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          Se por “comédia romântica” exprimimos uma história de amor na qual os amantes superam os obstáculos colocados pelos seus pais, ciúmes, separações e perigos para serem finalmente unidos na felicidade do casamento, então Os Dois Cavalheiros de Verona é, talvez, a primeira de Shakespeare. Apesar de A Comédia dos Erros ser uma comédia anterior, ela é uma farsa de identidade equivocada, com somente um interesse secundário no casamento, enquanto Trabalhos de Amor Perdidos é uma invenção cortesã terminando com o adiamento de todos os casamentos. Nenhuma menção a Os Dois Cavalheiros de Verona ocorre até ela ser mencionada por Francis Meres, em Palladis Tamia: Wit´s Treasury, de 1598, mas a peça é, frequentemente, datada por volta de 1590-1594 com base no estilo: dísticos rimados, versos com o significado concluindo linha à linha [end-stopped], passagens de excessivo combate de argúcias, entre outras coisas similares. A Megera Domada (cerca de 1592-1594) é frequentemente datada um pouco após que Os Dois Cavalheiros de Verona, somente por causa que seu enredo duplo é mais complexo e suas explorações dos perigos e recompensas da corte mais desafiadoras. De qualquer forma, Os Dois Cavalheiros de Verona ajuda a definir, em um estágio anterior, o gênero das mais conhecidas comédias “festivas” de Shakespeare, de Sonho de uma Noite de Verão a Noite de Reis.

            Os Dois Cavalheiros de Verona é, também, o aprendizado de Shakespeare na ficção romântica da Itália e outros países da Europa meridional, de onde ele posteriormente derivará tantos enredos de amor ameaçado. Ele localiza sua história na Itália e dá a alguns de seus personagens nomes Italianos. Ele usa os dispositivos convencionais do enredo da ficção romântica: a inconstância no amor e na amizade, o disfarce da heroína como um pajem, o escutar ao acaso [overhearing] os falsos juramentos, banimento, abandono, a captura por bandidos, e assim por diante. Praticamente todos os personagens têm um ancestral reconhecível, não somente na ficção continental, mas no drama neoclássico também: Lucetta é a companhia convencional da heroína, Thurio é o rico mas indesejado cortejador rival (o pantalão), Antônio e o Duque são pais tipicamente resolutos que se opõem ao casamento de seus filhos, Speed e Lance são, no mínimo, supostos servos hábeis que entregam às mensagens e arranjam encontros, e os quatro jovens amantes são os protagonistas românticos.

            Mesmo nesse aprendizado precoce, de fato, Shakespeare parte da norma neoclássica de suas fontes continentais. O cenário permanece nominalmente Italiano, mas o tom é, com frequência, entusiasticamente Inglês, e a atitude de Shakespeare em relação a seus modelos românticos beira, ocasionalmente, o irreverente. Lucetta é uma verdadeira amiga de Júlia e uma conselheira virtuosa no amor; o gracejo em torno dela ser uma “cafetina” ou uma intermediária (1.2.41) relembra-nos quão diferente de uma governante [duenna] indecente ela realmente é. Thurio, Antônio e o Duque são todos retratados com tal paciência amigável que eles parecem, às vezes, inadequadamente motivados como oponentes da felicidade romântica. Sobretudo, Speed e Lance deixaram seus papéis tradicionais de manipuladores cômicos para tornarem-se palhaços de vaudeville.

            Ademais, as próprias convenções de amor e amizade são apresentadas de uma maneira que se lança sobre essas convenções uma luz improvável. O que fazemos com o inconstante Proteus, que rejeita sua fiel Júlia no momento em que está longe dela, tentando, em vez disso, ganhar a bela dama de seu melhor amigo Valentine, informar o Duque dos planos de Valentine de fugir com Silvia, e então tentar um assalto violento à castidade de Silvia? Que tipo de herói romântico é esse, e por que ele deve ser recompensado ao receber o perdão e ser restaurado a sua Júlia? Mais enigmático de tudo, é credível que Valentine deve responder a toda essa perfídia ao oferecer renunciar Silvia a Proteus? Da mesma forma, não é absurdo que os fora-da-lei na floresta próxima de Mântua tornem-se cavalheiros no exílio e que eles devem oferecer o comando do seu grupo a Valentine, a quem eles acabaram de capturar? O perdão do Duque a sua filha fugitiva Silvia não é repentino e não convincente? Esses problemas, que preocuparam muitos leitores da peça (apesar deles parecerem menos formidáveis aos espectadores de uma produção real), podem, talvez, ser melhor analisados de duas formas: como um resultado da combinação de duas fontes com convenções distintas por Shakespeare, assim sujeitando àquelas convenções a uma perspectiva irônica divertida, e como um resultado do interesse consciente de Shakespeare no tema do perdão não esperado para seu protagonista errante.

            Usando um dispositivo de enredo que tornar-se-ia costumeiro em suas comédias românticas, Shakespeare combina duas fontes ficcionais e, desse modo, instala uma tensão dramática entre as duas. Sua fonte principal parece ter sido Diana, um romance pastoral popular em Espanhol, do Português Jorge de Montemayor (1520-1561). Sua heroína, Felismena (correspondente de Júlia), é cortejada por Don Felix (Proteus), cujo pai (Antônio) desaprova a união e envia Don Félix para longe da corte. Felismena, seguindo-o disfarçada como pajem, para em uma hospedaria e é convidada pelo Anfitrião a ouvir uma música, ao que ela ouve Don Félix clamando o amor a uma nova dama, Célia (Sílvia). Nesse ponto, a semelhança entre Diana e a peça de Shakespeare acaba. Mesmo até aqui, apesar de várias semelhanças admiráveis, a história não provê uma contraparte para Valentine, o melhor amigo de Proteus e o fiel amante de Sílvia. O romance de Montemayor preocupa-se, primariamente, com a inconstância do amor.

            Para o motivo da verdadeira amizade, Shakespeare pode ter se voltado para a história de Titus e Gisippus, como contada por Sir Thomas Elyot em The Governor (1531). Aqui Gisippus, ao aprender que seu caro amigo Titus apaixonou-se pela sua amada, não somente renuncia à dama a Titus, mas também barganha a ida dele para a cama com ela, tudo sem o conhecimento da dama. O ponto dessa história, como o de outros tratados bem-conhecidos sobre a amizade, assim como o Euphues (1578) e Endymion (1588) de John Lyly, ou o Damon and Pythias (1565), de Richard Edward, é que a amizade é uma forma mais alta de afeição humana do que o amor erótico, pois é desinteressada, platonicamente pura e capaz de ensinar o altruísmo aos outros. Tal estória de amizade perfeita não provê, entretanto, nenhuma contraparte para Júlia, a dama abandonada por Proteus. Shakespeare encaixou organizadamente as duas histórias, criando um quarteto de amantes de duas situações triangulares. O amante falso da primeira história torna-se também o amigo falso da segunda – somente para ser superado no final pela generosidade de seu verdadeiro amigo.

            O problema dramático criado pela combinação dessas duas histórias é que elas levantam diferentes expectativas. Uma é dedicada à virtude da constância no amor; a outra, à amizade. A função última de Valentine é demonstrar verdadeira lealdade a sua Sílvia. Sua renúncia a ela em favor de Proteus parece inconsistente com seus votos como um amante. Por outro lado, a dupla perfídia de Proteus, em relação a seu amor a Júlia e seu amigo Valentine, parece reproduzi-lo indigno da ação generosa que Valentine lhe concede. O próprio nome de Proteus é sinônimo da inconstância; seu xará na Odisseia era famoso por sua habilidade de mudar de forma à vontade. (O nome de Valentine, por outro lado, simboliza constância no amor.) A união dos dois enredos simultaneamente intensifica a culpa de Proteus e a magnanimidade de Valentine.

            Entretanto, Shakespeare engendra uma virtude da aparente falta de credibilidade. Primeiro, a própria implausibilidade do altruísmo de Valentine no amor e a repentina conversão de Proteus à virtude permite a Shakespeare zombar gentilmente dos lugares-comuns literários de suas fontes. Ao mesmo tempo, Shakespeare encontra valor sério em seus tópicos convencionais de amor e amizade, através do dispositivo do paradoxo. Quanto mais improváveis as ações de Valentine parecem, mais transcendentes e maravilhosas elas acontecerão. Shakespeare prepara para o clímax de sua cena de perdão de várias maneiras. Primeiro, ele apresenta Proteus como uma pessoa essencialmente nobre que rebaixou-se através de uma falta única. Proteus é bem nascido, bem-sucedido e belo. A digna Júlia o ama por suas qualidades, e ele responde com sinceridade e paixão. Ele é igualmente entusiasta como amigo de Valentine. Somente quando ele vê Sílvia é que Proteus torna-se impotente, “deslumbrado” (2.4.207). Ele não pode ser totalmente culpado por ser vencido pela paixão, pois os outros amantes não são menos obedientes aos comandos do amor. De acordo com o código de amor que infunde essa peça, o amor não pode escolher seu objeto. O destino infeliz de Proteus é amar Sílvia. Ainda que ele deva ser responsável por suas ações e, de fato, culpar a si mesmo pela deserção que ele conscientemente cometeu. Seu auto-ódio aumenta conforme ele torna-se bajulador, mentiroso, traidor e, finalmente, estuprador em potencial. Como Ângelo em Medida por Medida, Proteus é compulsivamente motivado ao pecado repugnante, mas a escolha é, em último caso, sua. Falta o insight psicológico das comédias posteriores – os solilóquios não criam uma atmosfera sufocante de um pesadelo – mas o padrão de uma queda culpada continua manifesto.

            Estaremos provavelmente no caminho errado se tentarmos psicanalisar Valentine muito de perto; a escolha que ele deve fazer entre amor e amizade é mais um debate convencional sobre um tema favorito da Renascença do que um retrato realista do homem envolvido entre ideais conflitantes. Shakespeare não tenta conciliar o que é absurdo sobre a repentina renúncia de Valentine da mulher que era constantemente leal a ele e que não tinha a intenção de trocar um amor por outro como se ela fosse o objeto de algum tipo de permuta moralista. Entretanto, a própria implausibilidade da oferta de Valentine em renunciar à Sílvia, acentua a nobre intenção por trás do seu gesto. Nós somos surpreendidos, mesmo comicamente surpreendidos, porque não esperamos tal altruísmo na natureza humana; mas, se a amizade deve ser vista como a realização suprema do espírito humano, ela deve transcender à propensão extremamente comum da rivalidade e ingratidão. A generosidade de Valentine não é alcançada sem conflito interior. Na cena que culmina na tentativa de estupro, a primeira reação natural dele é de denúncia furiosa. O que muda sua mente é a profundidade e a sinceridade da confissão de Proteus e o desejo de perdão: “Se a angústia do coração / É um resgate suficiente do perdão, / Eu o ofereço aqui” (5.4.74-6). Valentine responde em nome da piedade e com a sugestão do exemplo divino: “Pela penitência a cólera Eterna é apaziguada” (linha 81). Quanto mais imerecido o perdão, mais altruísta o ato daquele que perdoa. Apenas ao conquistar seu desejo por Sílvia, Valentine pode ensinar seu amigo o altruísmo e assim reunir todos os quatros amantes em felicidade perfeita. Os Dois Cavalheiros de Verona é, assim, em parte uma comédia de perdão, antecipando as peças posteriores nas quais o protagonista romântico é igualmente culpado e igualmente perdoado: Muito Barulho por Nada, Medida por Medida, Bem Está o que Bem Acaba, Cimbelino e outras (veja Shakespeare and the Comedy of Forgiveness, de R. G. Hunter, 1965). Os Dois Nobres Cavalheiros, escrita muito depois (cerca de 1613) em colaboração com John Fletcher, é um retorno sofisticado às questões de amizade e de rivalidade sexual que são tão eminentes em Os Dois Cavalheiros de Verona.

            O perdão de Proteus deve vir de Júlia e não menos do que de Valentine. Ela, também, tem muito a perdoar; como Proteus penitentemente observa, “Ó céus! Se o homem fosse constante / ele seria perfeito” (5.4.110-11). Júlia inicia uma linhagem de heroínas Shakespearianas, incluindo Hero, Isabella, Helena e Imogênia, nas peças já nomeadas, que devem similarmente curar à inconstância pela constância delas. Como muitas heroínas Shakespearianas, Júlia é destemida, talentosa, modesta mas sagaz, pacientemente obediente no amor e ainda reservadamente galanteadora, uma verdadeira amiga e resistente. Disfarçada como um pajem, ela ouve a infidelidade de seu amante e, ainda assim, nunca perde sua fé nele. Ela pacientemente entrega às mensagens de Proteus a sua rival (como Viola em Noite de Reis) e gentilmente age como uma consciência para seu mestre errante.

            O uso de disfarce masculino por Júlia antecipa análises mais complexas, nas comédias posteriores, da natureza ambivalente e parcialmente ilusória das diferenças entre homem e mulher. Quando Júlia está determinada em usar um disfarce de homem para seguir Proteus a Milão, ela e Lucetta riem perante a necessidade de Júlia amarrar seus cabelos e vestir a si mesma com calças adornadas com tapa-sexos (2.7.39-61). Como um menino ator está interpretando uma jovem mulher disfarçada como um jovem homem, a graça teatral e o artifício positivamente nos convida para ver o gênero como algo amplamente definido pela interpretação de papéis e pelas expectativas sociais. A cena é uma reflexão divertida sobre diferentes maneiras as quais jovens mulheres e homens apresentam a si mesmos ao mundo.

            O repetido dispositivo do ouvir por acaso, como nas comédias posteriores, provê um teste para as intenções dos protagonistas. Pensando que não estão sendo observados, eles revelam suas verdadeiras naturezas para o melhor e o pior. Na cena brilhantemente planejada e improvável do clímax (5.4), Proteus como um possível estuprador é ouvido pela sua amante rejeitada e seu amigo traído. Por outro lado, Sílvia prova-se leal e casta em qualquer momento que é observada por Júlia (disfarçada de Sebastian) ou por Valentine nas cenas da floresta. Esse entreouvir [overhearing] sugere não somente que os feitos bons e maus da humanidade são testemunhados, mas também que uma providência beneficente irá proteger os virtuosos. A presença invisível de Valentine assegurará que Sílvia seja salva do estupro e que Proteus seja prevenido de cometer um crime de violência de fato. Como nas comédias posteriores desse tipo, o perdão é possível porque a culpa permanece somente na intenção.

            Essas resoluções dos conflitos, quase absurdas mas felizes, acontecem num local perto da floresta de Mântua, o primeiro dos que Northrop Frye chama de “mundos verdes” de Shakespeare. (English Institute Essays 1948, pp. 58-73). Apesar de apresentada de forma incompleta, essa floresta antecipa a Floresta de Arden e outras paisagens silvestres restauradoras. Seus habitantes são homens banidos protestando à injustiça da sociedade na corte ou fugitivos amores inclementes. Valentine aprende a preferir “às madeiras não-frequentadas” do que as “cidades de pessoas prósperas”. Sua “facção selvagem” de fora-da-lei desiste de atacar “mulheres tolas ou pobres passageiros” e apropriadamente jura “Pelo nu escalpo do frei gordo de Robin Hood” (5.4.2-3; 4.1.36-7). Os fora-da-lei são charmosamente adequados aos seus papéis de ameaçarem e então reunirem os amantes, providencialmente capturando Sílvia no momento em que ela está a caminho para encontrar Valentine. A ações deles são altamente improváveis, mas, então, o mesmo pode ser dito do perdão de Valentine a Proteus e da reconciliação repentina do Duque com seu esperado genro, Valentine. Como Arden, essa floresta é um local estranho, cujas mudanças no coração são ocorrências esperadas. A aura de improbabilidade pode também parcialmente explicar o descuido da peça em relação às distinções sociais e às realidades da geografia: o Duque é, às vezes, chamado de Imperador, e em um momento Valentine navega de Verona a Milão (ambas localizadas no interior).

            A comédia dos bufões Lance e Speed representa uma função similar àquela da improbabilidade romântica, ao reduzir o artifício e o melodrama da história de amor. Como podemos nos preocupar com o banimento de Valentine quando Lance expressa, “Senhor, há uma proclamação que o Sr. está desaparecido” [trocadilho entre banished e vanished] (3.1.217)? Ou como podemos afligir-nos perante a corte de Proteus a Sílvia quando o símbolo de amor que ele envia a ela é transformado no cão malcheiroso de Lance? Esse tipo de anticlímax absurdo ocorre a todo momento. O primeiro solilóquio de Lance, sobre a recusa do cão em lamentar a partida deles de Verona (2.3), é um exemplo brilhante do que poderíamos chamar de vaudeville ou piada cômica de stand-up, mas ela também comenta sobre a cena imediatamente precedente do adeus choroso de Proteus a Júlia. A amizade de Lance e Speed e, especialmente sua amizade a seu cão, deliciosamente blasfema o interesse sério da peça na verdadeira amizade. Numa das cenas mais engraçadas de Lance (4.4.1-38), ele descreve como ele desinteressadamente tomou para si a punição do cão ao urinar na saia de baixo de Sílvia. Similarmente, o espetáculo de Lance apaixonado, catalogando às virtudes e vícios de sua amante, garante-nos profundamente algo contra um envolvimento muito profundo com os perigos de Cupido. A peça continuamente relembra-nos da loucura do amor, sem renegar suas esquisitas alegrias, ou seu mais alto potencial para o altruísmo.