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O soneto 27 apresenta três curiosas singularidades, quais sejam:

PRIMEIRA SINGULARIDADE: UM VERSO SEM A LETRA E

Um dos personagens do conto “O Escaravelho de Ouro” (The Gold Bug), de Edgar Allan Poe (1809-1849), um clássico sobre a ciência da criptografia, faz uma curiosa revelação:

“Ora, em inglês a letra que mais frequentemente ocorre é ‘e’. (…) O ‘e’ é tão singularmente predominante que raras apresenta são as frases, de qualquer tamanho, em que não seja ele a letra principal.”

(Now, in English, the letter which most frequently occurs is ‘e’. (…) E predominates so remarkably, that an individual sentence of any length is rarely seen, in which it is not the prevailing character.)

Para ilustrar este aspecto, segue o texto original do soneto 27, antecedido por sua tradução:

“Cansado pelo trabalho, apresso-me para a cama,
Repouso para os membros exaustos da viagem,
E então inicia-se uma jornada na cabeça,
Para trabalhar a mente quando o corpo descansa.

Logo meus pensamentos (de longe onde moro)
Fazem uma zelosa peregrinação para ti,
E mantêm minhas pálpebras pesadas bem abertas,
Olhando as trevas que o cego vê.

Exceto que a visão imaginária de minh’alma
Mostra tua sombra para minha visão cega,
Como uma joia (pendente na noite sombria)
Torna bela e jovem a noite escura e velha.

Assim, de dia meus membros e à noite minha mente,
Por minha causa e tua não repousam.”

(Weary with toil, I haste me to my bed,
The dear repose for limbs with travel tired,
But then begins a journey in my head
To work my mind, when body’s work’s expired.

For then my thoughts (from far where I abide)
Intend a zealous pilgrimage to thee,
And keep my drooping eyelids open wide,
Looking on darkness which the blind do see.

Save that my soul’s imaginary sight
Presents thy shadow to my sightless view,
Which like a jewel (hung in ghastly night)
Makes black night beauteous, and her old face new.

Lo thus by day my limbs, by night my mind,
For thee, and for myself, no quiet find.)

A letra E confirma a afirmação do personagem de Poe. Ela é a mais frequente do texto (aparece 54 vezes). Considerando que um soneto tem 14 versos, a letra E aparece, em média, cerca de 4 vezes por verso.

A letra E não aparece, no entanto, no penúltimo verso (Lo thus by day my limbs, by night my mind), que é uma das raras frases “em que não seja ele a letra principal”, a que se refere o personagem de Poe.

Como os versos são frases curtas, esta singularidade não é tão rara assim, pois há outros sonetos com versos sem a letra E, cuja pesquisa fica a cargo do leitor. Os três primeiros são os sonetos 13, 24 e 27.

SEGUNDA SINGULARIDADE: A PRESENÇA DE TODAS AS LETRAS DO ALFABETO

O soneto 27, no entanto, é o único dos 154 sonetos de Shakespeare que contém todas as 26 letras do alfabeto inglês. Esta singularidade merece alguns comentários:

Este soneto, no original, tem 455 letras. Se as 26 letras do alfabeto inglês estivessem igualmente distribuídas no texto, cada uma delas poderia aparecer 17 vezes no texto e ainda sobrariam 13 letras. No entanto, a distribuição das letras é bastante desigual e algumas delas não aparecem em todos os sonetos:

LETRA K
A letra K, que aparece 8 vezes no soneto 27, não está presente nos Sonetos 46 e 94.

LETRA J
A letra J, embora apareça 2 vezes no soneto 27 (jewel e journey), está presente apenas 68 vezes nos 154 sonetos. Em outras palavras, ela consta em menos da metade dos sonetos.

LETRA X
A letra X, que aparece uma única vez no soneto 27 (expired), está presente apenas 60 vezes nos 154 sonetos. Ela também consta em bem menos da metade dos sonetos.

LETRA Q
A letra Q, que aparece uma única vez no soneto 27 (quiet), está presente apenas 51 vezes nos 154 sonetos. Ela consta em menos de um terço dos sonetos.

LETRA Z
A letra Z, que aparece uma única vez no soneto 27 (zealous), está presente apenas 20 vezes nos 154 sonetos. Ela consta em menos de um sétimo dos sonetos.

A letra Z é tão infrequente que, na tragédia do “Rei Lear”, Kent a chamou de “letra inútil” (unnecessary letter) (2.2).

Em resumo, a presença de um verso sem a letra E e das letras J, X, Q e Z, reconhecidamente infrequentes, num único soneto, é um pequeno milagre estatístico.

TERCEIRA SINGULARIDADE: A MISTERIOSA IDENTIDADE DA PESSOA AMADA

A identidade da pessoa amada também é um mistério. O poeta usa o pronome “thee”, que pode ser masculino ou feminino.

Na primeira quadra, cansado do trabalho, o poeta descansa em sua cama. Inicia-se então uma jornada em sua mente, que trabalha enquanto o corpo descansa.

Na segunda quadra, seus pensamentos o levam à pessoa amada, que se encontra longe. À semelhança de um cego, ele se esforça para vê-la na escuridão.

Na terceira quadra, ele percebe a imagem da pessoa amada que, como uma joia, “Torna bela e jovem a noite escura e feia” (Makes black night beauteous, and her old face new). O pronome “her” refere-se à noite, aqui personificada como feminina. O poeta refere-se à pessoa amada na segunda pessoa do singular (thee) e “her” é um pronome da terceira pessoa do singular.

No último dístico, que resume o soneto, ele se queixa de que seu corpo não descansa de dia nem sua mente à noite.

A lembrança da pessoa amada numa noite de sono deveria ser agradável e não aflitiva, como sugere o poema. O que teria ocorrido? Teria ela rompido sua relação com o poeta? Teria morrido, à semelhança de Lenore, do poema “O Corvo” (The Raven), de Poe? Teria a “sombra” (shadow), no décimo verso do soneto, o sentido de “espírito” (ghost) ou “aparição” (apparition), como admite o Webster’s?