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Ao longo da peça, apenas dois personagens sabem de tudo o que está ocorrendo: Hamlet e seu amigo Horácio. O encontro do príncipe com o fantasma não tem testemunhas, mas Hamlet comenta o assunto com o amigo, ao combinarem que ambos observariam a reação do rei: “Será apresentada um peça esta noite, com a presença do rei; uma das cenas se parece com a circunstância que lhe contei da morte de meu pai” (There is a play to-night before the king;/ One scene of it comes near the circumstance/ Which I have told thee of my father’s death) (3.2).

No entanto, Hamlet e Horácio detêm apenas o conhecimento de uma realidade difusa que nem eles próprios compreendem, a começar pelo mistério da aparição do fantasma. É preciso lembrar que:

a) Na primeira cena do Primeiro Ato, o espectro aparece por duas vezes, mas nada fala, apesar da insistência de Horácio, o único corajoso o bastante para dirigir-lhe a palavra;
b) Na quarta cena do Primeiro Ato, o fantasma reaparece mas apenas acena para que Hamlet o siga;
c) O encontro de Hamlet com o fantasma, na cena seguinte, não é testemunhado por ninguém.

Embora tanto os leitores quanto os espectadores da peça tomem conhecimento deste diálogo, nada impede que Hamlet tenha adormecido e imaginado a cena. Há um precedente literário curioso em “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, quando o bravo cavaleiro andante adormece, ao explorar a gruta de Montesinos, e sonha encontrar alguns personagens lendários da época de Carlos Magno. Para a mente delirante de Dom Quixote, aquela foi uma experiência real, como seus leitores se recordam.

A hipótese do sonho de Hamlet certamente agradaria ao escritor argentino Jorge Luis Borges. Na edição de “Dom Quixote” organizada por André Amorós (Ediciones SM, 1999) há este belo comentário de Borges: “O fidalgo foi um sonho de Cervantes e Dom Quixote um sonho do fidalgo. Este sonho duplo os confunde e algo está passando que passou muito antes. Quijano dorme e sonha.” (El hidalgo fue un sueño de Cervantes y Don Quijote un sueño del hidalgo. El doble sueño los confunde y algo está pasando que pasó mucho antes. Quijano duerme y sueña.)

Borges quer-nos dizer que Miguel de Cervantes, o soldado que se tornou escritor, herói da batalha naval de Lepanto, na costa da Grécia, em 7 de outubro de 1571, não encontrou o reconhecimento que esperava ao retornar à Espanha, onze anos depois de sua partida. Não o promoveram nem lhe deram medalhas. Tornar-se fidalgo foi, portanto, “um sonho de Cervantes”. Não podendo ser fidalgo, ele criou um personagem fidalgo, Alonso Quijano, que por sua vez sonhava. De tanto ler livros sobre a cavalaria andante, o fidalgo decidiu realizar um sonho, isto é, tornar-se cavaleiro andante, em busca de fama e riquezas. Deu a si próprio o nome de Dom Quixote. Desta forma, explica Borges, “Dom Quixote é um sonho do fidalgo” e, assim, “o duplo sonho os confunde”: o escritor sonhava ser fidalgo e sonhava com a batalha de Lepanto; o fidalgo Alonso Quijano sonhava ser um cavaleiro andante e sonhava suas batalhas imaginárias.

É possível que Hamlet tenha sonhado com o fantasma e acreditado no seu sonho. Neste caso, a tragédia assume uma nova dimensão: a ficção do sonho torna-se uma realidade cruel e revela um crime que, de outra forma, teria ficado oculto.