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“Assim é o sábio Shakespeare e seu livro da vida. Ele escreveu as árias de toda a nossa música moderna; escreveu o texto da vida moderna, o texto dos costumes; desenhou o homem da Inglaterra e da Europa, pai do homem norte-americano; desenhou o homem, descreveu o dia e o que é feito no dia; leu os corações de homens e mulheres, a sua probidade, os seus expedientes e estratagemas; os estratagemas da inocência e as transições através das quais virtudes e defeitos trocam de lugar; era capaz de separar a parte da mãe da parte do pai, na fisionomia de uma criança, e traçar a fronteira tênue entre liberdade e destino; conhecia as leis da repressão que formam a polícia da natureza; absorvia na mente todas as canduras e todos os terrores da espécie humana, com a mesma verdade e meiguice que a paisagem é absorvida pelos olhos. E a importância dessa sabedoria de vida faz desaparecer a forma, seja o drama ou o épico. É como questionar o papel em que é escrita uma mensagem do rei.
Shakespeare destaca-se na categoria de autores eminentes, assim como se destaca na multidão. É inconcebivelmente sábio, enquanto a sabedoria dos demais é concebível. Um leitor competente é capaz de alojar-se no cérebro de Platão, por assim dizer, e pensar a partir dali; mas não no de Shakespeare. Ainda não o penetramos. Em termos de capacidade de execução, de criação, Shakespeare é único. Homem algum pode imaginar com mais competência. Ele alcançou o ponto mais avançado de sutileza possível a um indivíduo – o mais sutil dos autores, sendo quase inaceitável a possibilidade de autoria. À sua sabedoria de vida iguala-se o dom da sua força lírica e criativa. Revestiu com formas e sentimentos as criaturas de suas histórias, como se fossem pessoas que viviam com ele sob o mesmo teto, e poucos homens de carne e osso tiveram personalidades tão bem delineadas quanto essas figuras ficcionais. E falam uma linguagem tão doce quanto convém. Todavia, o talento jamais o seduziu à ostentação, tampouco bateu na mesma tecla. A humanidade omnipresente coordena todas as faculdades shakespearianas. Se pedirmos a um homem talentoso que nos conte uma história, a sua parcialidade logo transparece. Determinadas observações, opiniões, tópicos merecerão certa proeminência, que ele se dispõe a exibir. Ressalta a parte que lhe interessa, e diminui a outra parte, desconsiderando a conveniência da coisa em si, e levando em conta apenas a sua. Mas Shakespeare não tem as suas peculiaridades, não tem tópicos inoportunos; tudo é oferecido, condignamente; não tem as suas veias, os seus interesses, não é maneirista; não tem qualquer egoísmo discernível; o grande, ele descreve com grandiosidade, o pequeno, com subordinação. É sábio sem ser enfático ou assertivo; é forte, como a natureza é forte, capaz de soerguer a terra, formando encostas de montanhas, sem esforço, e segue o mesmo princípio segundo o qual uma bolha flutua no ar, e se apraz, igualmente, de fazer uma coisa ou a outra. Daí o equilíbrio de forças entre farsa, tragédia, narrativa e canções de amor, um mérito tão constante que cada leitor chega a duvidar das percepções de outro leitor.
Essa força de expressão, ou de se transformar a verdade mais íntima em música e verso, torna Shakespeare o modelo do poeta, e acrescenta mais um problema à metafísica. É isso que o empurra para a ciência natural, como importante produção do globo, anunciando novas eras e melhorias. O mundo é espelhado em sua poesia sem perdas ou borrões; era capaz de pintar o belo com precisão, o grande com alcance, o trágico e o cômico indiferentemente, e sem distorção ou favor. Desincumbe-se da tarefa nos menores detalhes, até um fio de cabelo: retoca um cílio ou uma covinha com a mesma firmeza que desenha a montanha; e tais detalhes, como os que produz a natureza, resistem ao exame do microscópio solar.
Em suma, Shakespeare é o melhor exemplo para se demonstrar que mais ou menos produção, mais ou menos quadros, é indiferente. Tinha a capacidade de construir um quadro. Daguerre aprendeu a fazer com que uma flor gravasse a própria imagem em uma placa de iodo; daí, ele prossegue, à vontade, podendo reproduzir um milhão. Sempre há objetos; mas jamais houve representação. Eis a representação perfeita, finalmente; e agora, que o mundo das gravuras pose para os retratos. Não existe receita para a preparação de um Shakespeare, mas a possibilidade de se traduzir coisas em canção fica demonstrada.”