare repousam somente no rumor relatado que ela era a amante de Lord Hunsdon. Nós somos deixados sem saber quem foram quaisquer umas dessas pessoas, ou se de fato Shakespeare estava tentando ser biográfico.

          A mesma irresolução aflige a datação dos sonetos. Eles dão pistas de uma crônica pessoal estendendo-se sobre alguns anos, seguindo o arranjo de Thorpe dos sonetos ou alguma outra ordem alternativa? O soneto 104 fala que três anos se passaram desde que o poeta encontrou-se com seu amigo. Há outras sinalizações que relatam eventos contemporâneos? Uma linha no soneto 107 (“A lua mortal persistiu em seu eclipse”) é usualmente conectada com a morte da rainha Elizabeth (Conhecida como Diana ou Cynthia) em 1603, apesar de Leslie Hotson preferir vê-la como uma alusão à Armada Espanhola, em formação de batalha que relembrava uma lua crescente quando foi derrotada em 1588. As recentemente construídas pirâmides, no soneto 123, relembra Hotson dos obeliscos erigidos por Pope Sixtus V em Roma, 1586-1589; outros pesquisadores descobriram pirâmides erigidas nas ruas de Londres em 1603 para celebrar a coroação de James I. Como essas ilustrações sugerem, a datação especulativa pode ser usada para suportar uma hipótese de anterior ou posterior composição. O consenso cauteloso da maioria dos eruditos é que os sonetos foram escritos ao longo de vários anos; numerosos, certamente, antes de 1598, mas alguns talvez posteriormente e mesmo na época da publicação em 1609.

          De qualquer forma infrutífera essa busca por certezas inexistentes, ela pelo menos nos dirige às significativas questões críticas: deveremos esperar os sonetos de natureza “pessoal” a serem pelos parcialmente autobiográfico? Os sonetos de Shakespeare golpearam vários leitores com gritos de coração, às vezes contendo vozes com medo de rejeição, auto-aversão, e humilhação, e em outros momentos como uma grande gratidão por afecção recíproca. Esse poder de expressão pode, entretanto, ser um tributo ao dom dramático de Shakespeare antes de uma evidência de envolvimento pessoal. As sequências de sonetos anteriores, ambas elisabetanas e pré-elisabetanas, estabeleceram uma variedade de convenções artísticas que tendiam a deslocar a biografia. O famoso Rime de Petrarca, ou sonetos, posteriormente coletados em seu Canzoniere, apesar de ser endereçado à Laura em duas sequências (durante a vida e depois da morte dela), idealizavam Laura como uma mulher intocável adorada por seu auto-degradante e miserável amante. Os imitadores de Petrarca – Serafino Aquilano, Pietro Bembo, Ludovico Ariosto, e Torquato Tasso entre os italianos, Clement Marot, Joachim du Bellay, Pierre de Ronsard, e Philippe Desportes entre a Plêiade francesa – retrabalharam essas convenções em incontáveis variações. Na Inglaterra, a moda foi adotada por Sir Thomas Wyatt, o Conde de Surrey, George Gascoigne, Thomas Watson, e outros. Amoretti de Spenser e Astrophel and Stella de Sidney, apesar de inspirados ao menos em parte pela mulher real nas vidas dos poetas, eram também profundamente comprometidos com teorias da escritura de poesia. A rejeição de atitudes estereotipadas e relacionamentos que vieram a dominar a típica sequência de sonetos petrarquianos é evidência não de literalismo biográfico na arte, mas de uma nova insistência em emoções realistas na arte; Como a musa de Sidney o encoraja, “olhe para teu coração e escreva.” Assim, ambos as escolas petrarquianas quanto as não-petrarquianas evitavam a escrita biográfica em si. Isso é essencialmente verdade para todos os sonetistas elisabetanos, da séria procura de Drayton pela abstração platônica em seu Idea´s Mirror até os coros fáceis de escritores de sonetos menores sobre Diana, Phyllis, Zepheria ou Fidessa.

          A “história” conectando os poemas individuais com a sequência de sonetos elisabetana nunca foi muito importante ou consistente, mesmo quando nós não podemos ter certeza da ordem a qual os sonetos foram escritos. Dante usou conexões em prosa em seu La Vita Nuova (por volta de 1282) para enfatizar a continuidade narrativa, e assim também Petrarca, mas essa robusta estrutura foi abandonada pelo final do século dezesseis. Antes de contar uma história cronológica, a típica sequência de sonetos elisabetana oferece uma série tematicamente conectada de meditações líricas, principalmente sobre amor mas também sobre teoria poética, as adversidades da fortuna, a morte, etc. Os eventos narrativos mencionados de tempo em tempo não são a substância da sequência mas a ocasião para a reflexão meditativa. As atitudes não necessitam ser consistentes ao longo da série, a os personagens não necessitam ser consistentemente motivados como um personagem dramático em uma peça.

          A sequência de sonetos de Shakespeare retém essas convenções da criação de sonetos elisabetanas e emprega muitas situações arquetípicas e temas que foram explorados pelos seus predecessores e contemporâneos. Sua ênfase na amizade parece nova, pois nenhuma outra sequência endereçam a maioria dos sonetos a um amigo, em vez de a uma amante, mas mesmo aqui a busca anti-petrarquiana por espontaneidade e candura está na melhor tradição elisabetana de Sidney e Spenser. Além disso, a exaltação da amizade sobre o amor era um lugar comum Neoplatônico difundido, recentemente popularizado nos escritos de John Lyly. A sequência de Shakespeare faz uso do design estrutural encontrados em modelos contemporâneos. Mesmo se nós não podemos reconstruir uma rigorosamente consistente narrativa cronológica dos sonetos, nós podemos discernir padrões gerais dos quais as crises emocionais do poeta surgem e sobre o que ele constrói suas líricas meditativas. Certos agrupamentos, como os sonetos endereçados à “Dama Negra”, 127-52, no qual individualmente eles comentam um ao outro através de reforço ou esquemas antitéticos e são assim melhorados pelo seu contexto, alcançando uma coesão plausível; há uma base então, em outras palavras, para a ordem dos poemas como Thorpe os imprimiu. Mesmo os dois últimos sonetos, 153 e 154, têm os seus defensores (veja o ensaio de Michael J. B. Allen em Shakespeare Survey, 1978). A justaposição é a técnica favorita das peças de Shakespeare, e nós devemos relembrar que ele foi o único entre os sonetistas elisabetanos que escreveu para o palco.

          Tomando nota dessas considerações, podemos explicar a maioria das situações retratadas pelos sonetos de Shakespeare ao postular quatro figuras: o poeta-falante ele mesmo, seu amigo, sua amante, e um poeta rival. A ordem dos eventos nesses relacionamentos entrelaçados não é aquela que o poeta deseja descrever; em vez disso, ele toca em sua situação de tempos em tempos, conforme ele explora suas próprias reações ao amor em seus vários aspectos.

          O relacionamento do poeta com seu amigo é vulnerável. Esse amigo para quem ele escreve é aristocrata, muito belo, e mais jovem que ele. O poeta está endividado com seu amigo como um patrocinador e deve considerar a si mesmo como subserviente, não importa quão profunda é a afecção mútua. Mesmo no ponto mais feliz, a relações entre eles é hierárquica. O poeta se rebaixa em ordem de exaltar a beleza de seu amigo em virtudes (sonetos 52-4,105-6). Ele confessa que seu amor seria idolatria, exceto pela bondade de seu amigo que excede toda a hipérbole poética. Como o mais velho dentre os dois, o poeta energicamente encoraja seu jovem amigo a se casar e eternizar sua beleza ao engendrar crianças (sonetos 1-17). Desta maneira, argumenta, é o caminho mais certo para conquistar o devorador Tempo, o inimigo de toda beleza e amor mundanos. Ademais, em outro lugar o poeta exalta sua própria arte como a mais defesa contra o Tempo (sonetos 55, 60, 63-5, etc.). Essas conclusões são nominalmente contraditórias, oferecendo a procriação em uma instância e a poesia em outra como a melhor esperança de imortalidade, mas tematicamente as duas são obviamente relacionadas. Mesmo no mais alegre dos sonetos, ao agradecer um “casamento de verdadeiras mentes” (116, 123), a consciência do Tempo devorador é inescapável. Se o amor e a poesia celebratória podem às vezes triunfar sobre o Tempo, a vitória é tudo do mais precioso porque é alcançada em face dessas estranhezas.

          O amor e a perfeita amizade são um refúgio para o poeta que encara um destino hostil e um mundo indiferente. Ele está frequentemente “em desgraça com o destino e os olhos dos homens” (soneto 29), oprimido pelos seus próprios fracassos, entristecido pelo fácil sucesso dos oportunistas (sonetos 66-8), envergonhado de ter que vender a si mesmo a baixo preço em sua própria profissão (sonetos 110-11). Se tomados biograficamente, isso pode querer dizer que Shakespeare não estava feliz com sua carreira de ator e dramaturgo, mas o motivo faz todo sentido na sequência de sonetos sem levar em conta a biografia. Uma leitura biográfica também levanta a questão da atração homossexual, como encorajada por Joseph Pequigney em seu Such Is My Love (University of Chicago Press, 1985). A referência libidinosa no soneto 20.12 à possessão de “uma coisa ao meu propósito nada” pode parecer militar contra a ideia de um relacionamento homossexual consumado, enquanto contrariamente muitos sonetos (como o 138) pontuam a consumação do poeta com sua amante. Ainda, o vínculo entre o poeta e seu amigo é extraordinariamente forte, e certamente há o perigo que os eruditos tradicionais minimizaram o vínculo erótico entre o poeta e seu amigo, como uma ideia repugnante. Ausências ocasionais torturam o poeta com a separação física, mesmo se ele compreende que o puro amor do espírito não deve ser impedido pela distância ou tempo (sonetos 43-51). A ausência é especialmente dolorosa quando o poeta deve confessar sua própria infidelidade (sonetos 117-18). A cronologia dessas ausências não pode ser retraçada satisfatoriamente, mas o tema perturbador da separação é incessante e irresistível. Por extensão, ele inclui o medo da separação pela morte (sonetos 71-3, 126). A preocupação com a ausência é intimamente relacionada com a obsessão do poeta com o Tempo devorador.

          Todos os infortúnios do poeta seriam suportáveis se o amor fosse constante, mas sua dependência perante o amigo aristocrata deixa-o à mercê dos humores mutáveis de seu amigo. O poeta não deve se queixar quando seu amigo bem-nascido entretém um poeta rival (sonetos 78-86) ou forma outras conexões emocionais, mesmo com a própria amante do poeta (sonetos 40-2). Essas infidelidades evocam acessos de ciúmes. O poeta vacila entre o esquecimento e a recriminação. Às vezes mesmo seu esquecimento é auto-abominação, no qual o poeta confessa que ele vai retomar seu amigo sob quaisquer termos (sonetos 93-5). Em certos momentos o poeta rebaixa-se, concedendo que ele merece nenhum tratamento melhor (sonetos 57-8), mas em outros momentos seus ressentimentos recompostos irrompem novamente (sonetos 93-5). Os medos do poeta, apesar de apresentados em uma ordem cronológica não clara, detém o escopo de um sentido fatalístico que a rejeição virá um dia (soneto 49), a um desprezível e amargo adeus final (soneto 87). Às vezes ele é atormentado pelo ciúmes (soneto 61) e às vezes pelo auto-ódio (sonetos 88-9).

          Os sonetos endereçados à amante do poeta, a “Dama Negra”, similarmente expressam medo, auto-degradação, e uma assustada consciência de perda do autocontrole. Em raros momentos de felicidade, o poeta elogia as negras características dela como prova de ela ser uma mulher real, não uma deusa petrarquiana (soneto 130). Frequentemente, entretanto, a falta de beleza ideal nela relembra o poeta de seu encantamento irracional (sonetos 148-50). Ela é tirana, desdenhosa, malévola, desleal, um “demônio fêmea” (soneto 144) que foi rechaçada pela melhor identidade do poeta, seu amigo. O poeta aflito não tanto pela injúria dela quanto sua própria auto-traição; ele vê amargamente que ele ofende sua mais nobre razão pela sua relação com uma carne ingovernável. Ele adora o que os outros abominam e perjura a si mesmo ao jurar a o que ele sabe ser falso (sonetos 150-2). Sua única esperança para escapar é punir sua carne e renunciar à vaidade de todas as batalhas mundanas (soneto 146), mas essa solução escapa a ele quando lança-se impotentemente de volta na perversa escravidão de um apetite doentio.

          Esse esboço de somente alguns temas da sequência pode sugerir o escopo e ainda a interconexão das meditações de Shakespeare sobre o amor, amizade e poesia. Os padrões são visíveis, mesmo se a exata cronologia (nunca importante na sequência de sonetos elisabetana) não puder ser determinada. O padrão sugere um papel crucial para os sonetos no desenvolvimento de Shakespeare, como Richard Wheeler sugeriu em seu Shakespeare´s Development (University of California Press, 1981): os sonetos anteriores sobre amor e casamento perseguem relacionamentos centrais para as comédias, enquanto os sonetos subsequentes movem-se com intensidade crescente no relato da promiscuidade e degradação do amor erótico e no sentido de novos assaltos sobre a poder de ligação da amizade de um modo que antecipa a visão sombria das tragédias. A brincalhona e não-ameaçadora heroína das comédias dá lugar à “Dama Negra” que inspira no poeta uma compulsiva e humilhante auto-ódio; a mutualidade na amizade encontra-se ameaçada pelo relacionado de apenas um dos lados no qual a degradação do poeta é respondida pela indiferença e infidelidade do amigo. É mesmo nos sonetos que Shakespeare abre a caixa de Pandora dos perigosos entrelaçamentos eróticos que ele teve que dramatizar nas últimas peças.

          A preocupação de Shakespeare com padrões é igualmente evidente em matéria de versificação e imagética. Os sonetos são escritos na forma “shakespeariana” ou na inglesa, abab cdcd efef gg. (O soneto 126, escrito inteiramente em dísticos, é uma exceção, talvez porque ele foi planejado como a conclusão da série endereçada ao amigo do poeta.) Essa forma familiar de soneto, introduzida por Wyatt desenvolvida por Sydney, difere marcadamente da divisão sexteto-oitavada dos sonetos petrarquianos, ou italianos. A forma inglesa de três quadras e uma dística conclusiva empresta a si mesma a um desenvolvimento passo-a-passo da ideia e da imagem, culminando na epigramática conclusão de duas linhas que pode sumarizar o pensamento das precedentes doze linhas ou dar uma energética interpretação das imagens desenvolvidas até aquele ponto. O soneto 7 persegue a imagem do sol na manhã, meio-dia, e anoitecer através das três quadras, uma para cada fase do dia, e então na dística “aplica” a imagem à relutância do amigo em gerar crianças. O soneto 29 move-se do ressentimento do infortúnio para uma celebração no amor do amigo e retoricamente espelha essa repentina elevação do humor na imagem de uma brincadeira: “na quebra do dia elevando-se / Da sombria terra.” Os dispositivos de retórica e imagísticos de Shakespeare exploram a estrutura do soneto que ele herdou e aperfeiçoou, e nos alerta novamente para o forte elemento de convenção e artífice nesses sonetos supremamente “pessoais”. As imagens recorrentes – o cancro da rosa, a súplica em um caso perante à lei, os ritmos sazonais do verão e inverso, as alternações do dia e da noite, as harmonias e dissonâncias da música – também testemunham à unidade artística do todo e a extraordinária disciplina do artista em evocar um sentido de impotente perda de autocontrole.