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Paulo Honório, personagem principal do romance São Bernardo (1934), do escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953), tem muitas características em comum com dois personagens de Shakespeare. Na primeira metade do livro, até adquirir a fazenda São Bernardo, ele lembra Macbeth, disposto a tudo para atingir seus objetivos, sem medir consequências. Na segunda metade, casa-se com uma jovem professora e, como Otelo, torna-se extremamente ciumento, contribuindo assim para o desfecho trágico do romance.

O primeiro capítulo do livro é extremamente original e envolvente. O narrador, começa contando as dificuldades que teve para convencer alguns amigos a escreverem um livro junto com ele. Seu caráter é revelado logo no segundo parágrafo, quando ele conta que traçaria o plano geral do livro, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária, arcaria com as despesas e poria o seu nome na capa. Já se percebe que é um homem familiarizado com o campo, que dispõe de recursos e tem um temperamento um tanto dominador. Enquanto o autor narra as divergências surgidas entre ele e seus amigos, o leitor vai aos poucos se familiarizando com os personagens do livro. São eles o padre Silvestre, que ficaria com as citações latinas, o João Nogueira, que corrigiria a ortografia e a sintaxe, Arquimedes, que faria a parte tipográfica, e Lúcio Gondim, para a composição literária. No fim do capítulo, resignadamente, o narrador lamenta um mês de trabalho perdido e decide abandonar o projeto da parceria com os amigos e resolve continuar sozinho. Neste mesmo parágrafo, um comentário do narrador lembra as corujas de mau agouro de Macbeth: “Na torre da igreja uma coruja piou. Estremeci, pensei em Madalena”. O primeiro capítulo se encerra sem que se saiba quem é ele e muito menos esta misteriosa Madalena, citada pela primeira vez no livro.

Só no terceiro capítulo sabe-se que Paulo Honório, o narrador, teve uma infância pobre e sofrida, sem pai nem mãe, e que até os dezoito anos gastou muita enxada, ganhando cinco tostões por dia. Fez de tudo na vida. Juntou dinheiro e acabou comprando a propriedade, já arruinada, do filho do antigo proprietário, de quem se fizera amigo e emprestava dinheiro a juros, para financiar-lhe as farras e bebedeiras. Sem remorsos, à semelhança de Macbeth.

O novo proprietário plantou mamona e algodão e recuperou a fazenda, levantando-se às quatro da manhã e trabalhando duro todos os dias. Invadiu terras, ganhou questões graças ao advogado João Nogueira e, finalmente, enriqueceu. Montou uma escola na fazenda, para conquistar a benevolência do governador, e contratou o Padilha, o antigo proprietário, para administrar a escola.

Não se arrependia de nada. O que está feito, está feito, dizia, à semelhança da senhora Macbeth. Finalmente, enamorou-se de Madalena, uma jovem professora contratada por ele para a escola da fazenda. Ela e a tia que a criara, D. Glória, foram morar em São Bernardo.

São muitas as semelhanças entre Paulo Honório e Otelo. Ambos têm lembranças de uma infância sofrida e de muito trabalho: Otelo desde os sete anos frequenta o “campo coberto de tendas” (tented field) (1.3) e Paulo Honório lembra-se “de um cego que me puxava as orelhas”, para o qual trabalhou como guia, e conta que foi “vendedor de doce e trabalhador alugado”. São homens rudes: Paulo Honório não tem o costume de escrever e confessa que “esta pena é um objeto pesado” e Otelo admite que é “pouco agraciado com o doce linguajar da paz” (little blessed with the soft phrase of peace) (1.3).

Ambos são homens maduros: Paulo Honório conta que “completei cinqüenta anos pelo São Pedro” e Otelo admite que “já entrei no vale dos anos” (I am declined/ Into the vale of years) (3.3). Casaram-se com mulheres muito mais jovens do que eles: Madalena tinha 27 anos mas, delicadamente, Paulo Honório disse-lhe que “ninguém lhe dá mais de vinte” e Desdêmona, segundo seu pai, era uma donzela de “delicada juventude” (delicate youth) (1.2).

No entanto, o que mais os caracteriza são seus casamentos profundamente desiguais, com esposas jovens e prendadas. Paulo Honório admirava a capacidade da mulher. Ele decide escrever o livro sozinho e lamenta: “Se eu possuísse metade da instrução de Madalena, encoivarava isso brincando”. Coincidentemente, Madalena bordava e Otelo elogiava Desdêmona por ser: “tão hábil com sua agulha” (so delicate with her needle) (4.1).

O ciúme exagerado foi a causa da perdição de ambos. É curioso que a obstinação de Otelo em busca de uma prova da infidelidade de Desdêmona encontra um paralelo em Paulo Honório: “O que me faltava era uma prova: entrar no quarto de supetão e vê-la na cama com outro”.

O lenço que Desdêmona deixa cair inadvertidamente toma a forma de uma misteriosa carta escrita por Madalena em São Bernardo. O marido surpreende-a escrevendo e, obstinadamente, ela não deixa Paulo a leia e considera sua insistência como uma invasão indevida à sua privacidade. Depois de uma áspera discussão, “Madalena rasgou o papel em pedacinhos e atirou-os pela janela”.

Paulo Honório, que subiu na vida não só com muito trabalho, mas também com artifícios escusos, desconfia de tudo e de todos. À semelhança do Anselmo de Dom Quixote, ele se torna o Iago de si mesmo. Querendo testar o inocente Padilha, Paulo pergunta-lhe sobre o que ele conversa com Madalena. O administrado da escola é todo elogios: “Literatura, política, artes, religião… Uma senhora inteligente, a D. Madalena. E instruída, é uma biblioteca. Afinal eu estou chovendo no molhado. O senhor, melhor do que eu, conhece a mulher que possui”.

A última frase acima deixa Paulo Honório extremamente inquieto. Será que o Padilha sabe de alguma coisa? Como diz Iago, “Ninharias leves como o ar/ são para o ciumento confirmações fortes/ como provas da Sagrada Escritura” (Trifles light as air/ Are to the jealous confirmations strong/ As proofs of Holy Writ) (3.3). Nem mesmo D. Glória, a tia de Madalena, escapa das suspeitas do ciumento marido: “Passadas mansinhas, olhos baixos, voz sumida ― estava mesmo a preceito para alcoviteira”.

O episódio da carta ressurge algumas páginas adiante, quando Paulo Honório descobre, no chão, uma folha, talvez trazida pelo vento. Ele reconhece “a bonita letra redonda de Margarida”, mas não entende o texto. Algumas palavras são desconhecidas, outras “conhecidas de vista”, mas dispostas de uma forma que lhe dificultava a compreensão. Para o ciumento marido, “aquilo era trecho de carta, e de carta a homem”.

Não convém prosseguir para não tirar do leitor o prazer da leitura de “São Bernardo”. Basta dizer que o romance tem um desfecho surpreendente e original, bem diferente do de “Otelo”.