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A pergunta acima é a primeira fala de Hamlet, que já começa num clima fantasmagórico. Acaba de soar meia-noite e Francisco está de sentinela no terraço do castelo de Elsinore, na Dinamarca. Bernardo, que o substituirá, entra em cena e indaga “Quem está aí?” (Who’s there?) (1.1). À primeira vista, a pergunta pode parecer tola. Quem mais, além de um sentinela, poderia estar na plataforma de um castelo à meia-noite, numa noite fria? Além disso, o usual é que a iniciativa parta do próprio sentinela, ao pressentir a aproximação de alguém. Contudo, esta não é uma noite qualquer. Um fantasma apareceu em duas noites anteriores e é possível que retorne, razão pela qual Bernardo aproxima-se um tanto apreensivo. É possível ainda que, prudentemente, ele anuncie sua aproximação para não sobressaltar o colega Francisco, certamente cansado e entorpecido pelo frio, após um turno de vigília. Cabe a Francisco repetir a pergunta algumas linhas adiante, ao pressentir a chegada de Horácio e Marcelo: “Acho que eu os ouço. _ Parem, oh! Quem está aí?” (I think I hear them._ Stand: ho! Who’s there?) (1.1).

A pergunta, indiretamente, também é feita à platéia do teatro, ao leitor de Hamlet e agora a você, que lê esta página. Ela aparece em diversas peças de Shakespeare, quase sempre em alguma situação aflitiva e é geralmente dita com apreeensão ou, pelo menos, alguma surpresa. Seguem alguns exemplos:

a) Em “Tróilo e Créssida”, Tersites é “um grego disforme e grosseiro” (a deformed and scurrilous Grecian), conforme o autor o define na lista de personagens. Ele abre a terceira cena do Segundo Ato com um longo solilóquio, diante da tenda do chefe grego Aquiles, maldizendo o acampamento grego, às portas de Tróia. Pátroclo, um dos chefes gregos, entra em cena e pergunta: “Quem está aí? Tersites! Bom Tersites, entre e insulte” (Who’s there? Thersites! Good Thersites, come in and rail). Poucas linhas adiante, Aquiles entra em cena e indaga: “Quem está aí?” (Who’s there?). Desta vez é Pátroclo quem responde: “Tersites, meu senhor” (Thersites, my lord) (2.3);

b) Na mesma peça, o chefe troiano Enéias bate à porta de Pândaro, o alcoviteiro tio de Créssida, que se dirige à porta com estas palavras: “Quem está aí? O que há? Quer derrubar a porta? Essa agora! O que há?” (Who’s there? What’s the matter? Will you beat down the door? How now! What’s the matter?) (4.2);

c) Em “Romeu e Julieta”, Romeu, banido de Verona, esconde-se na cela de frei Lourenço. Batem à porta do frade, que responde assustado, falando alternadamente para Romeu e para o visitante: “Escute! Como batem! Quem está aí? Romeu, levante-se;/ Você poderá ser preso. Espere um momento! Levante-se;/ [Batem]/ Corra para o meu quarto. Já vou! Que seja feita a vontade de Deus!/ Que pressa é essa! Já vou, já vou!” (Hark! How they knock. Who’s there? Romeo arise;/ Thou wilt be taken. Stay awhile! Stand up;/ [Knocking]/ Run to my study. By and by! God’s will!/ What wilfulness is this! I come, I come!) (3.3);

d) Mais adiante, na última cena da peça, o medroso frei Lourenço entra no cemitério, com uma lanterna, uma alavanca e uma pá, e exclama: “Que São Francisco me proteja! Quantas vezes hoje à noite/ estes velhos pés tropeçaram em tumbas! Quem está aí?” (Saint Francis be my speed! How oft to-night/ Have my old feet stumbled at graves! Who’s there?) (5.3);

e) Em “Macbeth”, no pátio do castelo de Inverness, o general Banquo, sem conseguir dormir, passeia com seu filho Fleance. Macbeth, o dono do castelo, aproxima-se deles acompanhado de um criado, que traz uma tocha. Apreensivo, Banquo dirige-se primeiro ao filho e, em seguida, ao recém-chegado: “Dê-me minha espada. Quem está aí?” (Give me my sword. Who’s there?) (2.1);

f) Mais adiante, na mesma noite, Macbeth, fora da cena, assassina o rei Duncan e, ao retornar, ainda fora da cena, pergunta: “Quem está aí? O quê? Oh!” (Who’s there? What, ho!) (2.2). Este é um exemplo singular, já que quem indaga não está no palco;

g) Ainda em “Macbeth”, no conhecido solilóquio que inicia a terceira cena do Segundo Ato, os nobres Macduff e Lennox batem à porta e um porteiro bêbado encaminha-se para abri-la. Na sua longa fala, por três vezes, entre imprecações, ele pergunta: “Quem está aí?” (Who’s there?) (2.3);

h) Em “Cimbelino”, no início da segunda cena do Segundo Ato, a princesa Imogênia lê em sua cama. Escondido dentro de uma arca, o vilão Iachimo espera uma ocasião propícia para sair, roubar o bracelete da princesa e convencer o desafortunado Póstumo da infidelidade da esposa. Imogênia percebe a presença de uma dama de companhia, que entra no quarto, e pergunta à recém-chegada: “Quem está aí? Minha dama Helena?” (Who’s there? My woman Helen?) (2.2);

i) Na mesma peça, mais adiante, Belário, Guidério e Arvirago saem da caverna onde moram e encontram Clóten, filho de um primeiro casamento da rainha. Belário dirige-se inicialmente a Guidério e Arvirago e, em seguida, a Clóten: “A manhã está bem adiantada. Vamos! _ Quem está aí?” (It is great morning. Come, away! _ Who’s there?) (4.2);

j) Em “Rei João”, Hubert de Burgh abre a sexta cena do Quinto Ato com uma frase ameaçadora: “Quem está aí? Fale, oh! Fale rápido, ou atiro” (Who’s there? Speak, ho! Speak quickly, or I shoot) (5.6);

k) Após um longo solilóquio, em “Ricardo III”, o rei se assusta com a entrada em cena de Ratcliff: “Pelas chagas de Cristo! Quem está aí?” (’Zounds! Who’s there?) (5.3);

l) Em “Henrique VIII”, o rei alegra-se com a chegada do cardeal Wolsey: “Quem está aí? Meu bom lorde cardeal? Oh, meu Wolsey,/ a paz de minha consciência ferida;/ Você é uma cura digna de um rei” (Who’s there? My good Lord Cardinal? O! My Wolsey,/ The quiet of my wounded conscience;/ Thou art a cure fit for a king) (2.2).

Como se vê, as situações acima são as mais diversas: um acampamento militar, a cela de um frade, um cemitério, o pátio de um castelo, os aposentos de uma princesa, a entrada de uma caverna no meio da mata e assim por diante. O inesperado está em toda parte e a todos aflige. Em “Otelo”, a pergunta é feita em três ocasiões:

A primeira ocorre numa rua de Chipre, na primeira cena do Quinto Ato. Iago instiga o tolo Rodrigo a armar uma cilada contra o tenente Cássio. Na verdade, Iago planeja livrar-se de ambos de uma só vez, por meio de uma dupla cilada. A trama é bem-sucedida: Cássio recebe uma estocada de Rodrigo e este revida e fere seu oponente. Iago, traiçoeiramente, atinge Cássio por trás, na perna, e sai de cena. Pouco mais tarde, surgem Ludovico e Graciano e ouvem os gemidos de Cássio e Rodrigo. Os dois primeiros temem aproximar-se, com receio de uma armadilha na noite escura. Preferem esperar que chegue mais alguém para ajudar. Iago, que armou toda a confusão, retorna à cena com uma luz, e pergunta: “Quem está aí? Que barulho é este que anuncia um assassinato?” (Who’s there? Whose noise is this that cries on murder?) (5.1). Diferentemente de todos os exemplos acima, Iago sabe perfeitamente quem são os dois feridos. Ele finge surpresa, certifica-se de que Cássio desconhece seus agressores e aproveita a oportunidade para apunhalar Rodrigo traiçoeiramente. Além disso, Iago se vale da ocasião para amparar Cássio e angariar as simpatias dos influentes Ludovico e Graciano. Os vilões costumam mostrar-se simpáticos.

Na cena seguinte, a pergunta é feita novamente, por Desdêmona, que desperta no quarto do casal, com a chegada do marido: “Quem está aí? Otelo?” (Who’s there? Othello?) (5.2). É a primeira fala de Desdêmona na cena. Ela está aprensiva com o comportamento recente do marido, mas reaje naturalmente, a julgar por sua pergunta seguinte, casual e rotineira: “Você vem se deitar, meu senhor?” (Will you come to bed, my lord?) (5.2). Num dos exemplos anteriores, a pergunta “Quem está aí?” é feita pela desafortunada Imogênia, vítima inocente de uma aposta de seu marido Póstumo com o vilão Iachimo. Este último oculta-se, rouba o bracelete da princesa – um presente dado por seu marido -, descreve detalhes de seu quarto e não tem dificuldades de convencer Póstumo da infidelidade da esposa. Em Otelo, a inocente Desdêmona é vítima de um artifício semelhante, substituindo-se o bracelete pelo lenço fatídico e Iachimo por Iago. Até os nomes se parecem.

A pergunta é feita pela terceira vez na peça numa circunstância trágica. Otelo acaba de matar Desdêmona quando ouve batidas à porta: “Ó de casa! Meu senhor, meu senhor! (What, ho! my lord, my lord!) (5.2). Assustado, Otelo pergunta: “Quem está aí?” (Who’s there?) (5.2). É Emília, fora de cena, que indaga se pode falar com ele. Numa longa fala de onze linhas, ele diz que já vai, enquanto pondera consigo mesmo se deve deixá-la entrar.

A aflição de Otelo encontra um paralelo com a reação de Macbeth vista acima, logo após o assassinato do rei Duncan. Os dois generais fazem a mesma pergunta numa mesma circunstância: após cometer um crime sem testemunhas. Macbeth, fora da cena, assusta-se com alguma coisa que não conhecemos, possivelmente fruto de sua imaginação fértil e atormentada. Otelo, em cena, tem nas batidas à porta um dramático retorno à realidade.

As carreiras de ambos, antes bem-sucedidas, terminam arruinadas: Macbeth, seduzido pelo poder, interpreta mal as palavras equivocadas de três feiticeiras. Otelo, torturado pelo ciúme, deixa-se levar pela trama do perverso Iago.