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            Shakespeare cria em A Tempestade um mundo de imaginação, um local de conflito e, em última análise, de rejuvenescimento mágico, como as florestas de Sonho de uma Noite de Verão e Como Quiserem. A jornada à ilha de Shakespeare é para um reino de arte, onde tudo é controlado pela figura do artista. Entretanto, a jornada não é um escape da realidade, pois a ilha mostra às pessoas o que elas são, assim como o que elas deveriam ser. Mesmo sua localidade justapõe o mundo “real” com uma paisagem idealizada: como a Nova Atlântis de Platão ou a Utopia de Thomas More, a ilha de Shakespeare é encontrada simultaneamente em algum lugar e em nenhum lugar. No nível narrativo, ela é localizada no Mar Mediterrâneo. Apesar de haver implicações do Novo Mundo, o Hemisfério Ocidental, onde Thomas More situou sua ilha de Utopia. Ariel vai colher o orvalho mágico, ao comando de Próspero, nas “Bermudas” (1.2.230). Calibã, indefeso, relembra Trínculo de um “Índio morto” (2.2.33) que pode ser mostrado para multidões ingênuas ávidas para verem tal criatura prodigiosa de mares longínquos, e o deus de Calibã, Setebos, era, de acordo com o relato de Richard Eden da circum-navegação de Magellan do globo (em História da Viagem, 1577), adorado pelos nativos Sul Americanos. Uma inspiração para a história de Shakespeare (a qual nenhuma fonte literária direta é conhecida) pode bem ser os vários relatos do naufrágio, nas Bermudas, em 1609, do Sea Venture, que carregava colonizadores para a nova colônia da Virgínia. Shakespeare emprestou alguns detalhes de Uma Descoberta das Bermudas, Outrora Chamada a Ilha dos Demônios, publicado em 1610, e de Uma Reportagem de Naufrágio e Redenção … das Ilhas das Bermudas, de William Strachey, o qual Shakespeare deve ter visto em manuscrito, pois não foi publicado até depois de sua morte. Ele escreveu a peça logo depois de ler essas obras, pois A Tempestade foi interpretada na corte em 1611. Ele também deve ter conhecido ou ouvido vários relatos da circum-navegação do mundo de Magellan, em 1519-1522 (incluindo a versão encurtada de Richard Eden, como parte de seu História da Viagem, de uma narrativa Italiana de Antonio Pigafetta), o jornal de Francis Fletcher da circum-navegação de Sir Francis Drake em 1577-1580, as Novidades da Virgínia (1610) de Richard Rich e outras fontes potenciais de informação. A fascinação de Shakespeare com o hemisfério Ocidental lhe deu, não a localização de fato da sua história, que permanece Mediterrânea, mas um estado da mente associado com a novidade e o exótico. Desse local estranho e desconhecido, ganhamos uma perspectiva radical do velho mundo da cultura Europeia. Miranda vê na ilha um “novo mundo” no qual a humanidade parece “corajosa” (5.1.185), e, apesar do maravilhamento dela ser temperado com a réplica de Próspero que “Isso é novo para ti” (linha 186) e pelo uso ainda mais irônico da frase dela, por Aldous Huxley, no título de seu romance satírico Admirável Mundo Novo [Brave New World], a ilha persiste como uma visão revigorante. Mesmo se a expericiamos de maneira transitória, como em um sonho, esse reino não-existente assume uma permanência desfrutada por todas as grandes obras de arte.

            Próspero governa autocraticamente como um rei-artista e patriarca desse mundo imaginário, conjurando julgamentos e visões para testar às intenções das pessoas e acordar às suas consciências. À ilha chega uma miscelânea de pessoas que, porque necessitam de suplícios variados, são separadas por Próspero e Ariel em três grupos: Rei Alonso e aqueles que o acompanham; o filho de Alonso, Ferdinand; e Estéfano e Trínculo. A autoridade de Próspero sobre eles, apesar de forte, tem limites. Como Duque de Milão, ele foi eruditamente desatento com as questões políticas e assim tornou-se vulnerável ao esquema maquiavélico de seu irmão mais jovem, Antonio. Somente nesse mundo à parte, o mundo do artista, os seus poderes derivados da erudição encontram sua esfera própria. Porque ele não pode controlar o mundo além da ilha, ele deve esperar que a “estranha e generosa Ventura, / Minha querida dama agora” (1.2.179-80) traga seus inimigos próximos a sua costa. Ele evita, além disso, as artes obscuras do satanismo. Ele é um mago branco, devotado ao máximo com o que considera ser um final feliz: resgatar Ariel da mágica da bruxa Sicorax, desacelerar o apetite de Calibã, espionar Antonio e Sebastião no papel da Consciência. Ele, assim, vê o presente do Destino, em entregar os seus inimigos em suas mãos, como uma oportunidade para perdoá-los e restaurá-los, e não para vingar-se.

            Tal suposição de um poder divino é próxima da arrogância, mesmo a blasfêmia, pois Próspero não é deus. Seu principal poder, aprendido dos livros e exercido através de Ariel, é o de controlar os elementos para, assim, criar ilusão – da separação, da morte, da benção de deus. Entretanto, porque é humano, mesmo esse poder é um fardo imenso e uma tentação. Próspero tem muito o que aprender, como aqueles os quais ele controla. Ele deve acalmar sua raiva, sua autocomiseração, sua disposição em culpar aos outros e sua dominação sobre Miranda. Ele deve superar o impulso vingativo que experiencia em relação àqueles que lhe lesaram, e deve vencer o anseio que vários pais sentem, em manter-se próximo de sua filha, quando esta é desejada por outro homem. Ele luta contra esses problemas através de sua arte, inventando jogos e shows nos quais a sua furiosa autocomiseração e ciúme são transmutados em cenas atuáveis de advertência divina e perdão de seus inimigos e na vigilante austeridade parental em relação à Miranda e Ferdinand. As responsabilidades de Próspero fazem-no comportar-se magistralmente e ser ressentido pelos espíritos da ilha. Sua autoridade é problemática para nós porque ele parece muito patriarcal, colonialista, até mesmo sexista e racista em seu usurpar para si mesmo o direito e a responsabilidade de controlar os outros em nome de valores que eles podem não compartilhar. Ariel anseia livrar-se dessa autoridade. Talvez a nossa simpatia por Próspero é maior quando percebemos que ele, também, com sentimentos confusos de alívio genuíno e melancolia, está pronto para renunciar a seu exigente e prepotente papel de inteligência moral criativa.

            Alonso e seus cortesãos ilustram de inúmeras maneiras o mundo não regenerado deixado para trás, em Nápoles e Milão. Nós os vemos pela primeira vez a bordo de um navio, assustados e desesperados, seus títulos e vestes refinadas zombadas por ondas estrondosas. A ambição fútil parece destinada a uma morte aquosa. Entretanto, a morte pela água, nessa peça, é uma transfiguração, em vez de um término, um renascimento místico, como no ciclo regenerador das estações do inverno até o verão. Ariel sugere o mesmo em sua música sobre um pai afogado: “Aquelas são pérolas no lugar de seus olhos. / Nada dele perdeu-se / Apenas sofreu uma marítima mudança / Em alguma coisa rica e estranha” (1.2.402-5). Ademais, esse milagre não é aparente, à primeira vista, para aqueles que são pegos na ilusão da morte. Como na Terra Desolada de T. S. Eliot, que repetidamente alude a A Tempestade, os seres humanos que cegam a si mesmos, temem um desastre que é ironicamente o prelúdio de um novo despertar.

          As ilusões criadas na ilha servem para testar esses homens imperfeitos e para fazê-los revelar seus verdadeiros egos. Apenas Gonzalo, que há muito decidiu ajudar Próspero e Miranda, quando eles foram banidos de Milão, responde afirmativamente à ilusão. Em seus olhos, o fato deles serem salvos do afogamento é um milagre: eles respiram ar fresco, a grama é verde na ilha, e suas próprias vestes não parecem manchadas pela água salgada. Seu estado ideal (2.1.150-71), que Shakespeare extraiu, em parte, de um ensaio de Montaigne, postula uma bondade natural na humanidade e não tolera às propensões sombrias do comportamento humano, mas, no mínimo, a alegria de Gonzalo está em contraste revigorante com os exaustos sorrisos desdenhosos de seus companheiros. Sebastião e Antonio reagem à ilha mágica, assim como à nação de Gonzalo, recusando cinicamente à crença em milagres. Eles zombam de Gonzalo, pois este insistentemente olha pelo lado mais otimista; se ele examinar suas roupas supostamente sem manchas com mais cuidado, eles troçam, ele descobriria que os seus bolsos estavam cheios de lama. Confiantes que não estão sendo observados, eles agarram a oportunidade proporcionada pelo sono de Alonso, de tramar um assassinato e um golpe político. Essa tentativa não é somente desprezível, mas, também, insanamente ridícula, pois eles são todos náufragos e não têm mais reinos para disputarem. Ainda mais ironicamente, Sebastião e Antônio, apesar de suas crenças insolentes na autossuficiência, estão sendo observados. Os vilões devem ser ensinados que um poder invisível monitora às suas malvadezas. Por mais arrogante que Próspero possa ser, ao assumir através de Ariel o papel de um observador divino, ele desperta as consciências e previne o assassinato. Os vilões retornarão aos seus estados naturais, quando retornarem aos seus habitats usuais, mas, mesmo eles, são tocados brevemente por uma consciência do invisível (3.3.21-7). Alonso, mais valoroso que eles, embora sobrecarregado, também, de pecado, responde à sua situação com culpa e desespero, pois assume que a morte de seu filho Ferdinand é uma punição justa do deus pela sua participação na derrocada anterior de Próspero. Alonso deve ser conduzido, por meio de ilusões curativas, através da experiência purgadora do remorso, até a recompensa que pensa ser impossível e imerecida: a reunião com seu filho perdido.

          Alonso é, assim, como Póstumo em Cimbelino, ou Leontes em O Conto do Inverno, uma figura tragicômica – pecadora, arrependida, perdoada. O filho de Alonso, Ferdinand deve também submeter-se aos suplícios e visões inventadas por Próspero para testar o seu valor, mas mais no nível da comédia romântica. Ferdinand é jovem, inocente e esperançoso, um bom parceiro para Miranda. Desde o início, Próspero obviamente aprova o seu provável genro. Entretanto, mesmo Próspero, necessitando preparar-se a si mesmo para uma vida na qual Miranda não será apenas dele, não está pronto para colocar de lado sequer à ficção cômica da oposição parental. Ele inventa dificuldades, impõe tarefas de corte de lenha (como àquelas as quais designa Calibã), e distribui rígidas advertências contra o sexo antes do casamento. De modo cômico, é previsto que os pais devem oporem-se aos seus filhos nas questões do coração. Próspero é tão convincente nesse papel de pai autoritário, insistindo na obediência irrefletida absoluta de sua filha, que nós permanecemos incertos se ele é verdadeiramente assim ou se devemos sentir em sua performance um combate contra seus próprios sentimentos mais profundos de possessividade e autoridade autocrática, temperados finalmente por sua consciência na arbitrariedade de tal papel e sua prontidão em deixar Miranda decidir por si mesma. Como um professor para a juventude, ademais, Próspero está convencido, através de uma longa experiência, que prêmios ganhos com muita facilidade são pouco estimados. Múltiplas são às tentações encorajando Ferdinand a abandonar-se aos ritmos naturais da ilha, tal como Calibã o faria. No lugar das cerimônias conduzidas nas sociedades civilizadas pela igreja, Próspero deve criar à ilusão da cerimônia através de sua arte. O noivado de Ferdinand e Miranda adequadamente une o melhor dos dois mundos: a inocência natural da ilha, que os ensina a rejeitar às corrupções da civilização em seu pior, e a lei mais avançada da natureza alcançada através da sabedoria moral em seu melhor. Para esse casamento, as deusas Íris, Ceres e Juno trazem promessas de colheitas abundantes, “banhos refrescantes,” harmonia celestial, e uma primavera novamente trazida à terra pelo retorno de Prosérpina do Hades (4.1.76-117). Em Ferdinand e Miranda, “alimentação” está fortemente ligada com “natureza.” Esse vínculo une espírito e carne, legitimando o prazer erótico ao incorporá-lo no interior da visão de Próspero de uma ordem cósmica moral.

          No nível mais baixo dessa estrutura tradicional cósmica e moral, na visão de Próspero, estão Estéfano e Trínculo. As cenas cômicas deles os justapõem a Calibã, pois este representa uma natureza não educada, enquanto aqueles representam às profundezas não-naturais as quais os seres humanos que foram criados em uma sociedade civilizada podem cair. Nisso eles relembram Sebastião e Antônio, que supostamente aprenderam às artes civilizadas Italianas da intriga e do assassinato político. As bizarrices de Estéfano e Trínculo zombam da conduta de seus supostos melhores, desse modo expondo ao ridículo os autoenganos de homens ambiciosos. Os palhaços desejam explorar às maravilhas naturais da ilha levando Calibã de volta à civilização, para ser mostrado em carnavais, ou para embebedá-lo com bebidas fortes e aguçar o ressentimento dele contra a autoridade. Essas tramas são vãs, entretanto, pois, como Sebastião e Antônio, os palhaços estão sendo vigiados. Os palhaços ensinam Calibã a clamar por sua “liberdade” (2.2.184), pela qual eles querem dizer da licença de alguém fazer o que quiser, mas são frustrados por Ariel como um nêmesis cômico. Porque eles são bufões degenerados, Próspero, como o satirista, planeja para eles uma exposição que é apropriadamente humilhante e satírica.

          Em contraste com eles, Calibã é um personagem simpático de muitas formas. Sua sensibilidade com a beleza natural, como em suas descrições do “esperto mico” ou da música dos sonhos que tão frequentemente ouve (2.2.168; 3.2.137-45), são inteiramente apropriados a essa criança da natureza. Ele é, em verdade, o filho de uma bruxa e é chamado de nomes muito duros por Miranda e Próspero, como “escravo abominante” e “um demônio vivo, cuja natureza / A educação nunca penetra” (1.2.354; 4.1.188-9). Apesar dele protestar com alguma justificação, que a ilha era primeiramente dele e que Próspero e Miranda são intrusos. Sua própria existência incita radicalmente à análise do valor da civilização, que se mostrou capaz de depravação ilimitada. Qual o proveito que Calibã retirou de ter aprendido a língua de Próspero para além de, como ele o coloca, “saber como amaldiçoar” (1.2.367)? Com uma esperteza instintiva, ele sente que os livros são seus principais inimigos e planeja destruí-los primeiramente, em sua tentativa de rebelião. O mundo natural preservado oferece à civilização, de fato, uma perspectiva única por si só. Nisso assemelha-se ao estado ideal de Gonzalo, o qual, não importando quão implausível do ponto de vista cínico, questiona pelo menos algumas suposições –  econômicas, políticas e sociais – comuns nas sociedades ocidentais.

          Perspectivas radicais desse tipo convidam à consideração muitas questões inquietantes sobre exploração, o desenvolvimento de um império colonial e imperialismo sexual. A comparação passageira de Calibã com um indígena nativo (2.2.33), apesar de ignorada em produções de palco da peça até o final do século dezenove, sugere um discurso sobre o colonialismo em A Tempestade que antecipa a um degrau notável uma história dolorosa de exploração, do providenciar rum e armas aos nativos, e do subtrair de terras através da expropriação em nome da vinda da civilização e de Deus para o Novo Mundo. Estéfano e Trínculo vertem vinho na garganta de Calibã e assim reduzem-no a um devoto escravo, mostrando à exploração em seu pior, mas certamente a peça permite-nos perguntar, também, se a escravização de Calibã por Próspero, por mais elevada ao reivindicar à prevenção da desordem e do estupro, não é contaminada pelos mesmos imperativos de possessão e controle. A questão é admiravelmente complexa. Calibã é uma projeção tanto do selvagem naturalmente depravado descrito em muitos relatos de exploradores tanto quanto o selvagem nobremente inocente descrito por Montaigne. Ao dramatizar o conflito sem tomar partido, Shakespeare deixa aberto o debate sobre o valor do empenho de Próspero em conter à alteridade de Calibã e produz um resultado ambivalente, cuja a aparente vitória do colonialismo e da censura não esconde inteiramente o conflito contraditório através do qual aqueles valores são impostos. As muitas questões abertas da peça não se aplicam apenas ao Novo Mundo, mas também, à mais próxima Irlanda – uma ilha às margens da Inglaterra que era considerada selvagem e ameaçadora.

          O discurso da peça também levanta questões de classe e justiça política. A batalha entre Próspero e Calibã é uma entre “mestre” e “homem” (2.2.183); mesmo se o grito de Calibã por “liberdade” leve-o apenas para uma escravização adicional, por Estéfano e Trínculo (que são eles próprios homens sem mestres), a peça não resolve o conflito simplesmente reimpondo à hierarquia social. Calibã, Estéfano e Trínculo aprendem todos uma lição, e são punidos satiricamente por seus comportamentos rebeldes, mas Calibã é, pelo menos, perdoado e deixado para trás na ilha, ao final da peça, onde presumivelmente não será mais escravo. Em termos políticos, Próspero resolve às antigas hostilidades entre Milão e Nápoles, através de seu astuto arranjo do noivado de Miranda e Ferdinand. Por mais que seja idealizado como uma combinação romântica presidida harmoniosamente pelos deuses, esta é, também, uma união política com o objetivo de conciliar às famílias governantes dessas duas cidades-estados. O baile de máscara de Próspero, sua visão última de triunfo da civilização, transforma o mito do estupro de uma filha (Prosérpina) de tal forma que preserva a honra casta da filha em uma união que reparará o dano político e social devido à expulsão de Próspero de seu reinado de Milão. Por essas razões, o noivado de Ferdinand e Miranda deve ter sido politicamente relevante para as plateias de Shakespeare quando A Tempestade foi encenada, diante do Rei James, em Whitehall, em Novembro de 1611, e então, novamente na corte em 1613, na celebração do casamento da filha de James, Elizabeth, com Frederico, o Eleitor Palatino.

          O final da peça está longe de ser perfeitamente estável. Antonio nunca se arrepende, e não podemos ter certeza o que será da ilha, no momento em que Próspero desaparecer da cena. Porque a ocupação de Próspero da ilha replica, em um sentido, o processo cujo qual ele próprio foi derrubado, não podemos saber quando o ciclo de revolução irá cessar. Não podemos nem ter certeza da extensão à qual Shakespeare é mestre de seu próprio debate colonial em A Tempestade ou, por outro lado, a extensão a qual, hoje, nós devemos nos sentir livres para relativizar, ironizar ou, de outras formas, criticar essa peça por preconceitos aparentes ou prováveis. Nem mesmo um grande autor como Shakespeare pode escapar dos limites de seu próprio tempo, assim como não podemos escapar dos limites do nosso. Talvez podemos, entretanto, projetar a nós mesmos, como espectadores e leitores, na tentativa de Shakespeare de celebrar a maior conquista da humanidade na união da ilha com o mundo civilizado. Miranda e Ferdinand têm brilhantes expectativas para o futuro, mesmo que essas esperanças devam ser qualificadas pela observação melancólica de Próspero que o “admirável mundo novo” com “tais pessoas nele” é apenas “novo para vós’, a aqueles que são jovens e ainda não experientes nas opressões do mundo. Mesmo Calibã pode ser finalmente reconciliado com a insistente ideia de Próspero, de uma harmonia entre vontade e razão, não importando quão perigosa e delicadamente alcançada. Próspero fala de Calibã com uma “coisa da escuridão que eu / Reconheço como minha,” e Calibã jura ser “sábio daqui para frente / E buscar a graça” (5.1.278-9, 298-9). A visão de Próspero é que o humano natural interior fica mais contente, melhor entendido e mais verdadeiramente livre quando harmonizado com a razão.

          Calibã é uma parte da humanidade; Ariel não. Ariel poderia compreender o que a compaixão e o perdão seriam, “se eu fosse humano” (5.1.20), e pode tomar uma amigável parte nos desígnios de Próspero de castigar ou reformar seus companheiros mortais, porém Ariel deseja ser libertado em um sentido totalmente diferente do de Calibã. Ariel não participa da integração final da sociedade humana. Esse espírito pertence ao mundo mágico de canção, música e ilusão que o artista empresta para seu próprio uso, mas o espírito existirá eternamente exterior ao poeta. Como os elementos ar, terra, fogo e água, os quais misteriosamente habita, esse espírito é moralmente neutro, porém incrivelmente vital. A partir dele o artista realiza os poderes da imaginação, capacitando-o a escurecer o sol do meio-dia ou convocando os mortos de suas tumbas. Essas visões são ilusórias no sentido profundo que toda a vida é ilusória, um “desfile insubstancial” derretido no disperso ar (4.1.150-5). Próspero o artista estima a sua própria humanidade, como uma promessa de interrupção de seus trabalhos. Entretanto, o artefato criado pelo artista permanece existindo à parte do tempo e lugar, como Ariel: “Então os elementos / São livres, e passe bem! (5.1.321-2). Sem dúvida é uma ficção romântica associar o dramaturgo Shakespeare com a despedida de Próspero de sua arte, mas é quase que uma ideia irresistível, porque somos tocados pelo sentido de completude e, entretanto, de humildade, a exultação e ainda a calma contida nessa despedida.

          Como que para demonstrar a soma de sua vocação artística como um mágico-poeta o qual, de fato, ele designou como seu adeus aos palcos, Shakespeare faz desfilar, deslumbrantemente, uma vocação verbal a qual ele já se tornara famoso. Seu comando do verso branco é, nesse momento, mais flexível e proteano do que nunca, com um notável aumento de linhas coordenadas, cesuras no meio da linha, o compartilhar de linhas de versos brancos entre dois ou mais falantes, términos femininos e outros dispositivos do estilo Shakespeariano tardio. A peça é notável por suas passagens de bravura, tais como àquelas que começam “Nossas festividades terminam agora” (4.1.148-58) e “Vós, elfos das colinas” (5.1.33-57). Como sua cena inicial de tempestade e suas mostras solenes e máscaras – as “várias formas estranhas” trazendo o banquete e a aparição de Ariel “como uma harpia” em 3.3, a máscara de Íris, Ceres e Juno em 4.1, e o confinamento dos Napolitanos em um círculo encantado por Próspero em 5.1 – A Tempestade apresenta a si mesma como um tour de force de espetáculo e grandeza, onde todos os eventos impressionantes são, também, astutamente interrompidos pela ressurgência do apetite humano e pela correção satírica. O drama manifesta continuamente uma hábil compressão do tempo e do evento. O tom é garantido com maestria, tanto em prosa quanto em verso. As imagens de um mundo onírico juntam-se em um amálgama notável por meio do qual os personagens participam de um mundo fluido que se move através deles, mesmo quando eles se movem nesse mundo, tornando-os um com a tempestade do tempo.

          Em performance, A Tempestade revela um extraordinário escopo de possibilidades interpretativas. Calibã, nas versões de palco do século dezenove, estava apto para ser um espécime grotesco da evolução Darwiniana, equipado com guelras, escamas de peixe e longas unhas para caçar mariscos nas rochas (as longas unhas são de fato mencionadas, em 2.2.166). Herbert Beebohm Tree, em 1904, viu Calibã como peludo da cabeça aos pés, com barba desleixada, orelhas pontudas, olhos sinistros e longas unhas. Para Frank Benson, em Stratford-upon-Avon, em 1981, Calibã (interpretado pelo próprio Benson) era o elo perdido na cadeia evolucionária de macacos, babuínos e outros ancestrais presumivelmente humanos; o Calibã dessa produção subia em uma árvore no palco, pendurava-se de cabeça para baixo e fazia sons característicos. Mais recentemente, de acordo com o interesse crítico na peça como uma crítica potencial ao colonialismo, Calibã foi frequentemente visto como um nativo Caribenho, imponente fisicamente e até mesmo belo, indócil em relação à sua escravidão, um homem de imensa dignidade humana. Um exemplo é a produção de David Suchet em Clifford Williams, 1987, para a Royal Shakespeare Company; o Calibã de Suchet, uma vítima simpática do imperialismo, evocava ecos inequívocos das populações exploradas do terceiro-mundo, das Índias Ocidentais e da África Subsariana. Próspero foi submetido a uma surpreendente mudança marítima, do dublê autoral benigno das produções tradicionais do século dezenove, para um homem que pode ser tirânico, arbitrário, ameaçador, próximo da violência e profundamente furioso, como no filme de Derek Jarman, em 1980. As interpretações de Ariel variaram de uma doçura sentimental ao inebriado por drogas e com cabelo de punk, como o Ariel de Mark Rylance, na produção de Ron Daniels, em 1982, para a RSC. Tensões sexuais ocultas são evidentes por todos os lados nas produções recentes. Algumas das versões mais notáveis da peça abandonaram o enredo de Shakespeare em vários níveis, como na produção de Peter Brook para a Round House, em 1968, apresentando uma enorme Sycorax dando à luz a Calibã, a conquista da ilha e a captura de Próspero por Calibã, e uma orgia selvagem. A versão em filme de Derek Jarman, de 1980, via a peça como predominantemente gay, com Calibã como uma envelhecida “rainha”. La Tempesta de Giogio Strehler, Milão, 1977, representou Ariel como um Pierrôt da commedia dell’arte preso por um fio, flutuando no ar e pousando de acordo com o comando do dedo de Próspero. O filme de 1991, de Peter Greenaway, chamado Os Livros de Próspero apresentou a peça inteira de acordo com os olhos de Próspero; John Gielgud, como Próspero, fala praticamente todas as linhas. O escopo extraordinário de inovações teatrais que foram trazidas por essa peça atesta a própria autoconsciência teatral notável do roteiro e seu deleite em relação à mágica e à ilusão.