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A palavra “ciúme” vem do grego e assumiu em latim a forma \”zelus\” (zelo). O ciúme, o tema central de Otelo, é um zelo excessivo, manifestado sob a forma de um receio de que o ente amado dedique seu afeto a outrem.

No Antigo Testamento, ele pode assumir uma forma positiva, como um zelo autêntico, a exemplo do amor de Deus por seu povo. A expressão clássica do ciúme divino é o mandamento contra a idolatria (Êxodo 20, 5-6), no qual o Senhor se manifesta como “um Deus zeloso”.

O ciúme é em geral negativo, como na história de José, vendido por seus irmãos aos negociantes ismaelitas, que o levaram para o Egito (Gênesis 37, 28).

As referências bíblicas listadas a seguir estão apresentadas na ordem em que aparecem na peça:

“Não sou o que sou” (I am not what I am) (1.1). Segundo Harold Bloom, em \”Shakespeare: a invenção do humano\”, no capítulo 24, dedicado a Otelo, esta bravata de Iago contradiz o apóstolo Paulo: “Com a graça de Deus, sou quem sou” (Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios 11, 14).

“Atormente-o com moscas” (Plague him with flies) (1.1). Iago pede a Rodrigo que insufle o senador Brabâncio contra Otelo, referindo-se à praga das moscas, a quarta das dez pragas de Moisés contra o faraó do Egito (Gênesis 8, 20-32).

“Este acidente não difere de meu sonho./ Acreditar que tenha ocorrido já me inquieta” (This accident is not unlike my dream:/ Belief of it oppresses me already) (1.1). A confirmação do pressentimento de Brabâncio lembra esta inquietação pessimista de Jó: “Todos os meus temores se realizam, e aquilo que me dá medo vem atingir-me” (Jó 3, 25).

“O alimento/ que para ele parece agora tão saboroso quanto gafanhotos, será/ em breve tão amargo quanto a coloquíntida” (The food/ That to him now is as luscious as locusts, shall be/ To him shortly as bitter as coloquintida) (1.3). Iago tenta convencer Rodrigo a insistir na conquista de Desdêmona, usando como argumento a vontade inconstante do mouro, que poderá eventualmente desinteressar-se dela. Conta o Evangelho de São Mateus que João Batista “alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre” (Mateus 3, 4).

“Agora, por falta desses atrativos requeridos, sua delicada ternura achará que se enganou e passará a ter náuseas, deixar de gostar do mouro e detestá-lo” (Now, for want of these required conveniences, her delicate tenderness will find itself abused, begin to heave the gorge, disrelish and abhor the Moor) (2.1). Iago tenta convencer Rodrigo de que a paixão de Desdêmona por Otelo é passageira. Frank Kermode, em \”A Linguagem de Shakespeare\”, curiosamente no capítulo dedicado a Hamlet, atribui a esta fala uma influência desta passagem: “Desce de teu trono, agacha-te ao solo, virgem filha de Babilônia; assenta-te no chão, sem trono, filha dos caldeus! Já não serás chamada a delicada e terna” (Isaías 47, 1).

“Reputação, reputação, reputação! Oh, perdi minha reputação! Perdi a parte imortal de mim mesmo e o que sobra é bestial” (Reputation, reputation, reputation! O, I have lost my reputation! I have lost the immortal part of myself, and what remains is bestial) (2.3). Cássio lamenta a perda de sua reputação, numa possível uma referência a: “A boa reputação vale mais que a prata e o ouro” (Provérbios 22,1).

“Quando os demônios tentam com os piores pecados,/ eles inicialmente insinuam-se com aparências celestiais,/ como eu faço agora” (When devils will the blackest sins put on,/ They do suggest at first with heavenly shows,/ As I do now) (2.3). Iago comenta consigo mesmo a sugestão que deu a Cássio de procurar a intercessão de Desdêmona junto a Otelo, para recuperar o posto perdido. É uma referência ao alerta de Jesus aos seus discípulos quanto aos “apóstolos camuflados”, dizendo-lhes que “o próprio Satanás se transfigura em anjo de luz” (Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios 11, 14).

“Mas aquele que surrupia meu bom nome/ rouba de mim o que não o enriquece/ e me torna deveras pobre” (But he that filches from me my good name/ Robs me of that which not enriches him/ And makes me poor indeed) (3.3). Nova alusão a: “A boa reputação vale mais que a prata e o ouro” (Provérbios 22,1).

“Fogo e enxofre!” (Fire and brimstone!) (4.1). Otelo pronuncia esta frase irada após Desdêmona referir-se inocentemente à amizade que sente por Cássio. É um símbolo bíblico freqüente de castigo divino. Sodoma e Gomorra foram destruídas por “uma chuva de enxofre e de fogo” (Gênesis 19, 24). Esta imagem parece ainda no Salmo 10, 6 (11, 6 na versão hebraica) e em Lucas 17, 29. Há um “lago de fogo sulfuroso” em Apocalipse 19, 20 e 20, 10 e um “tanque ardente de fogo e enxofre” em 21, 8.

“Se algum miserável meteu isso em sua cabeça,/ que o céu o puna com a maldição da serpente” (If any wretch have put this in your head,/ Let heaven requite it with the serpent’s curse!) (4.2). Emília nega para Otelo que Desdêmona seja infiel, esperando que o caluniador sofra o castigo divino imposto à serpente (Gênesis 3, 14-15), quando da expulsão de Adão e Eva do jardim do Éden.

“Não, tão certo quanto eu seja cristã./ Se preservar este vaso para meu senhor/ de qualquer contato impróprio e ilegítimo/ significa não ser uma prostituta, eu não sou” (No, as I am a Christian:/ If to preserve this vessel for my lord/ From any other foul unlawful touch/ Be not to be a strumpet, I am none) (4.2). Otelo chama Desdêmona de prostituta e ela nega indignada a acusação descabida. A palavra “vaso” (vessel) é uma alusão a muitas passagens que se referem tanto ao homem quanto à mulher. São exemplos: a) “Mas quem és tu, ó homem, para contestar a Deus? Porventura o vaso de barro diz ao oleiro: _ Por que me fizeste assim?” (Carta de São Paulo aos Romanos 9, 20) e b) “Temos este tesouro em vasos de barro, para que transpareça claramente que este poder extraordinário provém de Deus e não de nós” (Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios 4, 7). No texto da “Versão do Rei Jaime” (King James Version), de 1611, a mulher é considerada o “vaso mais fraco” (weaker vessel) (Primeira Carta de São Pedro 3, 7). Na moderna versão RSV (Revised Standard Version), a expressão está como “o sexo mais fraco” (the weaker sex).

“Paciência, jovem querubim de lábios rosados” (Patience, thou young and rose-lipp’d cherubin) (4.2). O querubim pertence à segunda ordem de anjos, logo abaixo do serafim. Quando Adão e Eva foram expulsos do jardim do Éden, este ficou sob a guarda de “querubins armados de uma espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da vida” (Gênesis 3, 24). É possível que Otelo veja em Desdêmona, com sua suposta infidelidade, um querubim armado a expulsá-lo de seu paraíso conjugal. O profeta Ezequiel assim descreve quatro querubins, cada um deles com quatro faces e quatro asas: “Quanto ao aspecto de seus rostos, tinham todos eles figura humana, todos os quatro uma face de leão pela direita, todos os quatro uma face de touro pela esquerda, e todos os quatro uma face de águia” (Ezequiel 1, 10). Estas faces representam: o homem, o rei da criação; o leão, o rei dos animais; o touro, o maior dos animais domésticos e a águia, a maior das aves. Neste contexto, Otelo parece acusar Desdêmona de dissimulada, isto é, dona de muitas faces.

“Você, senhora,/ tem o ofício oposto ao de São Pedro,/ e guarda a porta do inferno!” (You, mistress,/ That have the office opposite to Saint Peter,/ And keep the gate of hell!) (4.2). Otelo lembra esta designação de Jesus: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do reino dos céus” (Mateus 16, 18-19).

“Canção do salgueiro” (song of willow) (4.3). O salgueiro aparece numa canção entoada por Desdêmona. O salgueiro cresce ao longo de lagos e rios e, com suas folhas estreitas e longas e ramos flexíveis, simboliza o luto. É conhecido como salgueiro-do-rio e salgueiro-chorão (Salix babylonica). O nome científico decorre possivelmente do Salmo 136 (ou 137, na versão hebraica), que se refere à tristeza do cativeiro dos judeus na Babilônia: “Às margens dos rios da Babilônia,/ Nos assentávamos chorando,/ Lembrando-nos de Sião./ Nos salgueiros daquela terra,/ Pendurávamos, então, as nossas harpas”. É possível que Desdêmona tema ser banida por Otelo, por conta de sua suposta infidelidade. A própria Desdêmona aventa esta hipótese, ao pedir a Otelo: “Oh, senhor, que eu seja banida, mas não me mate!” (O, banish me, my lord, but kill me not!) (5.2). Emília, antes de morrer, entoa a mesma canção, na última cena da peça.

“A pobre alma sentou-se, suspirando, perto de um sicômoro” (The poor soul sat sighing by a sycamore tree) (4.3). Este é o verso inicial da “canção do salgueiro” mencionada acima. Há muitas referências bíblicas ao sicômoro, uma árvore de boa sombra (Ficus sycamorus), muito cultivada no Oriente Médio e que produz um fruto comestível semelhante ao figo. O profeta Amós revela em seu livro: “Sou pastor e cultivador de sicômoros” (Amós 7, 14), referindo-se provavelmente à colheita de seus frutos. Zaqueu, um homem rico, chefe dos recebedores de impostos, subiu a um sicômoro para ver Jesus quando ele passasse pelo local (Lucas 19, 4). Os egípcios utilizavam sua madeira para a fabricação das urnas funerárias onde encerravam as múmias, o que reforça o tom sombrio da canção entoada por Desdêmona.

“E suave como o alabastro dos mausoléus” (And smooth as monumental alabaster) (5.2). Otelo compara a pele de Desdêmona ao alabastro dos mausoléus, numa imagem nada romântica. O alabastro, do grego alabastros, é uma rocha branca e translúcida, utilizada na fabricação de estátuas e recipientes desde antes de Cristo. As referências bíblicas a este mineral são mais amenas. Num jantar em Betânia, na casa de Simão, uma pecadora aproximou-se de Jesus “com um vaso de alabastro, cheio de um perfume muito caro, e derramou-o na sua cabeça” (Mateus 26, 7). Ela foi repreendida pelos discípulos, pelo aparente desperdício, mas Jesus a defendeu, por sua boa ação. Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) dedica ao episódio um de seus mais belos poemas: Ceia em Casa de Simão, do livro \”Discurso da Primavera e Algumas Sombras\”.

“Esta dor é celestial;/ ela fere a quem ama” (this sorrow’s heavenly;/ It strikes where it doth love) (5.2). Otelo parece referir-se a esta passagem: “Pois o Senhor educa quem ama, e castiga todo filho que acolhe” (Epístola de São Paulo aos Hebreus 12, 6).

“Pálida como sua roupa de dormir! Quando nos encontrarmos, no ajuste de contas,/ seu olhar arremessará minha alma do céu,/ e os demônios irão apanhá-la” (Pale as thy smock! when we shall meet at compt,/ This look of thine will hurl my soul from heaven,/ And fiends will snatch at it) (5.2). O “ajuste de contas” é o dia do Juízo Final referido em vários livros da Bíblia, destacando-se dentre estes o livro do Apocalipse.

“Se o céu pudesse fazer para mim um outro mundo,/ de uma crisólita perfeita e inteira,/ eu não trocaria Desdêmona por ele” (If heaven would make me such another world/ Of one entire and perfect chrysolite,/ I’ld not have sold her for it) (5.2). Otelo refere-se a uma pedra preciosa da cor do ouro, designada crisólita, do grego chrysos (ouro) e lithos (pedra). Trata-se de uma das pedras que adornam os alicerces da muralha da Jerusalém celeste, a cidade dos eleitos (Apocalipse 21, 19-20).

“Não me perguntem mais nada: o que vocês sabem, sabem” (Demand me nothing: what you know, you know) (5.2). Iago resolve calar-se e não dizer mais nada em sua defesa. Quando sugeriram ao governador Pôncio Pilatos que mudasse a inscrição da cruz de “Jesus de Nazaré, rei dos judeus” para “Este homem disse ser o rei dos judeus”, Pilatos respondeu: “O que escrevi, escrevi” (João 19, 22).

“Embora sem o hábito de enternecer-se,/ derramou tantas lágrimas quanto as árvores da Arábia/ seu bálsamo medicinal” (Albeit unused to the melting mood,/ Drop tears as fast as the Arabian trees/ Their medicinal gum) (5.2). Otelo refere-se aqui à mirra, um dos três presentes ofertados pelos Reis Magos ao Menino Jesus: “ouro, incenso e mirra” (Mateus 2, 11). O ouro simboliza a realeza de Jesus; o incenso, sua divindade, e a mirra, sua humanidade. Era um presente caro, por ser um produto importado da Arábia e da Índia. Alguns de seus usos estão ilustrados nestas passagens: a) como perfume: “Perfumei meu leito com mirra, aloés e cinamomo” (Provérbios 7,17); b) como óleo de unção e perfume sagrado, a exemplo desta instrução do Senhor a Moisés: “Escolhe os mais preciosos aromas: quinhentos siclos de mirra virgem, a metade, ou seja, duzentos e cinqüenta siclos, de cinamomo, duzentos e cinqüenta siclos de cana odorífera” (Êxodo 30, 23) e c) como bálsamo para embeber os panos que viriam a envolver o corpo de Jesus: “uma mistura de mirra e aloés” (João 19, 39).