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Machado de Assis (1839-1908) foi um grande leitor de Shakespeare, particularmente de \”Otelo\”, \”Hamlet\” e \”Macbeth\”, bem como de outras peças, que direta ou indiretamente estão mencionadas em sua extensa obra.

A tragédia de Otelo, o mouro de Veneza, em particular, causou uma profunda impressão em Machado, a julgar pelas muitas referências a ela.

O personagem principal de “Ressurreição” (1872), seu primeiro romance, o rico, entediado e ciumento Félix, é, segundo o autor, “um homem complexo, incoerente e caprichoso”. No capítulo IX do livro, Félix e Luís Batista são rivais que tentam conquistar as graças da formosa viúva Lívia. O “observador e perspicaz” Luís Batista logo percebeu “que quanto mais o amor de Félix se tornasse suspeito e tirânico, tanto mais perderia terreno no coração da viúva, e assim, roto o encanto, chegaria a hora das reparações generosas com que ele [Luís Batista] se propunha a consolar a moça dos seus tardios arrependimentos”. Para alcançar este resultado, prossegue Machado, “era mister multiplicar as suspeitas do médico [Félix], cavar-lhe fundamente no coração a ferida do ciúme, torná-lo em suma instrumento de sua própria ruína. Não adotou o método de Iago, que lhe parecia arriscado e pueril; em vez de insinuar-lhe a suspeita pelo ouvido, meteu-lha pelos olhos”. Luís Batista converte-se assim em Iago, o alferes do general mouro, disposto a enciumar o incauto Félix, ao “afetar com a moça uma intimidade misteriosa, mas discreta, sem aparato, antes cercada de infinitas cautelas, tão hábil que ela não percebesse, mas tão claramente dissimulada que fosse direito ao coração de Félix”.

No romance seguinte, “A Mão e a Luva” (1874), o frouxo e apaixonado Estêvão decide morrer logo no primeiro capítulo: “Por mais aborrecível que pareça a idéia da morte, pior, muito pior que ela, é a de viver”. Estêvão foi salvo pelo esperto amigo Luís Alves, que o convenceu, dizendo-lhe que “se em cada caso de namoro gorado morresse um homem, tinha já diminuído muito o gênero humano”. Esta passagem assemelha-se à terceira cena do Primeiro Ato de Otelo. O apaixonado Rodrigo, desanimado com a partida anunciada de Desdêmona para Chipre, toma uma decisão extrema: “Vou afogar-me logo em seguida” (I will incontinently drown myself) (1.3). O alferes Iago, interessado na fortuna de Rodrigo, convence-o a vender tudo e rumar para Chipre, concluindo com este conselho encorajador: “Procure antes ser enforcado satisfazendo seu desejo a afogar-se e partir sem ela” (seek thou rather to be hanged in compassing thy joy than to be drowned and go without her) (1.3). A idéia do suicídio de um amante sem esperanças poderia ser uma simples coincidência. No entanto, no capítulo III há duas referências à representação da ópera “Otelo”, de Giuseppe Verdi, no Rio de Janeiro. No capítulo XIII, a governanta inglesa Mrs. Oswald parece o alferes Iago de saias. Diz o autor que ela “interpôs-se para servir aos outros, e mais ainda a si própria”. De fato, na primeira cena da peça, Iago diz ao seu amigo Rodrigo, referindo-se a Otelo: “Servindo-o, estou servindo apenas a mim mesmo” (In following him, I follow but myself) (1.1).

Em “Helena” (1876), o romance seguinte, há três referências a “Otelo”. No capítulo XIII, numa carta que não chegou a ser expedida, Helena referia-se aos que “tendo nascido sob a influência de má estrela, só têm felicidades intermitentes e mutáveis”. Otelo refere-se a Desdêmona, após a morte desta, na última cena da peça, como “jovem nascida sob má estrela” (ill-starr’d wench) (5.2). Mais adiante, no capítulo XXI, diz o autor que “quando a suspeita germina na alma, o menor incidente assume um aspecto decisivo”. Lembra uma frase de Iago em “Otelo”: “Ninharias leves como o ar/ são para o ciumento confirmações fortes/ como provas da Sagrada Escritura” (Trifles light as air/ Are to the jealous confirmations strong/ As proofs of holy Writ) (3.3). Finalmente, no capítulo XXV, o pai de Helena relata:
Poucos dias antes, a bordo, um engenheiro inglês que vinha do Rio Grande para esta Corte, emprestara-me um volume truncado de Shakespeare. Pouco me restava do pouco inglês que aprendi; fui soletrando como pude, e uma frase que ali achei fez-me estremecer, na ocasião, como uma profecia; recordei-a depois quando Ângela me escreveu. “Ela enganou seu pai, diz Brabantio a Otelo, há de enganar-te a ti também.\”
No primeiro capítulo do romance seguinte, “Iaiá Garcia” (1878), o autor revela que o viúvo Luís Garcia, pai da protagonista principal, “não casara por amor nem interesse; casara porque era amado”. Da mesma forma, Otelo, referindo-se a Desdêmona, admite que “ela me amou pelos perigos que passei/ e eu a amei porque ela se comoveu com eles” (She loved me for the dangers I had pass’d,/ And I loved her that she did pity them) (1.3).

Em “Quincas Borba” (1891), Machado refere-se, no capítulo XL, às “castas estrelas”, lembrando uma das falas mais conhecidas de Otelo, na última cena da peça: “É a causa, é a causa, minha alma!/ Permitam-me que não a nomeie, castas estrelas” (It is the cause, it is the cause, my soul,/ Let me not name it to you, you chaste stars!) (5.2). No curto capítulo CXLIII, o autor recorre novamente a Otelo nesta descrição: “Sofia caiu com graça. Estava singularmente esbelta, vestida de amazona, corpinho tentador de justeza. Otelo exclamaria, se a visse ‘Oh! minha bela guerreira!’”. De fato, ao chegar à ilha de Chipre, em pé de guerra contra os turcos, Otelo entra em cena com sua comitiva e saúda a esposa: “Oh, minha bela guerreira!” (O my fair warrior!) (2.1).

A presença de Otelo em “Dom Casmurro” (1900) impressionou de tal forma a escritora norte-americana Helen Caldwell, tradutora do romance para o inglês em 1953, que ela reuniu suas impressões num livro: O “Otelo Brasileiro de Machado de Assis” (The Brazilian Othello of Machado de Assis). A edição original é de 1960, da University of California Press, e traz o subtítulo “A Study of Dom Casmurro” (Um Estudo de Dom Casmurro). O livro compara “Dom Casmurro” com a tragédia de Otelo. O tradutor Fábio Fonseca de Melo, na introdução de seus Agradecimentos, ressalta sua surpresa ao constatar que um livro como este “tenha ficado sem tradução no Brasil por mais de quarenta anos” (1).

Machado não deixa claro em “Dom Casmurro” se Capitu é inocente ou culpada, o que até hoje provoca discussões apaixonadas, mas Helen Caldwell é de tal forma convincente que o leitor não pode deixar de ver em Capitu uma autêntica Desdêmona brasileira e, portanto, inocente. Capitu não morre como Desdêmona, mas seu banimento assemelha-se a uma morte em vida. Machado deu ao capítulo LXII de “Dom Casmurro” o título de “Uma Ponta de Iago”, pelo ciúme sofrido por Bentinho em razão do comentário mordaz do agregado José Dias sobre Capitu: “Tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha. Aquilo enquanto não pegar um peralta da vizinhança, que case com ela…” Já no capítulo LXXII, Otelo, Desdêmona e Iago são citados nominalmente. Há ainda neste capítulo uma bela tradução machadiana da fala de Otelo mencionada acima, no parágrafo sobre “Iaiá Garcia”: “Ela amou o que me afligira,/ eu amei a piedade dela”. Significativamente, o título do capítulo CXXXV de “Dom Casmurro” é “Otelo”. Suas primeiras frases merecem ser reproduzidas:

Jantei fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente Otelo, que eu não vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto, e estimei a coincidência. Vi as grandes raivas do mouro, por causa de um lenço, ― um simples lenço! ― e aqui dou matéria à meditação dos psicólogos deste e de outros continentes, pois não me pude furtar à observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes de Otelo e compor a mais sublime tragédia deste mundo. Os lenços perderam-se, hoje são precisos os próprios lençóis; alguma vez nem lençóis há e valem só as camisas. Tais eram as idéias que me iam passando pela cabeça, vagas e turvas, à medida que o mouro rolava convulso, e Iago destilava a sua calúnia.

No romance seguinte, “Esaú e Jacó” (1904), o autor se pergunta, no capítulo LVIII, “como é que se matam saudades”, já que para elas “não há ferro nem fogo, corda nem veneno”, numa alusão a esta fala de um Otelo irado, ao jurar vingança contra Desdêmona: “Se existem cordas, facas,/ veneno ou fogo, ou riachos sufocantes,/ não tolerarei isso” (If there be cords, or knives,/ Poison, or fire, or suffocating streams,/ I’ll not endure it) (3.3).

No seu último romance, “Memorial de Aires” (1908), escreve o memorialista, numa anotação de 2 de agosto de 1888: “Nem tudo se perde nos bancos; o mesmo dinheiro, quando alguma vez se perde, muda apenas de dono”. O raciocínio é o mesmo da primeira parte desta famosa fala de Iago: “Quem furta minha bolsa, furta lixo; é algo, um nada;/ era minha, é dele e tem sido escrava de milhares;/ Mas aquele que surrupia meu bom nome/ rouba de mim o que não o enriquece/ e me torna deveras pobre” (Good name in man and woman, dear my lord,/ Is the immediate jewel of their souls:/ Who steals my purse steals trash; ’tis something, nothing;/ ’Twas mine, ’tis his, and has been slave to thousands) (3.3).

À semelhança do apaixonado Rodrigo, em “Otelo”, dois outros personagens dos contos machadianos pretendem a tolice de afogar-se por amor. Norberto, em “Eterno!”, um jovem estudante de medicina que nutre uma paixão impossível por uma baronesa, ameaça em uma carta a um amigo “atirar-se ao mar”. Já em “Um Capitão de Voluntários”, um dos personagens confessa: “pensei em meter-me na barca de Niterói, que primeiro acolheu os nossos amores, e, no meio da baía, atirar-me ao mar”. Pode-se ver no conto “História de Uma Fita Azul” alguns traços do ciúme provocado pela perda do lenço da desafortunada Desdêmona. No conto “Um Esqueleto”, um marido ciumento admite, à semelhança de Otelo: “Algumas aparências me enganaram”. Há outros exemplos da presença de “Otelo” nos demais contos, nas crônicas, nas críticas literárias e no poema “Lúcia”, cuja descoberta ficará a cargo do leitor curioso.

Numa crônica de 23 de abril de 1893, Machado dá um extenso testemunho de sua admiração por Shakespeare:

Tudo são aniversários. Que é hoje senão o dia aniversário natalício de Shakespeare? Respiremos, amigos; a poesia é um ar eternamente respirável. Miremos este grande homem; miremos as suas belas figuras, terríveis, heróicas, ternas, cômicas, melancólicas, apaixonadas, varões e matronas, donzéis e donzelas, robustos, frágeis, pálidos, e a multidão, a eterna multidão forte e movediça, que execra e brada contra César, ouvindo a Bruto, e chora e aclama César, ouvindo a Antônio, toda essa humanidade real e verdadeira. E acabemos aqui; acabemos com ele mesmo, que acabaremos bem. All is well that ends well.

Há ainda, aqui e ali, outras depoimentos generosos. Na crítica “Instinto de Nacionalidade”, Machado afirma que Shakespeare é “além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês” e, mais adiante, declara que “se há casos em que eles rompem as leis e as regras, é porque as fazem novas, é porque se chamam Shakespeare, Dante, Goethe, Camões”. No conto “Tempo de Crise”, afirma um personagem: “Dizem de Shakespeare que, se a humanidade perecesse, ele só poderia compô-la, pois que não deixou intacta uma fibra sequer do coração humano”.

Referências bibliográficas

1 – CALDWELL, Helen. O Otelo Brasileiro de Machado de Assis. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2002. 224p.

2 – MACHADO DE ASSIS. Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986. 3 volumes.

3 – SHAKESPEARE, William. The Complete Works of William Shakespeare. Londres: Oxford University Press, 1935. 1352p.